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O improvável escritor de clássicos do Brasil profundo
Uma entrevista
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por João Villaverde
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Era mais uma mudança de cidade, a quinta ou sexta. A família Ferreira de Araújo Costa precisava mudar, do litoral para o interior e deste para o litoral, de tempos em tempos. Estamos no Maranhão, quase cem anos atrás.
A matriarca, Kiola Ferreira, estava acostumada a se mudar desde muito cedo: é filha de pernambucano retirante da terrível seca de 1921. A pobreza era profunda na família: ainda criança, Kiola chegou a pedir esmolas nas ruas. Uma vez em São Bento, interior maranhense, casa-se com promotor público local e, grávida, muda com o marido para a ainda mais pacata cidade de Pinheiro. Em abril de 1930, nasce o primeiro filho do casal, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa. Estamos na República Velha e a Constituição em vigor é aquela de 1891.
O marido de Kiola compra briga com um governante local e é forçado a mudar de cidade com frequência. Quando chegam a Santo Antônio das Balsas, estavam já na quinta ou sexta mudança em poucos anos. Naquela vez, o marido tinha chegado antes e Dona Kiola foi dias depois, carregando José Ribamar e os irmãos ainda menores.
O primeiro local que ela bateu às portas a fim de se instalar provisoriamente com seus filhos era uma pensão. Mas não uma como ela imaginava: tratava-se de uma pensão de mulheres, um bordel. A proprietária do estabelecimento logo esclareceu a Dona Kiola que o descanso dela com as crianças deveria ser em uma pensão tradicional, indicando em seguida o endereço apropriado.
Mudanças assim seriam frequentes nos primeiros 12 anos de vida de José Ribamar. A mais marcante das mudanças naqueles anos foi quando tiveram a chance de morar um pouco na capital do Estado. Em São Luís, o pequeno José Ribamar ficou deslumbrado ao ver os bondes — as carroças se mexiam sem que cavalos as puxassem.
Mais tarde, ao chegarem na casa do pai (transferido antes a capital), o garoto ficou impressionado ao notar que iluminação era elétrica, dispensando o querosene. Era 1936. Intensas agitações políticas na capital do país (o Rio de Janeiro) culminariam, no ano seguinte, com o autogolpe de Getúlio Vargas, instaurando uma ditadura de cunho fascista.
Mas no Maranhão as agitações eram de outra forma. De um lado, a chegada com relativo atraso do modernismo artístico e literário, mas apenas na capital; de outro, a violência política — literal, à bala — grassava abertamente, em especial no interior.
A chegada da família Araújo Costa à capital não duraria muito tempo. As mudanças continuavam. A família passaria os cinco anos seguintes mudando de municípios no interior e também no litoral, incluindo a volta a São Bento, mas também Codó, Coroatá, a famigerada Santo Antônio de Balsas e também Caxias.
Eram “cidades alagadas”, isto é, tomada de águas. A pesca é frequente e o convívio com pescadores era intenso. Não apenas pescadores, mas também mascates do mar e dos rios. O pequeno comércio, as superstições populares e as igrejas que unificavam aqueles povoados, por meio das festas religiosas e da organização do dia a dia.
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Apenas em 1942 é que José Ribamar, aprovado em exame para o Liceu Maranhense, voltaria a São Luís, onde construiria sua carreira: primeiro como jornalista, depois como escritor e, por fim, como político. Nos anos 1950, José decidiu adotar o bigode fino que o pai carregara desde sempre. Decidiu, também, acoplar ao seu nome, José, o nome próprio do pai, Sarney. De tanto ser chamado na escola e por vizinhos de “José do Sarney e da Kiola”, o garoto decidiu adotar. Passou a ser José Sarney de Araújo Costa.
Sim, José Sarney.
Você, que chegou até aqui, pode ter lido a resenha que escrevi ano passado cá no Estado da Arte, sobre os 50 anos de Norte das Águas, o primeiro grande livro do escritor José Sarney. Por outro lado, você pode não ter lido. Se este for seu caso, leitora e leitor cá deste texto, não se avexe. Trato sim de José Sarney, o político maranhense que foi o primeiro presidente civil da República depois de 21 anos de ditadura militar. O patrocinador da emenda constitucional que deu voto universal para os milhões de analfabetos no país (em 1985) e o criador do Ibama (1989), enquanto o Congresso Nacional forjava a nova — e democrática — Constituição do país.
O mesmo José Sarney que depois presidiria o Senado Federal em quatro oportunidades, que faria a filha, Roseana, governadora do Maranhão, e o filho, Sarney Filho, ministro do Meio Ambiente (de FHC e de Michel Temer). O mesmo Sarney que apoiou Lula e Dilma. O mesmo Sarney que foi da UDN, da Arena e do PDS, e que há quase quatro décadas comanda o MDB.
