por André Chermont de Lima
Em 2019 celebra-se o centenário do nascimento de Claudio Santoro. A imperdoável falta de conhecimento sobre a vida e obra de um dos nossos maiores compositores deu contornos de lenda a uma anedota em torno da “maldição” das nonas sinfonias. Santoro é autor, em minha opinião, do melhor pacote de sinfonias escrito por um brasileiro. Quando, em 1978, com a sua oitava sinfonia terminada há 15 anos, partiu para a composição da seguinte, começou a escrever duas ao mesmo tempo, para “enganar a morte”[1]: a nona e a décima, que ele intitulou de “Amazonas”. Santoro viveu até 1989 e teve tempo de compor mais quatro sinfonias, mas o episódio envolvendo sua nona remonta a uma mórbida “tradição” inaugurada por Beethoven.
Beethoven mudou quase tudo. Revolucionou todos os gêneros musicais onde meteu a mão (exceto, discutivelmente, a ópera); transformou o papel social do músico-compositor, e do artista de modo geral, que deixou definitivamente as cozinhas dos palácios para ser cultuado como gênio; superou o classicismo e instalou o século XIX, humanista e liberal, numa Viena aristocrática na sua essência, nos seus hábitos e nos seus gostos; desafiou e desdenhou príncipes e imperadores em nome da liberdade política. Além de tudo isso, Beethoven, ao terminar sua nona sinfonia, deixou também uma herança “sobrenatural” para seus herdeiros artísticos.
A paternidade sobre o “mito” da nona sinfonia de Beethoven recai no próprio Beethoven, mas veremos como outros compositores – e, por que não, pelo menos duas gerações inteiras de românticos – compartilham responsabilidade sobre ele. Uma conjunção de tantos protagonistas é natural: o surgimento de uma superstição depende, afinal, da repetição do fato originário, capaz de criar uma cadeia aparentemente conexa de outros fatos supervenientes. Embora a maioria das crenças tenha origens históricas bem definidas, imagina-se que mais de uma desgraça terá caído numa sexta-feira 13, ou mais de uma pessoa terá tido um dia infeliz depois de pôr o pé esquerdo primeiro no chão, para que a numerologia pudesse associar-se à superstição. Schubert, contemporâneo de Beethoven, foi o segundo grande compositor a completar, na teoria, nove sinfonias. Sucederam-se a ele Dvorák, Bruckner, Mahler; longe da ribalta dos mundialmente célebres, também Vaughan Williams, Alfred Schnittke e Malcolm Arnold. Talvez outros tantos ainda menos famosos. O “fato originário”, como se sabe, foi Beethoven; depois dele, uma série nada desprezível de grandes compositores, como se fulminados por um feitiço assustador, morrem ao trabalhar em suas nonas sinfonias – incluindo três dos maiores de todos os tempos, Schubert, Bruckner e Mahler. O mito está pronto e a superstição plenamente fundamentada.
Não se sabe bem a que altura os compositores começaram a se dar conta desse encadeamento. Mahler já acreditava na lenda: terminada a oitava, quando compunha as peças que integrariam a futura “Canção da Terra”, “não se atreveu” a denominar a série de sinfonia – como pareceu ser sua intenção original – “porque tinha um flagrante, supersticioso ‘temor da Nona Sinfonia’ (…) acreditava firmemente na superstição de ‘que nenhum grande autor de sinfonias viveria além de sua Nona’”[2]. Diriam os supersticiosos que ele apenas adiou a escrita por pouco tempo, ao contrário de Santoro. Shostakovitch, outro que ultrapassou a barreira da nona, preferiu (embora fosse um homem supersticioso) escrever uma sinfonia pueril, humorística, sem grande profundidade explícita, ensanduichada entre dois tours-de-force sinfônicos de enorme dramatismo e extensão. Talvez achasse que o poder da ironia fosse suficiente para desbancar o destino[3].
Apesar da aura mística e romântica que a envolve, a maldição da nona sinfonia não deveria existir – nem mesmo para os propensos a acreditar nela.
