O Poeta
O centenário da morte do grande poeta santista Vicente de Carvalho (1866-1924) foi comemorado com a publicação do volume Vicente de Carvalho redescoberto (Editora Costelas Felinas) organizado e admiravelmente prefaciado por Flavio Viegas Amoreira, também santista, também poeta, que escolheu um conto e uma série de poemas retirados de suas principais coletâneas para que os leitores pudessem relembrar a obra do poeta mais lido entre 1910 e 1930, o poeta que marcou a passagem do romantismo/simbolismo/parnasianismo ao modernismo, para ser aclamado hoje como um clássico de nossas letras.

Quem não aprendeu nos bancos escolares o poema de Vicente sobre a felicidade?
Existe sim mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
Qual a menina-moça que cem anos atrás (e ainda hoje) não se emocionou com os versos que lhe foram dedicados?
Tu que és quase uma criança
E que enlevada sorris
À tentadora esperança
De ser amada e feliz…
Quem, amante do mar, não se encantou com suas Cantigas praianas?
Ouves acaso quando entardece
Vago murmúrio que vem do mar,
Vago murmúrio que mais parece
Voz de uma prece
Morrendo no ar?
Mar que também pode ser aterrador:
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam
A que o vento do largo eriça o pelo!
Aterrador como a fuga pela mata dos escravos que procuram refúgio no abrigo do Jabaquara e são surpreendidos pelos guardas:
Vão arrastando os pés chagados de frieiras…
De furna em furna a Serra, imensa se desdobra;
De sombra em sombra a noite, infinda se prolonga;
E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa fila da noite e das furnas avança…
E arrepiante como seu “Sonho Póstumo”:
I
Poupem-me , quando morto ,à sepultura: odeio
A cova, escura e fria.
Ah! deixem-me acabar alegremente, em meio
Da luz, em pleno dia.
O meu último sono eu quero assim dormi-lo;
— Num largo descampado,
Tenho em cima o esplendor do vasto céu tranquilo
E a primavera ao lado.
Bailem sobre meu corpo asas trêmulas, asas
Palpitando de leve,
De insetos de ouro e azul. ou rubros como brasa,
Ou claros como neve.
(…)
As reticências aqui não são minhas. Aparecem, talvez por ser longo demais, este poema, que o organizador não completou. É a única demanda a essa edição, por sinal, requintadíssima, da meritória republicação.
Os trechos que expusemos aqui são apenas uma amostra da grande figura lírica que foi o poeta, cujas obras foram prefaciadas por outros nomes ilustres, a começar por Euclides da Cunha. Nascido no mesmo ano de Vicente de Carvalho (1866), o engenheiro e imortal autor de Os Sertões dedica o prefácio ao livro máximo do poeta, Poemas e canções, prefácio esse escrito um ano antes de sua própria morte (ocorrida, como se sabe, em 1909, num duelo com o amante da mulher).
“Em pleno critério determinista somos talvez mais sonhadores do que nos tempos de nosso ingênuo finalismo teológico…Nossa idealização alarga-se-nos nos novos quadros reveladores das imagens infinitas da natureza. E, à medida que se nos torna mais claro o sentimento das energias criadoras que nos circulam, vai eliminando-se de nosso espírito o velho espantalho da discórdia dos elementos…”
É assim que Euclides saúda o poeta spinozista cujo sentimento da natureza “é um caso particular de simpatia universal”, citando P. Yan Thiezen de Le sentiment de la nature: “O homem não é — isoladamente — artista, poeta, sábio ou filósofo. Ele deve ser de algum modo tudo isto a um tempo, porque a natureza é íntegra”. De fato, Vicente de Carvalho não foi apenas um grande poeta, mas também um modelo de cidadão, tão difícil de ser seguido, mormente em nosso tempo, em que os deveres da cidadania são eclipsados pelo egoísmo de tantos interesses e compromissos…
O homem
Valemo-nos aqui dos dados biográficos levantados tanto por Fausto Cunha, que organizou e apresentou o volume de 1977 da Editora Agir, Vicente de Carvalho — poesia, quanto por Ana Luiza Martins no artigo “Vicente de Carvalho: poeta do mar e cidadão da república” (em Revista da USP, n.41, p.134-151- março-maio 1999).

Vicente de Carvalho, santista, era o terceiro filho do major Higino José Botelho de Carvalho e de Augusta Carolina Bueno de Carvalho, descendente do ouvidor e capitão-mor de São Vicente, Amador Bueno (c.1584-1649). Talvez se deva a eles haver legado como herança ao jovem a tenacidade e o senso do dever, pois Vicente foi aceito na Faculdade de Direito de São Paulo em 1882, com apenas 16 anos. Aos dezenove, publica seu primeiro livro de poemas Ardentias, que refunde com o título de Relicário, em 1888. A crítica foi-lhe favorável.