Você certamente conhece as linhas gerais da trajetória política de Sarney, possivelmente com uma opinião já formada sobre suas virtudes e sobre seus pecados.
Suspeito, no entanto, que conhece pouco o escritor José Sarney. É sempre possível (e necessário) distanciar o autor de sua obra. A obra existe por conta própria. Vale para as artes plásticas, para o cinema, para a música, para a literatura.
As letras precedem a política em José Sarney. Jornalista desde 1947, José Sarney foi repórter policial do jornal O Imparcial, em São Luís, tendo escrito diversas reportagens sobre criminosos foragidos, perseguições policiais e investigações de detetives locais. Seu primeiro livro, de poesias, foi publicado em 1952, quando ele já tinha criado o suplemento cultural no jornal e editava A Ilha, porta estandarte da nova geração de poetas maranhenses, como Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzzi e Lago Burnett
A política, “o destino”, como ele relatará em entrevista logo abaixo, surgiu decididamente sobre a literatura, sua “vocação”, em 1954. Ele deixa o cargo de diretor-geral d’O Imparcial e assume como suplente de deputado federal no ano seguinte, quando a sede do governo brasileiro ainda era o Rio de Janeiro. Torna-se opositor de Juscelino Kubitschek e vai, no começo dos anos 1960, liderar a chamada “Bossa Nova da UDN”, os líderes jovens e relativamente de centro-esquerda do partido radicalmente conservador. É eleito governador do Maranhão pelo voto direto, nas eleições de 1965, e sua posse é filmada por Glauber Rocha. Quando deixa o governo, em 1970, lança seu primeiro livro de contos, Norte das Águas.
A partir daí, política e literatura passarão a caminhar em suas raias de forma persistente. Torna-se imortal da Academia Brasileira de Letras em 1980, quando era impensável — inclusive para o escritor — que um dia ele chegaria a Presidência da República.
As linhas que produzi acima tem diversas fontes e não entediarei a leitora e o leitor que aqui me acompanha com as indefectíveis notas de rodapé. Escrevi o que escrevi (partindo de Dona Kiola e a infância de José Ribamar que se transforma em José Sarney) porque tornei-me apreciador da obra do escritor.
É ele, o escritor José Sarney, quem entrevistei para o Estado da Arte, aqui no Estadão.
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A entrevista com José Sarney
Quando li Norte das Águas, anos atrás, fiquei assustado. Gostei muitíssimo. Fiquei, no entanto, encucado (talvez como você, leitora e leitor que aqui me acompanha): o político Sarney precedia, em mim, o escritor José Sarney. Eu queria entender como uma obra tão marcante e sensível poderia ter sido produzida pelo mesmo político que eu cresci conhecendo apenas pelos atos e decisões políticas, necessariamente pragmáticas.
Descobri, então, que Jorge Amado, o grande Jorge Amado, também tinha adorado Norte das Águas. Pesquisando um pouco, encontrei também elogios de Marcelo Rubens Paiva. Eu já não estava sozinho, portanto. Depois li as poesias de Sarney e em seguida um livro curioso, mais recente, de curtas reminiscências políticas e pessoais. Gostei de ambos, mas estavam um pouco abaixo de Norte das Águas. Foi, então, que li — e devorei — O dono do Mar. Este, um romance. Um livro genuinamente original, arrebatador.
Mais uma vez, eu não estava sozinho: O dono do Mar foi considerado uma obra prima por ninguém menos do que o etnógrafo francês Claude Lévi-Strauss e pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro.
Veio a pandemia, ano passado, e eu fui reler Norte das Águas, depois de alguns anos. Considerei aqueles contos ainda melhores do que eu supunha da primeira leitura. Como o livro foi originalmente lançado em 1970, pensei que ele cumprira, afinal, o destino de uma grande obra: 50 anos depois, ela continuava viva. Escrevi, por essa razão, a resenha de Norte das Águas, que o Estado da Arte publicou. Fiquei contente com a recepção: obrigado a você que leu minha resenha e que aqui retorna para essa nova incursão.
Pois em abril passado, José Sarney completou 91 anos. Decidi, então, pedir uma entrevista. Minha ideia era tratar exclusivamente de literatura, sua literatura. Não foi um percurso simples, o da entrevista, até este momento final, em que está aqui publicada. Sarney foi brevemente hospitalizado por um acidente doméstico, em Brasília. Teve encontros políticos inadiáveis (com Lula e Bolsonaro, duas vezes com cada um) e uma longa viagem a São Luís.