É importante proceder, aqui, a um curto exercício cronológico. Beethoven completou a “Sinfonia Coral” em 1824; ao morrer, em 1827, deixou vagas anotações para uma obra sinfônica, possivelmente destinadas a uma décima. Trata-se de algo quimérico, porém, como a continuação de “Os Irmãos Karamázov” ou o Evangelho de Eva. A história envolvendo Schubert é mais complicada: sua última sinfonia, chamada de “A Grande”, foi descoberta numa gaveta do irmão mais velho em 1838, dez anos depois da morte do compositor. Apesar de numerada como nona, pelo menos duas de suas sinfonias tardias, a sétima e a oitava, nunca foram completadas. Da sétima nada sobrou além de um esboço geral; já o destino da oitava, a “Inacabada”, foi bastante diferente, tanto porque os primeiros dois movimentos constituem, por si mesmos, uma obra-prima, como pela mística da incompletude – a ausência de uma explicação convincente para o abandono da partitura pela metade contribuiu para o mistério que alimentou a celebridade. Desde meados do século XIX, contudo, músicos e musicólogos têm pelejado em torno dos critérios da contabilidade: em muitos programas de concerto, catálogos e edições, a “Inacabada” aparece numerada como sétima e a “Grande” como oitava[4]. Para complicar as coisas, as duas tidas tradicionalmente como sétima e oitava não são as únicas incompletas: existem fragmentos de pelo menos outras três, incluindo… uma décima!
Bruckner difere-se dos colegas anteriores por haver deixado uma sinfonia incompleta de número 9. Trabalhou nela até poucas horas antes de morrer, em outubro de 1896, mas não teve tempo de concluir o quarto e último movimento. Há material manuscrito suficiente para sustentar reconstruções (a mais recente, de autoria de quatro musicólogos, foi gravada por Simon Rattle e a Filarmônica de Berlim em 2009), mas o fato é que a nona de Bruckner foi deixada incompleta, e assim o ouvinte se acostumou com ela, tal como se acostumou com a “oitava” de Schubert. O compositor deixou, além disso, dois primeiros esforços sinfônicos perfeitamente acabados, uma sinfonia em mi menor de 1862 e a “Sinfonia Zero” (Die Nullte), de 1869, satisfatória o suficiente para merecer, de certa forma, um número[5].
Mahler também tem sua “inacabada”, só que no caso uma décima. Depois da nona, o compositor finalizou apenas um primeiro movimento da sinfonia seguinte, deixando esboços para outros quatro movimentos – novamente suficientes para reconstituições aproximadas da obra completa. Dvorák, por fim, também dá espaço para argumentos sobre a validade do mito: completou oficialmente nove sinfonias, mas as quatro primeiras, trabalhos da juventude, foram tardiamente publicadas e são tão raras no repertório que não é incomum vermos a contagem começar da quinta – sua “Sinfonia do Novo Mundo” passaria assim a ser a nº 5, não mais a nº 9.
Cinco compositores, cinco situações diferentes. Qual o critério? Três deixaram nove sinfonias completas (Beethoven, Mahler, Dvorák); dois desses três teriam iniciado suas décimas (Beethoven, Mahler); os dois que não completaram formalmente nove sinfonias (Schubert, Bruckner) compuseram, no entanto, obras não numeradas que poderiam ser contabilizadas, a fim de reforçar a “maldição”. Ou não? Se Schubert completou apenas sete, Bruckner deixou-nos dez inteiras. Na verdade, para os propósitos deste ensaio, não há como comparar Bruckner e Mahler, que morreram trabalhando, respectivamente, na nona e na décima, ou Bruckner – que preferiu não numerar seus primeiros esforços – e Dvorák, que o fez.