Formado, republicano convicto e abolicionista, casa-se, nesse mesmo ano, com Ermelinda Ferreira de Mesquita, da estirpe dos Mesquita do jornal O Estado de S. Paulo, no qual ele terá ocasião de publicar seus artigos. O casamento foi feliz (criaram treze filhos).
Feliz também pode-se dizer que tenha sido sua vida, embora curta: financeiramente, superando a crise do café, a Sociedade da Navegação Fluvial do Sul Paulista, da qual era acionista, permitiu-lhe três viagens à Europa e uma existência folgada a ele e à sua numerosa família. Entretanto, o amor pelo mar minou-lhe a saúde. Em 1907 teve que amputar um braço devido a uma grave infecção provocada por um anzol que lhe feriu a mão durante uma pescaria e, numa outra pescaria, apanhou uma pneumonia que haveria de levá-lo à morte em 22 de abril de 1924, com a idade de 58 anos.
O homem público
Em 1891, com a eleição para a Assembleia Constituinte do Estado de São Paulo e a publicação do Projeto de Constituição do Estado de São Paulo, começa a vida pública do poeta (que nunca deixou de ser: conta ele que, mesmo quando Ministro da República, não deixava de anotar os versos que lhe vinham à cabeça nos momentos de folga). Primeiro, em 1892, foi Secretário do Interior do Estado de São Paulo, depois, Juiz de Direito ( 1907) e, finalmente, Ministro do Tribunal de Justiça do Estado (1914). Foi membro da Academia Paulista e da Academia Brasileira de Letras e participou de uma polêmica lírica em defesa da arte pianística de Guiomar Novaes (1913). Justamente, o que causa admiração não são os títulos, e sim os seus feitos nesses cargos públicos. Aqui vão alguns deles.
Participou da Reforma do Ensino Público com a lei nº 88 de 8/9/1882; autorizou a abertura da ESALQ — a Faculdade de Agronomia de Piracicaba; criou o Serviço Sanitário do Estado; promoveu a criação de crematórios; fundou o periódico “O jornal”; incrementou a navegação fluvial do Sul Paulista (sendo ele mesmo acionista de uma sociedade ligada à navegação e recuperando a fortuna perdida com sua fazenda de café, em Franca). Em 1901 publicou um livro de 154 páginas, justamente sobre a crise do café em Santos, contra as injunções do mercado, ao que se tornou um ícone de sua cidade natal, propondo soluções para a crise do café, como a queima dos excedentes e a destruição do “baixo” café, que viriam a ser adotadas pelo governo duas décadas depois. Tudo isso, e mais ainda, sem nunca deixar de lado a poesia.
Em 1902 publica a coletânea Rosa, Rosa de amor e, em 1908, publica Poemas e canções, que o consagra definitivamente. Em 1912 publica, em Portugal, osVersos da mocidade, fruto de sua cultura e sensibilidade poética, nos quais dá tratamento culto a temas populares.
Conforme certas características de seus poemas, foram-lhe associados uma série de nomes: além dos parnasianos — Bilac e Alberto de Oliveira —, o passado de Bocage e Machado de Assis, pela cuidada arquitetura; Victor Hugo, pela técnica; Baudelaire, Nietzsche, Guerra Junqueiro e Augusto dos Anjos, pelo agnosticismo e o panteísmo; Gonçalves Dias (dele procederia o esquema vicentino de “Palavras ao mar”); Byron, idem quanto ao “Canto dos Corsários” em Ardentias; assim como Castro Alves e Álvares de Azevedo.
Entre os críticos, Mário de Andrade assim o situa: “O Sr. Vicente de Carvalho é um dos maiores poetas brasileiros. Coloco-o junto a Cláudio Manuel, de Basílio da Gama, de Dirceu, de Alvares de Azevedo, de Varela. Um pouco acima: Castro Alves. Muito acima: Gonçalves Dias, sozinho”.
E, para terminarmos com Euclides da Cunha, assim conclui ele seu prefácio:
“Que outros definam o lírico gentilíssimo da Rosa, Rosa de amor, a inspiração piedosa e casta do ‘Pequenino morto’, ou os sonetos, onde tão antigos temas se remoçam.
De mim, satisfaço-me com haver tentado definir o grande poeta naturalista, que nobilita o meu tempo e a minha terra”. (30/9/1908)
Aurora Fornoni Bernardini é escritora, tradutora e professora titular da USP no Departamento de Línguas Orientais e na pós-graduação no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Graduou-se em inglês (1959-1963) e em russo (1962-1966) pela USP, onde ainda concluiu seu mestrado (1970, sob orientação de Boris Schnaiderman) e doutorado (1973, sob orientação de Alfredo Bosi) sobre o futurismo russo e italiano, e sua livre-docência (1978) sobre Marina Tsvetáieva. Dedica-se também à pintura, tendo realizado exposições individuais e coletivas.