Mas deu certo. Por fim, um aviso: a entrevista que se segue é com o escritor José Sarney, não com o político Sarney. Em nenhum momento devem, a leitora e o leitor, extrapolar qualquer relação política do que aqui se apresenta. A eventual má vontade para com o político Sarney deve ser colocada de lado para se apreciar a conversa com o escritor José Sarney.
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Villaverde: Como se deu o processo criativo para escrever Norte das Águas? Me refiro às referências pessoais, como experiência própria.
José Sarney: Toda a minha vida tive muito contato com pessoas de classes mais humildes. Meu pai, por perseguição política — então muito comum, que infelizmente ainda permanece em nossa sociedade —, foi deslocado sucessivamente numa cadeia de exílios interiores, percorrendo o Maranhão até Balsas, no extremo Sul do Estado. Assim, seguindo sua odisseia, conheci desde cedo minha terra e minha gente. Mais tarde, preocupado — como meus companheiros de geração — com o atraso do Maranhão, com as práticas que o arrastavam para o fundo, em que nos afogávamos, e, sobretudo, com a sorte do povo, comecei meu destino, minha carreira política. Percorri então todo o Estado, de povoado em povoado. Não conto as vezes em que conversei noite afora, na luz de lamparina — a rigor a energia elétrica só chegou depois de meu governo, apenas São Luís a tinha precariamente —, com os moradores, impregnando-me de suas carências e aflições, mas também de seus contos. Este convívio me trouxe o deleite de ouvir suas histórias, tomado pela imaginação narrativa e pela riqueza da linguagem. Assumi o Governo do Maranhão em 1966. Vivi aquele tempo com todas as minhas energias ligadas na construção de um governo, pois o que encontrei não merecia este nome. Vivi as esperanças que despertara no povo e o desafio de a elas corresponder. Mas atravessei aquele tempo insone. Então, nessas noites de angústia, as páginas se tornaram tábuas de salvação. Não sei como as escrevi, mas o meu povo vinha em peregrinação visitar minha memória, e os personagens foram tomando conta de suas histórias.
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Norte das Águas está três décadas distante de Saraminda, mas ambos os livros trazem uma prosa que envolve o leitor desde o princípio. Como se dá o trabalho do senhor no tocante à forma?
José Sarney: Fui naturalmente muito marcado, como todo escritor, pelas minhas leituras. No caso da ficção, elas tiveram três correntes dominantes: a literatura da geração de 30, a literatura latino-americana e os grandes narradores brasileiros posteriores, como Palmério e Rosa. Apesar disso creio que minha maior influência veio da narrativa popular. Com o povo, muitas vezes à luz de lamparinas, atravessei noites aprendendo a fabular. Essa escola exige ouvintes interessados. Talvez por isso minha obra se ressinta, por vezes, de uma marca da oralidade fora dos cânones tradicionais. Lembro também que fiz muitos milhares de discursos políticos — meus discursos recolhidos, que não incluem os espontâneos feitos Maranhão adentro, constituem oito alentados volumes —; e esse também é um gênero em que precisamos, como você diz, “envolver” o ouvinte, pois se perdermos a atenção de nossos pares é inútil o trabalho parlamentar.
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Qualquer leitor que encare Norte das Águas perceberá estar diante de uma obra maior, de um livro genuinamente original. Há personagens inesquecíveis nele. Uma delas é Merícia. O senhor poderia comentar um pouco sobre a formação de suas personagens? Elas surgem em fluxos de consciência ou são formadas a partir de uma miscelânea de vidas reais?
José Sarney: Você sabe que os personagens são construções compósitas, que contêm um pouco de nós mesmos, mas se apoiam em uma ou mais figuras reais. Conheci personagens extraordinários nas entranhas de meu Maranhão, que conheço profundamente. Deles, em maior ou menor grau, vem o cerne das gestações dos meus personagens. Por outro lado, a lição de que os personagens têm de adquirir existência própria, que vá além daquela anotada pelo autor, é essencial. Assim Merícia ou Beatinho, Cristório ou Chita Verde, Saraminda se sobrepõem a suas histórias contadas.
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Nossa tradição oral me parece também presente em sua obra. Em Literatura e Sociedade, Antônio Candido registrava como boa parte das letras produzidas no Brasil nos séculos de colônia era estritamente oral, para ser lida em voz alta em auditórios e sarais. Pensei nisso lendo alguns contos de Norte das Águas, em especial “Os Boasnoites”, que parece telhado a leitura em voz alta. Esse é um tipo de referência que faz sentido ao jovem Sarney que escreveu os contos no fim dos anos 1960 ou não?