Cinco compositores, cinco situações diferentes. Três deixaram nove sinfonias completas; os dois que não completaram formalmente nove sinfonias compuseram obras não numeradas a fim de reforçar a “maldição”
Tais variações ganham contornos excessivamente individuais para caracterizarem coincidências. O único denominador comum entre os cinco ou seis casos em questão seria o da proximidade temporal da morte com a composição de uma nona sinfonia, ou seja, estar no meio da número 9 ou havê-la terminado sem completar a seguinte. Esta me parece a única definição aceitável. Mas será esse critério realmente admissível, diante do que vimos nos parágrafos anteriores? Adicionalmente, ainda topamos com dezenas ou centenas de compositores, grandes e medíocres, que compuseram sinfonias e não foram ceifados ao tempo da nona. Entre os grandes, Berlioz, Mendelssohn, Schumann, Franck, Brahms, Tchaikovsky, Sibelius, Nielsen, Stravinsky, Prokofiev, Shostakovitch, Honegger, Santoro… A fobia de Mahler, que o impeliu a acreditar que nem ele nem qualquer outro grande sinfonista ultrapassaria a composição da nona, parece-me vaga – até porque, não tanto tempo assim antes dele, Mozart deixara 41 e Haydn, 104. Nem é o caso de supor algum tipo de desprezo de Mahler pelo período clássico, dada a sua notória admiração por Mozart[6].
Diante da falta de componentes objetivos (sei que a terminologia é infeliz) para que se constitua a coincidência e, com ela, a superstição, não seria de todo descabido buscar explicações em paragens um pouco menos metafísicas. É certo que pouquíssimos conseguem escapar dos seus poderes: Peter Gay, um dos biógrafos definitivos de Freud, menciona a ansiedade que certos numerais provocavam no psicanalista, que se via “perseguido” por “proféticas cifras, lembretes de sua mortalidade” – incluído o número do primeiro telefone da família, com o qual fazia conexões fatídicas[7]. Saber que o ultrarracional Freud se dobrava a superstições mórbidas, ainda que banais, abre-nos certas portas para a identificação de uma obsessão comum pela morte, ou, por analogia, pela imortalidade[8]. Freud, claro, não se deixava influenciar por tais incoerências ao escrever: em um estranho ensaio intitulado “O Inquietante”, discorre sobre a sensação de desconforto causada pela “repetição não deliberada” de acontecimentos ou sinais, algo que impõe “a ideia de algo fatal, inelutável, quando normalmente falaríamos apenas de ‘acaso’”[9]. Diz ele noutro lugar: “O que a psicanálise aponta nos fenômenos de transferência dos neuróticos é encontrado igualmente na vida de pessoas não neuróticas. Nelas dá-se a impressão de um destino que as persegue, de um traço demoníaco em seu viver, e a psicanálise sempre viu tal destino como, em boa parte, preparado por elas mesmas e determinado por influências da primeira infância”[10].
Não tenho a menor pretensão de “analisar” compositores famosos para descobrir influências infantis capazes de explicar suas fraquezas por superstições. A recomendação vem do próprio Freud: “um defeito inevitável dos trabalhos que procuram aplicar a psicanálise a temas das ciências humanas é oferecer muito pouco aos leitores de ambas as disciplinas. Por isso têm apenas o caráter de incitações…”[11]. Inexistem registros de que Bruckner tivesse consciência de uma maldição envolvendo nonas sinfonias: não obstante sua conhecida obsessão pela morte, o fato de ter levado quase dez anos trabalhando no seu canto do cisne, interrompendo-o inúmeras vezes para tratar de outros projetos, como se quisesse postergar de propósito o próprio fim, não parece ter força suficiente para consolidar um temor objetivo – talvez fosse cedo demais para isso. Já Mahler vinha nutrindo ideias fixas sobre a morte desde o ano fatídico de 1907, em que perdeu a filha mais velha e, quase simultaneamente, soube da doença cardíaca que o mataria em 1911. Vimos que, no seu caso, o receio já existia e estava consolidado. Tendo acabado de compor a oitava e a “Canção da Terra”, o histórico anterior de Beethoven, Schubert e do velho Bruckner, com quem convivera em sua juventude, exerceu grande impacto sobre ele. A hipótese do “misticismo judaico”, levantada por Freud para justificar suas próprias superstições, poderia também ser associada a Mahler[12], mas é mais seguro nos atermos à ideia do narcisismo. Segundo o psicanalista, a identificação de uma “superestimação narcísica dos próprios processos psíquicos” no homem moderno nada mais seria que a sensação de onipotência herdada de fases anteriores do desenvolvimento individual (a infância) ou coletivo (a era primitiva do animismo) – noutras palavras, a crença em superstições como a da nona sinfonia poderia ser explicada por resquícios de confiança, ainda ativos, em certos expedientes como a magia, instrumento de transformação subjetiva do mundo ou, mutatis mutandis, de defesa contra seus caprichos[13]. Não seria fora de propósito depositar a culpa pela consolidação da mística da nona sinfonia em Gustav Mahler, o megalomaníaco autor das sinfonias que “abraçavam o mundo inteiro”, agora acometido por uma recém-adquirida obsessão pela morte.
