Ursula K. Le Guin e a Antiutopia de Omelas

E se a felicidade coletiva dependesse do sofrimento, aprisionamento e infelicidade de um único inocente?

por Celina Alcântara Brod

Nada é tão livre quanto à imaginação. A partir de um vasto inventário ela é capaz de compor mundos inteiros e cenários distantes para sonharmos ou evitarmos, como faz  Bradbury, em Fahrenheit 451 e sua sociedade de bombeiros que incendeiam livros para que a imaginação dos homens seja toldada por um vocabulário estreito e uma tecnologia estimulante. É o imaginário humano que constrói labirintos, livros de areia e uma biblioteca infinita de galerias hexagonais, feito os contos de Jorge Luís Borges. Além de manipular verdades possíveis e desdobramentos futurológicos, a fantasia também desvela as sutilezas existenciais com maior impacto e efeito sob a nossa imaginação. É na literatura fantástica que o pensamento vai além de sua estreiteza e acessa sentimentos e circunstâncias inéditas em que experimentamos personagens com histórias e visões diferentes das nossas.

A escritora americana Ursula K. Le Guin, considerada uma das maiores autoras de ficção e fantasia, criou inúmeros personagens, mundos e sociedades que desafiam nossas concepções mais firmes sobre o que somos, como vivemos e os valores que perpetuamos. Ursula morreu em Janeiro deste ano, aos 88 anos de idade, deixando-nos de herança mais de 20 romances, centenas de contos, poesias, ensaios, histórias infantis e traduções. Contudo, sua visão antirreducionista ficou imortalizada pelas suas palavras e histórias desconcertantes. Seus livros são experiências de pensamento que deslocam a realidade do lugar-comum e ao retornarmos a ela já não somos mais os mesmos. É o que ocorre em Aqueles que se afastam de Omelas,um de seus contos mais famosos, vencedor do prêmio Hugo de 1974. Quem o lê nunca mais o esquece. Uma alegoria que apesar de curta, aproximadamente seis páginas, permanece pela força da experiência literária. Em Omelas somos jogados para o extremo do desejável e o máximo do repudiável, e entre essas duas possibilidades, o leitor encontra-se diante de um paradoxo incontornável.

Inspirada em uma pergunta hipotética, desenvolvida por William James em The Moral Philosopher and The Moral Life, Le Guin ergueu Omelas. A história nos insere em uma reflexão política e moral através de uma “escolha de Sofia”: E se a alegria de toda uma cidade e felicidade de seus habitantes dependesse apenas da solidão tortuosa e o aprisionamento de um único inocente; o que você sentiria diante de tal barganha? Conseguiria desfrutar das benesses desta cidade e manter-se feliz? Viver bem em uma ordem na qual o mal é necessário? Na história filosófica sobre a cidade de Omelas,Ursula não propõe uma solução para o problema ético do mal e tampouco nos poupa de uma interpretação confortável. A alegoria nos sujeita a uma dose amarga de nossa condição humana utilitarista, e o faz com o impacto de uma estética que não permite indiferença.

Omelas é uma cidade de paisagem paradisíaca que acolhe cidadãos de “sorrisos arcaicos”, um lugar pastoril que abriga o contentamento e a exuberância. Os habitantes, tão complexos como nós, partilham amigavelmente dos prazeres ofertados pela pólis. Uma sociedade sem classes, sem violência, sem discórdia e conflito. Um lugar com religião, porém sem clero, uma cidade sem competição e ausente de culpa. Em Omelas, nada está fora do lugar e há lugar para tudo. Uma sociedade onde todos aceitam com alegria sua posição e vivem o conforto de pertencer a um mesmo ideal. O contento dos moradores é celebrado por passeatas e procissões em clima festivo. “Você acredita? Você aceita o festival, a cidade, a alegria?”, intervém o narrador.

Ursula envolve o leitor na idealização da cidade impecável, engajando-o na construção do cenário e seus detalhes; leitor e narrador, juntos, contribuem assim, para sua existência.“Imagine o que você quiser”, escreve a autora. Somos seduzidos pelo narrador a ver, sentir e acreditar na beleza daquele mundo.  Entretanto, uma sociedade dos sonhos que talvez viva no imaginário de muitos, e que às vezes insinua-se como projeto de realidade em utopias políticas, carregam um preço. Sonhos alheios, inevitavelmente, impõem ajustes no mundo das contingências. No caso de Omelas, o bode expiatório é esmagador.

