“Teatro Russo”, de Arlete Cavaliere, ganha edição revista e ampliada; conheça os autores analisados

A autora apresenta um panorama da produção teatral russa pelo prisma da paródia e do grotesco, incluindo agora Vladímir Sorókin, autor de "Dostoiévski-trip".

Muito oportuna a edição revista e ampliada de Teatro Russo: Percurso para um estudo da paródia e do grotesco, de Arlete Cavaliere, que acaba de ser lançada pela Editora 34. Além dos clássicos Gógol, Tchekhov, Blok e Maiakóvski, mestres da paródia, o volume inclui agora um ensaio sobre Vladímir Sorókin, mestre do grotesco.

Cada um deles lança mão de procedimentos que, muitas vezes, se confundem. Os da paródia realizam “a instauração na língua de uma tensão e um desnível sobre os quais a paródia instala sua central elétrica”, para usarmos a definição de Giorgio Agamben em Profanações, seu livro mais famoso. Os do grotesco, segundo Vsevólod Meyerhold, citado em Teatro Russo, “uma união considerada impossível de objetos submetidos a um uso inadequado tanto no interior da natureza, quanto em nossa experiência cotidiana, com grande insistência no aspecto sensível, material da forma assim criada”.

Gógol

De fato, na famosa peça de Gógol, O Inspetor Geral (1835), cujo ponto de partida foi um folheto do caderninho de Púchkin a quem Gógol havia pedido um episódio curioso que ele transformaria em teatro, conforme conta seu brilhante intérprete Vladímir Nabókov, em Nikolai Gógol: Uma biografia, os símbolos tomam um aspecto fisiológico e as personagens periféricas, surgidas anonimamente de súbitas mudanças de foco, “se pavoneiam por um breve momento e desaparecem”.

Mas há um fenômeno notável, diz Nabókov: “às vezes são simples formas do discurso que geram criaturas vivas”. Quem não reparou na espécie de refrão” (vprótchem, “por sinal”) com que o pobre Akáki Akákevitch de O Capote começa todas as suas frases, a ponto de ser confundido com ele? Ou, no não menos famoso Almas Mortas, na insuperável tradução de Tatiana Belinky, no qual os naipes do baralho passam a ser pessoas vivas: “espada, espadote, espadachim!”? A obra de Gógol é um fenômeno de linguagem, conclui Nabókov, não de ideias.

Não sabemos quem dirigiu a primeira apresentação da peça O Inspetor Geral, que o czar Nicolau I havia inesperadamente liberado, mas a encenação que ficou inesquecível foi a do grande diretor Vsevolod Emilevich Meyerhold (1874-1940), discípulo dissidente de Konstantin Stanislávski.

Tchekhov

Isso nos leva à segunda parte do livro e ao Teatro de Arte de Moscou (TAM), que, sob a direção de Stanislávski (1863-1938), passou a encenar quase todas as peças de Tchekhov, autor que acompanhou diretor e atores durante todo o processo. As principais obras tchekhovianas — A gaivota, Tio Vânia, O Jardim das cerejeiras, entre outras — procuraram teatralizar, com matizes impressionistas e simbolistas, a “mimese interior” proposta pelo escritor, em contraposição ao “realismo externo” dos primeiros tempos do TAM.

A. P. Tchekhov e a equipe do Teatro de Arte de Moscou em 1898.

Como se sabe, entretanto, os textos chamados “cômicos” de Tchekhov são, principalmente, os de sua primeira fase. As peças curtas, geralmente em um ato, que deles derivaram incluem Os males do tabaco, que teve considerável sucesso no Brasil e que encerra — quem sabe — a essência do riso tchekhoviano.

A trama do monólogo é simples. Num clube de uma cidadezinha de província, o palestrante, certo Niúkhin, sobe ao estrado para falar dos malefícios da nicotina, por ordem expressa de sua mulher, dona de um instituto para moças. Mas acaba (e começa!) só falando de suas mazelas cotidianas, perdendo completamente o fio da meada. Rimos da linguagem e dos descalabros empregados, mas, no fundo, no fundo, sentimos uma grande pena pelo pobre Niúkhin, tanto mais que Tchekhov, em 1902 (dois anos antes de sua morte), escreveu uma segunda versão da peça, na qual o páthos que evocou nossa consternação na primeira versão se transforma em báthos, o anticlímax em que os momentos elevados se transformam em ridículos.

A fanfarronice discursiva repleta de clichês, emprestados do meio social provinciano, com seus dizeres populares e suas expressões características, irão antecipar o estilo satírico do teatro de Maiakóvski (1893-1930).

Blok

Há, antes dele, um entreato do Teatro-Estúdio, criado por Stanislávki no TAM, mas levado adiante por Meyerhold, que busca conduzir suas pesquisas em direção à música e a novos procedimentos da representação cênica, modificando certos aspectos do drama simbolista. Exemplo feliz dessas buscas é, em 1906, a representação de A barraquinha de feira, do poeta Aleksandr Blok.