Mito Beethoven ou mito Nona Sinfonia? A questão da ansiedade da influência
Brahms mantinha em seu gabinete um busto de Beethoven. O objeto foi uma espécie de símbolo do legado deixado pelo compositor mais velho, cujo peso teria impedido Brahms de apresentar ao público sua primeira sinfonia por pelo menos 15 anos. A longa gestação da “obra de igreja”, concebida ainda nos primeiros anos de maturidade e terminada depois dos 40, poderia ser explicada pela irresistível comparação a que o jovem compositor se impunha com o antecessor, um homem que disse tudo o que um sinfonista precisaria dizer. Claro que o drama ganhou final feliz, porque o gênio de Brahms conseguiu desembaraçar-se do “gigante marchando” em seu encalço[14] – sua primeira sinfonia chegou a ser apelidada de “Décima de Beethoven” e a superação do bloqueio permitiu a composição, em espaços de tempo relativamente aceitáveis, de outras três. O crítico Harold Bloom diagnosticaria o episódio como manifestação da “ansiedade da influência”, o reflexo dos modelos do passado sobre a psique do artista. De forma geral, a ansiedade da influência – fortemente presente em Brahms, um rigoroso autocrítico – age como uma espécie de corrente arrastada pela alma penada, corroendo em diferentes graus a pretensão de originalidade irrestrita, a autoestima e o impulso criativo. É uma manifestação tão antiga quanto a própria noção do individualismo na arte.
O único denominador comum entre os cinco ou seis casos em questão seria o da proximidade temporal da morte com a composição de uma nona sinfonia
O mito da nona sinfonia vem impressionando compositores e melômanos ao longo de muitas décadas. Trata-se de algo que, como vimos, parece tão ou mais fortemente associado à obsessão pela morte do que à influência de Beethoven. Chega então o momento de tentar diferenciar as duas coisas. O exemplo de Brahms, afinal, não tem relação direta com a nona de Beethoven, mas com a tentativa de se escrever sinfonias à sombra de uma espécie de pai arquetípico, severo e inacessível como um semideus. Não por acaso, insistindo na alegoria, alguns luminares das gerações posteriores a Beethoven optaram por não escrever sinfonias (Chopin, Mussorgsky), deixaram exemplares acanhados ou irrelevantes (Wagner, Grieg) ou trilharam caminhos estéticos muito diferentes (Berlioz, Schumann, Liszt, Bruckner, os russos). Como escreveu o pianista e musicólogo Charles Rosen, “talvez apenas Chopin não se tenha intimidado pela figura de dominadora autoridade que Beethoven representou para as gerações vindouras. Acho provável que a morte de Beethoven tenha acelerado o rápido desenvolvimento de novas tendências estilísticas que já se faziam sentir…”[15]. Essa relação edipiana parece ter sido onipresente: Beethoven foi uma figura grande demais no século XIX para que seus sucessores lhe permanecessem indiferentes. O mito, portanto, consolidou-se com Mahler no início do século XX, mas é subproduto de um fenômeno anterior, algo que o crítico Julian Horton apelidou de “post-beethovenian anxiety”: praticamente meio século de músicos absorvendo, fugindo, negando ou ajustando-se à influência do grande fundador do romantismo e, em seguida, mais décadas de outros músicos trilhando os rumos deixados por aqueles que foram os primeiros receptáculos dessa ansiedade.
