Uma quadrilha de intuições: de Drummond a Racine, da piada à tragédia

Que relação poderia haver entre o trágico neoclássico francês Racine e os poetas brasileiros Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto? E como René Girard entraria nesta equação? Cláudio Ribeiro tem as respostas.

por Cláudio Ribeiro

“Carlos, aqui está a primeira parte do ato que tentei tirar de seu poema ‘Quadrilha’. Lendo-a, você entenderá melhor aquilo que eu quis explicar ao telefone”. Assim tem início uma carta de 10 de março de 1943, endereçada a Carlos Drummond de Andrade. O remetente? Um jovem poeta pernambucano recém-estabelecido no Rio de Janeiro, João Cabral de Melo Neto, então autor de Pedra do sono (1942). “Não é preciso que você faça esta leitura às pressas”, continua Cabral, “sei o quanto você é geralmente ocupado e, além disso, não sei se continuarei com o trabalho.” A resposta do respeitado poeta mineiro veio dezenove dias depois: “Caro João, aí vai a sua ‘Quadrilha’, de que gostei tanto. Desculpe a demora. Acho que você deve continuar”. [1]

Não houve continuidade

A parte escrita do “ato” imaginado por Cabral foi publicada como estava, no último número da Revista do Brasil, de dezembro de 1943, sob o título de Os três mal-amados. Originalmente concebida como uma peça de teatro, Os três mal-amadostornou-se (ao que tudo indica, inesperadamente) um poema em prosa — modalidade que não mais faria parte do repertório cabralino.

Em entrevista a Felipe Fortuna, publicada no caderno “Ideias”, do Jornal do Brasil, em 3 de outubro de 1987, Cabral explicou que a peça estava caminhando “para um estilo mais poemático que poético”, o que, para ele, não funcionava. “Assim (diz o poeta), eu deixei tudo como estava, publiquei aqueles monólogos, e como estão em prosa, podem parecer poemas em prosa, mas não foram planejados assim. Na verdade, é o pedaço de uma peça que eu não tive coragem de acabar”. O projeto de Cabral consistia em dar voz também às personagens femininas de “Quadrilha”, Maria, Teresa e Lili, de modo a intercalá-las com as vozes masculinas, Raimundo, João e Joaquim. Mas, como dito, não houve continuidade.

No entanto, o fato de um poema-piada do livro de estreia de Drummond, Alguma poesia (1930), ter funcionado como script para o desenvolvimento de um drama é algo que merece atenção.

Recordemos o texto de “Quadrilha”:

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

Por que “Quadrilha” funciona como um poema-piada? Porque as personagens se encontram enredadas numa trama básica: a ironia do infortúnio amoroso, a contradança dos mal-amados. Na medida em que acompanhamos o encadeamento dos desencontros dos pares, vamos esboçando um riso, discreto, mas cúmplice… Se Cabral percebeu nessa trama elementos para uma peça de teatro, outro intelectual de grande envergadura viu, por sua vez, em uma peça de teatro — uma tragédia de Racine —, elementos estruturais símiles aos de “Quadrilha”.

Vejamos

Nos anos 1960, a editora Ediouro publicou uma tradução da tragédia Andromaque (1667), de Jean Racine, assinada por Jenny Klabin Segall. O crítico Paulo Rónai escreveu o texto de apresentação da edição, cuja primeira frase é a seguinte: “O assunto desta peça enquadra-se numa das situações dramáticas fundamentais, a da ‘ronda não fechada’, a mesma que o nosso Carlos Drummond de Andrade assim esquematizou em sua poesia ‘Quadrilha’”. [2] Rónai, após o apontamento, cita a primeira parte do poema e logo volta para completar: “Só que esta sequência de desencontros sentimentais, tão frequente na vida de todos os dias, envolve, no drama de Racine, não simples mortais, mas celebridades da Fábula.” Sabemos que a “Fábula” a que se refere Rónai é o conjunto de histórias que rementem às lendas da guerra de Tróia, em geral, e à heroína Andrômaca, esposa de Heitor, em especial. Uma das fontes de Racine, inclusive, é a tragédia homônima de Eurípedes, datada de 425 a.C.

Mas se tentarmos reduzir esquematicamente a Andrômaca, de Racine, seguindo o apontamento de Rónai, teremos, de fato, algo semelhante a “Quadrilha”? Para nossa comodidade, alguém já o fez. E alguém que, curiosamente, nunca deve ter tido contato com a poesia de Carlos Drummond de Andrade!

Num ensaio de 1972, intitulado Perilous Balance: A Comic Hypothesis [3],o crítico e antropólogo francês René Girard assim resumiu Andrômaca:

Orestes ama Hermione que não o ama. Hermione ama Pirro que não a ama. Pirro ama Andrômaca que não o ama. Andrômaca ama Heitor que já não pode amar ninguém, visto que está morto.

Impressionante, não?

A imaginação crítica do autor de Mensonge romantique et Vérité romanesque lhe permitiu praticamente reescrever a primeira parte do poema drummondiano. E se ele entende ser quase impossível resumir Andrômaca sem produzir um efeito cômico, satírico, é porque a mais elementar descrição das relações entre as quatro personagens principais evidencia um esquema estrutural que se sobrepõe à singularidade dos indivíduos. “A tragédia”, diz Girard, “exige que levemos a sério a individualidade dos heróis”, enquanto que na comédia, ao contrário, “o acento é posto sobre a repetição e outros efeitos estruturais”, efeitos estes que contestam a soberania do indivíduo.

Carlos Drummond de Andrade, ao que parece, identificou tais efeitos estruturais e os expôs em “Quadrilha”.

Eis uma correspondência de intuições tão notável quanto inquietante.

NOTAS

[1]Cf. SÜSSEKIND, Flora (organização, apresentação e notas). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001, pp. 16-17.

[2]Cf. RÓNAI, Paulo. “Apresentação”. In: RACINE, Jean. Andrômaca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966.

[3]Cf. GIRARD, René. “Perilous Balance: A Comic Hypothesis”. In: MLN, vol. 87, n. 7, Comparative Literature (Dec., 1972), pp. 811-826. As citações seguem a edição portuguesa: “Um equilíbrio perigoso”. In: A Voz Desconhecida do Real – Uma Teoria dos Mitos Arcaicos e Modernos. Trad. Filipe Duarte. Instituto Piaget: Lisboa, 2007, p. 206 et seq.

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