A experiência hedônica ausente de conflito e insegurança é uma paisagem superficial que oculta uma violência arquitetada. Uma criança é mantida no escuro, ela se encontra nua, suja e maltratada, permanece sempre trancafiada em um pequeno porão sombrio, frio e indigno. Todos os habitantes de Omelas são ensinados desde pequenos sobre a existência daquela criança prisioneira. Eles são levados até a ela para que a conheçam de perto. Aprendem a repudiá-la, rejeitá-la e, por fim, entender que aquela única infelicidade é a moeda exigida em troca da bondade e graça de toda a cidade. “Os termos são estritos e absolutos, nem mesmo uma palavra amável pode ser dita a criança”, alerta o narrador. A criança é tudo aquilo que Omelas não é. Mantê-la presa no porão significa que Omelas pode existir. Ao vê-la, alguns moradores cospem, outros a chutam, outros ficam em silêncio. Alguns se sentem impotentes, revoltados e indignados, mas eles voltam para suas casas e reafirmam sua felicidade. São os sofrimentos e a miséria da criança que unificam os moradores da cidade prometida. Se retirada de lá, toda a beleza e prosperidade seriam destruídas. “Agora, você acredita neles? Eles não são mais críveis?” nos devolve o narrador.

Porém, algumas pessoas após testemunharem o mal, que serve de pilar para a toda aquela alegria, simplesmente vão embora. “Essas pessoas vão para a rua, e caminham sozinhas. Mantêm-se de pé andando e andam em linha reta para fora da cidade de Omelas”. Cada um, sozinho, abandona a harmonia, o deleite coletivo e o sentimento de pertencimento. Despovoados e sem respostas, dão as costas para tudo aquilo. Os que se afastam da cidade idílica, não parecem utilizar em sua escolha, qualquer cálculo racional ou máxima deôntica, apenas são impulsionados pelo inevitável mal estar. Por outro lado, os que permanecem na cidade pagam o preço e aceitam sua impotência; “eles sabem que, como a criança, não são livres”.  Mas, os desertores simplesmente rejeitam a barganha sem ter a ousadia de querer extirpar o injusto. Diante do paradoxo de termos irreconciliáveis eles se afastam dos portões da cidade.

O desfecho da narrativa, embora aberto a múltiplas interpretações, significa, de certo modo, a rejeição em construir determinada solução final à custa de alguma violação. Os habitantes que abandonam a “doce” vida em Omelas não são coroados como heróis, salvadores ou revolucionários. Diante do inaceitável, viram as costas e vão embora. Os dissidentes quebram o dualismo inerente do conflito, afastam-se da escolha binária e de uma dialética do ressentimento. Na recusa de resolver a tensão das alternativas, anulam sua contribuição na barganha e dão às costas a um pacto social que não os representa.

Omelas em muitos aspectos assemelha-se com nossa realidade. Quantas vezes deslizamos repetidamente a tela do celular no conforto de uma poltrona, enquanto lemos manchetes e outras histórias sobre sofrimento de muitos e em seguida retornamos para nossa impotência e inevitável conformidade? Entretanto, a história também denuncia o perigo na construção de mundos idealizados, em que plena felicidade é utilizada como critério moral utilitarista para restringir e tiranizar a liberdade dos indivíduos. Embora o conto não seja redutível a uma única e abrangente lição, o leitor — que no final se sente responsável pela construção utópica de Omelas —reconhece que um meio não deixa de ser obsceno meramente porque o fim é digno.

Ursula, que em sua escrita sempre foi além da linguagem maniqueísta e das dicotomias reducionistas, aponta tanto a negação de uma salvação, pela condenação dos habitantes de Omelas, como a manutenção da condenação de um único ser em nome da salvação de toda a comunidade. Uma escolha que mostra o abandono de uma ideia salvacionista e da ideia de uma justiça da vingança. Certamente, alguém poderia alegar que deixar a criança ali e ir embora seja um ato de descaso ou egoísmo ético. Ainda assim, o abandono é um final que transcende o conflito dos contrários. Por isso, o desfecho de Ursula merece ser mantido. Em uma entrevista para a Room Magazine, Ursula responde que o experimento de pensamento é uma atividade humana importante, pois ela nos faz refletir sobre os custos e benefícios de qualquer desejo de mudança em uma sociedade. Ela diz que: “para mudar qualquer coisa, você tem que pensar um pouco – você não pode simplesmente entrar e destruí-la.”.

O exercício da imaginação nos mostra que entre o certo e o errado há uma vasta complexidade e que uma simples e final resposta para o fim dos problemas da humanidade é muito perigosa, pois qualquer meio estaria justificado e seria usado para alcançá-la. Além do teste da escolha moral, Omelas invoca a nossa responsabilidade na criação de mundos, e revela a armadilha escondida em atos justiceiros que prometem reparação. Afinal, não podemos solucionar um conflito com as mesmas ferramentas que usamos para criá-lo. Talvez fosse esta a pequena fenda que Ursula quisesse vindicar.

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