O que motivou as reações de Mahler, Shostakovitch, Santoro e outros tantos refere-se, contudo, a outra coisa: o perigo ou iminência do fim antes ou durante da composição da nona, como dito no início deste ensaio. O problema é que tanto a “Sinfonia Coral” como a “Grande”, independentemente de receber o número 8 ou 9, foram concluídas três anos antes da morte de seus criadores, respectivamente em 1824 e 1825. Mais de 70 anos se passaram até que o mundo musical visse, pela primeira vez, um grande sinfonista de fato morrer ao lado da partitura incompleta de sua nona – uma visão romântica que apenas ganhou força com a influência beethoveniana há muito em curso (na verdade já no seu ocaso, graças ao enorme peso de Wagner – outro influenciador – e à iminência do modernismo), como o enorme rio formado pela confluência de dois tributários. Se não houvesse Bruckner e Mahler – ou Schubert, Dvorák, Vaughan Williams, Schnittke – é possível que os compositores viessem a construir alguma mística em torno de quartetos de cordas[16], obras que concentraram seus esforços criativos nos últimos anos e são seus verdadeiros cantos do cisne.
Se as memórias póstumas de Shostakovitch publicadas por Solomon Volkov merecem algum crédito, lemos o compositor afirmar que não existe sentimento mais intenso, mais profundo que o medo da morte[17] – a opinião seguramente provém de um homem com conhecimento de causa. Quando musicou o curto poema de Rilke “Der Tod is gro?” (“A morte é grande”, ou, na mais dramática versão inglesa, “all-powerful is death”) para encerrar a 14ª sinfonia, composta de 11 cantos ligados ao tema da morte, 25 anos haviam passado desde a estreia de sua nona. Em vez de associar a sinfonia nº 9 à morte, como preconiza a versão mais atraente da lenda, é até possível que a influência de Beethoven mais se manifestasse na grandiosidade, na celebração da humanidade e, de certo modo, da vida: nesse sentido, ainda com base nas memórias compiladas por Volkov, Stalin tinha, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a expectativa de uma nona imensa e solene, que exaltasse sua decisiva liderança na vitória soviética sobre o fascismo, e ficou enfurecido com Shostakovitch. “Eu não poderia escrever uma apoteose para Stalin, simplesmente não poderia”, teria dito o compositor[18]. Nessas condições, a evocação da morte ficaria reservada para o momento mais apropriado, ou seja, para o fim. Por isso suas sinfonias de fato “lúgubres” são a 14ª e a 15ª, as últimas. Mas tudo isso é especulação, talvez um problema de impossível resposta: a forçada leveza da nona de Shostakovitch pode, afinal, ter mesmo servido para ludibriar a morte, e não “negar” Stalin e Beethoven.
Os diferentes modos com que os mestres lidaram com a aproximação da nona sinfonia são, repito, pessoais demais para caracterizarem algum tipo de reação uniforme, coletiva ao sobrenatural – ou, noutros termos, à “ameaça” da morte. É muito difícil identificar um substrato comum capaz de reunir, num único caldo, a influência de Beethoven, a fixação mórbida, a superstição, mesmo o narcisismo que Freud via como parte integrante da psique do artista. Diante dessa vaga iminência do fim, vemos o comportamento humorístico, quase insolente, de Shostakovitch; o pavor resignado de Mahler; a “malandragem” reverencial de Santoro; e a nostalgia conformada e realista de uma vida quase concluída, no caso de Vaughan Williams, um sinfonista altamente respeitável que concluiu sua nona aos 86 anos de idade. É certo que a sinfonia como gênero, como instituição, conheceu o declínio ao longo do século XX (embora insista em renascer através de inúmeros representantes), o que não parece guardar mais muita relação com supostas ansiedades com Beethoven. Ao mesmo tempo, nenhum autor abandonou a composição de suas sinfonias por causa de uma maldição.
Agradeço a meu amigo e colega George de Oliveira Marques por algumas das ideias aqui apresentadas.
Notas
[1] Segundo relato do falecido maestro Silvio Barbato.
[2] Floros, Constantin. “Gustav Mahler: the Symphonies”. Nova Jersey: Amadeus Press, 1993. Pág. 244. Tradução minha. Floros transcreve citações do diário da mulher de Mahler, Alma.