O que constitui o embasamento estético da arte cenográfica de Meyerhold, nessa sua fase de modificação simbolista, é a “estilização”, o traço distintivo do que virá a chamar-se “Teatro da convenção.” “Estilizar” — diz ele — “uma época ou um fato, significa exprimir através de todos os meios de expressão a síntese interior deles, reproduzir os traços específicos de uma obra de arte”.

Maiakóvski

Em 1918, Meyerhold dirige a peça Mistério-bufo, de Maiakóvski, com cenários de Kazimir Malévitch, fundador do Suprematismo, uma nova vertente da arte abstrata, que se tornou representante da pintura de vanguarda russo-soviética. 

Em 1929, uma nova peça de Maiakóvski, O Percevejo, é encenada por Meyerhold. Trata-se de uma crítica, trabalhada em tom surreal e circense, sobre a degeneração e burocratização da Revolução bolchevique. O operário Prissípkin casa-se com a filha de um cabeleireiro, desprezando sua ex-namorada. Na festa do casamento, ocorre um grande incêndio em que morrem todos, menos Prissípkin, que fica congelado pelos jatos de água dos bombeiros. 

A segunda parte da peça se passa num hipotético 1979 em que, 50 anos após o incêndio, o operário é descongelado e, com ele, um percevejo. Na sociedade planificada e racional do futuro soviético, o pobre Prissípkin não se sente à vontade, e seus prazeres triviais passam a ser “curados”. Mas seus micróbios são considerados perigosos, e ele é preso numa jaula de um zoológico para visitação, onde seu único consolo é a presença do percevejo que foi descongelado com ele.  “Ao diabo vocês e vossa sociedade! Não fui eu que pedi que me descongelassem. Recongelem-me!” (“O futuro do comunismo não parece ser mais consolador do que o presente”, comenta Angelo Maria Ripellino, russista italiano.)

Esta é a peça traduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa, em colaboração com Boris Schnaiderman, e apresentada pela primeira vez no Rio de Janeiro, em 1981.  Fora encenada na URSS em um  curto período em que a NEP (Nova Política Econômica – 1922-1929) e o Proletcult (Comitê Central das Organizações Culturais) haviam favorecido a liberdade nas Artes. Liberdade  esta que, com o endurecimento estalinista do Partido, foi aniquilada, e com ela, as vanguardas. Maiakóvski suicidou-se e Meyerhold foi fuzilado.

Sorókin

Finda a União Soviética, falida a Perestróica e iniciada a era Putiniana, eis que surge um novo nome marcante no Teatro Russo: Vladímir Sorókin (1955 – ), com sua peça “Dostoiévski-trip” (1997), já encenada no Rio e em São Paulo. Aqui, no CCBB, em 2017, a diretora da peça Cibele Forjaz fez alusões ao contexto social com projeções, no fundo da cena, de imagens de mendigos e usuários de drogas que habitam o submundo da capital paulista.

Sorókin — diz Arlete Cavaliere — “pertence à nova geração ‘revolucionária’ da Rússia atual. Tornou-se conhecido como autor conceptualista, em seus contos, romances distópicos (O dia de um oprítchnik), peças de teatro e roteiros cinematográficos, juntamente com Viktor Pelévin, Dmitri Prígov, Liudmila Petruchévskaia e Liudmila Ulítskaia, entre outros. Concomitantemente com a desintegração do sistema socialista, acompanha [sinistramente] o novo paradigma russo”. 

Sua casa fica bem perto do aeroporto de Moscou, de onde voa para Berlim tão logo sua incolumidade se torne discutível.

A peça

Após descartarem uma série de drogas que têm o nome e o efeito (das obras) de escritores famosos e que são vendidas em pílulas demasiado caras por um traficante, os sete personagens-usuários decidem-se pela droga Dostoiévski, não como conteúdo estético ou espiritual, mas como meio de atingirem sensações físicas e fisiológicas concretas. A cada um é posta uma drágea na língua e eles, imediatamente, se transformam nos participantes da cena mais emocionante de O Idiota: a noite do aniversário de Nastássia Filippovna, em que ela deverá escolher seu futuro marido e atirar cem mil rublos no fogo. Cada um dos drogados representa seu papel ideal; porém, aos poucos, surgem certas tendências psicopatológicas que são agigantadas, acentuando as perversões às quais os personagens — agora pessoas reais — foram submetidos durante sua vida egressa. A reconstituição se torna tão insustentavelmente penosa que o traficante acata a sugestão do químico: “Dostoiévski em estado puro é mortal. Vamos diluir o Dostoiévski com o Stephen King. E depois veremos”.

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Aurora Fornoni Bernardini é escritora, tradutora e professora titular da USP no Departamento de Línguas Orientais e na pós-graduação no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Graduou-se em inglês (1959-1963) e em russo (1962-1966) pela USP, onde ainda concluiu seu mestrado (1970, sob orientação de Boris Schnaiderman) e doutorado (1973, sob orientação de Alfredo Bosi) sobre o futurismo russo e italiano, e sua livre-docência (1978) sobre Marina Tsvetáieva. Dedica-se também à pintura, tendo realizado exposições individuais e coletivas.

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