José Sarney: Antecipei-me, sem me dar conta, a esta pergunta e lhe expliquei o que creio seja o papel da oralidade na gênese de minha obra de ficção. Incorporei até outro uso da época em que éramos colônia: a presença do diálogo. Mas isso não é buscado, sou um escritor muito visceral.
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Fui completamente arrebatado pela leitura de O dono do Mar. Como foi o processo criativo deste romance?
José Sarney: Como você sabe Pinheiro, onde nasci, e São Bento, onde fui criado, ficam na Baixada Maranhense, uma região alagada onde a pesca é muito frequente. Além disso, desde a década de 1950 convivi com os habitantes da Ilha do Curupu, pertencente à família de minha mulher, e até escrevi um pequeno estudo sobre a pesca de curral que se praticava ali. Quando deixei a Presidência da República, em que estivera afastado da poesia e da ficção, passei alguns meses me recuperando no Curupu. Retomei o hábito das conversas sem rumo com os moradores da ilha, a quem dedico o livro: “a Costinha, que amou estes mares, ao Velho Júlio, capataz da Ilha do Curupu, Mestre José Aires, comandante da Cinco Meninas, Raimundo, João, Antônio, Valbinho, Come-Lombo, Pinga-Fogo, Honorina, Pestana, Simplício, Tamarelo, Achado, Zé Remédio, Piru, Agustinho e Fiapo, companheiros de navegação”. A narrativa passou pela fase de formação interior e logo comecei a fazer anotações. De volta a casa fiz também muita pesquisa sobre navegação, tanto no aspecto antropológico quanto no histórico. Depois foi a rotina: escrever, reescrever, tornar atrás, reordenar e, como dizia o Jorge Amado, deixar os personagens tomarem seus caminhos e seus destinos.
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Antão Cristório é um dos grandes personagens da literatura brasileira. Quais foram suas referências, como criador de Antão, para desenvolver esta personagem?
José Sarney: Como lhe disse, meus personagens se impõem. Cristório devia ser o pescador maranhense, com seus sonhos e suas fantasias, com seu trabalho e sua presença social. Mas, a partir de um certo momento, ele passou a ser Antão Cristório, ele mesmo, não um símbolo ou uma representação. O Dono do Mar teve uma acolhida crítica muito forte, sobretudo no exterior, onde o político não atrapalhava o desempenho da obra. Mas um estudioso, Éris Antônio de Oliveira, escreveu uma tese em que vê sinais da Odisseia e outras referências sofisticadas. Se elas existem, no entanto, foram involuntárias, pois não quis, nem saberia, escrever com intenções e pretensões de minha bagagem de leitor.
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Jorge Amado comentou em 1984 que a política “roubara” do Brasil um grande escritor. Ele dizia que se a política não ocupasse tanto seu tempo, o país teria mais obras literárias. Derivei este comentário em minha resenha porque me parece realmente um comentário pertinente. Por isso, pergunto: suas obras maiores foram publicadas em períodos muito intensos de sua vida política (1970, 1978, 1995, 2000). Como foi dividir a agenda entre o processo criativo e a atividade política?
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José Sarney: Costumo dizer que minha vida tem dois eixos, o de meu destino, que foi a política, e o de minha vocação, que é a literatura. Passei a maior parte de meus dias com a primeira, mas toda noite recebi e respondi o convite de noivado da segunda. Aprendi, ainda menino, nos bancos escolares, a ser muito disciplinado. Sou capaz de concentrar toda a minha atenção a um momento de atividade política — da conversa com um interlocutor à proposta legislativa, do debate à decisão de governo — e outro, em seguida, à literatura. Diria até que preciso desta alternância.
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O senhor trabalha em alguma obra no presente?
José Sarney: Há algum tempo trabalho num projeto sobre minha visão do Brasil, retrospectiva e prospectiva. Chamo-o, atualmente, de O Brasil em seu Labirinto. Minha idade e o tempo crescente que tenho dedicado à minha mulher, com a saúde frágil, fazem com que avance lentamente. Tenho praticamente pronto um livro de memórias, mas creio que o deixarei sem publicar, pois memórias só devem ser publicadas depois da morte.
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E começou o mistério do vazio.
Os anos foram se amontoando no corredor
até serem tantos que não se pode ver.
A varanda é um só longo espaço morto.
Limpa a mesa, sem cadeiras e olhos.
Tudo é um instante
que sobrevive com lágrimas secas.
Não está morto. Vive eterno.
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Agradeço imensamente a Pedro Costa, em Brasília, por todo o empenho tornar realidade essa entrevista. Agradeço também a Gilberto Morbach, pela acolhida fraterna aqui.
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