[3] Leonard Bernstein qualificou a nona de Shostakovitch como uma “witty comedy in a theatre”. Tanto o russo como Santoro enxertaram referências explícitas à nona de Beethoven em suas respectivas sinfonias de mesmo número.
[4] Em alguns catálogos antigos, a “Grande” chegou a ser numerada como 7ª e a “Inacabada” como 8ª, apesar de ter sido escrita pelo menos três anos antes. A “Neue Schubert Ausgabe” (“Nova Edição de Schubert”), a compilação mais completa das obras do compositor, lista apenas oito sinfonias.
[5] O russo Schnittke também deixou uma sinfonia “0”, que costuma ser incluída em sua antologia sinfônica.
[6] A produção sinfônica durante o classicismo orientava-se, do ponto de vista estético, artístico e até social, por propósitos bem diferentes daqueles com que nos acostumamos a partir de Beethoven. As primeiras sinfonias de Haydn e Mozart são peças quase barrocas, curtas e rotineiras, estrutural e emocionalmente muito mais despretensiosas que as correspondentes de Beethoven. As tardias, contudo – especialmente as de Mozart – já apresentam pathos e complexidade suficientes para se compararem às grandes sinfonias do século XIX.
[7] Gay, Peter. “Freud: uma Vida para o nosso Tempo”. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Págs. 69-70.
[8] “Freud analisou (…) suas próprias superstições como um desejo reprimido de imortalidade”, diz Gay. Idem, pág. 70.
[9] Freud, Sigmund. “O Inquietante”. In Obras Completas, vol. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Pág. 355.
[10] Freud, Sigmund. “Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana”. Porto Alegre: L&PM Editores, 2017. Pág. 181
[11] ______“Totem e Tabu”. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. Pág. 73
[12] Gay, Peter. Op. cit, pág. 70
[13] Tal ideia é desenvolvida tanto em “O Inquietante” (op. cit., pág. 359) como no mais conhecido ensaio anterior, “Totem e Tabu”. Freud usa em ambos os trabalhos o conceito da “onipotência do pensamento” para designar a crença primitiva de que nós, humanos, somos dotados de poderes para lidar com as forças espirituais que povoam a natureza. Existiria um paralelo conceitual entre o animismo pré-histórico e a fase narcísica da criança, na qual ela crê na capacidade subjetiva de transformação do mundo ao redor. Ainda segundo Freud, “Apenas num âmbito a ‘onipotência dos pensamentos’ foi conservada em nossa cultura, no âmbito da arte. Unicamente na arte ainda sucede que um homem consumido por desejos realize algo semelhante à satisfação deles, e que essa atividade lúdica provoque – graças à ilusão artística – efeitos emocionais como se fosse algo real. As pessoas falam, com justiça, do feitiço da arte, e comparam o artista a um feiticeiro. Mas essa comparação é talvez mais significativa do que pretende ser. A arte, que certamente não iniciou como l’art pour l’art, esteve originalmente a serviço de tendências que hoje se acham em grande parte extintas. Entre elas, podemos suspeitar, muitas eram intenções mágicas”. In “Totem e Tabu”, págs. 90-1
[14] Conforme teria dito ao maestro Hermann Levi.
[15] Rosen, Charles. “The Romantic Generation”. Cambridge, Massachussetts: Harvard University Press, 1998. Pág. ix. Tradução minha.
[16] Talvez não pelo critério numérico, pois apenas Beethoven, se incluída a Grande Fuga, e Villa-Lobos, bem entrado no século XX, deixaram 17 quartetos. Darius Milhaud teria composto seu 18º para deliberadamente “ultrapassar” Beethoven.
[17] Volkov, Solomon (ed.). “Testimony: the Memoirs of Dmitri Shostakovich”. Nova York: Limelight Editions, 2004. Pág. 180.
[18] Haveria ainda outro motivo, além daqueles aqui expostos, para a criação de uma nona satírica: depois do grande êxito da sétima e da oitava sinfonias no Ocidente, Shostakovitch temia que Stalin e os compositores oficiais do regime se sentissem enciumados e ameaçados por sua popularidade excessiva: “um novo sucesso significaria um novo prego no caixão”. Volkov, Solomon. Op. cit., pág. 139.