José Eduardo Martins nasceu em 1938 em São Paulo, onde estudou com o professor russo José Kliass. Depois, em Paris, durante três anos e meio, foi aluno de Marguerite Long, Jean Doyen e Louis Saguer. Pianista consumado, realizou ciclos com a obra integral de Rameau, Debussy, Mussórgski e Francisco de Lacerda, bem como apresentou em primeira audição mais de duzentas composições contemporâneas. Tem 25 discos gravados na Bélgica, Bulgária e em Portugal.
Entre os livros publicados pelo pianista, salientam-se O som pianístico de Claude Debussy (Novas Metas, 1982), Encontros Sob Música (CEJUP, 1990) e Henrique Oswald – Músico de uma saga romântica (Edusp, 1995), dedicado ao compositor brasileiro e publicado durante a docência do autor na USP (1981-2004). Tem dois livros publicados pela Universidade de Coimbra e um pela Université Paris-Sorbonne.
Professor Titular aposentado da Escola de Comunicação e Artes da USP, é também Doutor Honoris Causa da Universidade Estatal Constantin Brancusi, na Romênia. Foi condecorado com a ordem de Officier de l’ordre de la Couronne por deliberação do rei Albert II da Bélgica e com a Ordem do Rio Branco do Brasil. É Acadêmico Honorário da Academia Brasileira de Música
Desde 2007, ele mantém um blog semanal em que discute questões de cultura musical e crítica erudita em geral. É casado com a também pianista Regina Normanha Martins, com a qual tem duas filhas.
Suplemento Cultura
Em sua produção contam-se mais de 250 artigos, em particular os publicados no suplemento Cultura do jornal O Estado de S. Paulo. Conta o pianista que ele e os diversos colaboradores do Suplemento (Sábato Magaldi, Flávio Gikovate, Décio de Almeida Prado, Bóris Schnaiderman, José Honório Rodrigues, José Sebastião Witter, Walter Zanini e outros) reuniam-se com o diretor Nilo Scalzo para preparar a pauta do que seria publicado semanalmente e o número aproximado de páginas que cada integrante se disporia a escrever. Ele colaborou com a publicação durante mais de uma década (1980-1991).
É justamente em seu livro Encontros sob Música, com prefácio de Nilo Scalzo, que se encontram os artigos referentes a particularidades de alguns de seus compositores favoritos, a saber: Jean-Philippe Rameau (1683-1764), J. S. Bach (1685-1750), Domenico Scarlatti (1685-1757), Franz Liszt (1811-1886), Modest Mussórgski (1839-1881), Claude Debussy (1862-1918), Maurice Ravel (1875-1937), Henrique Oswald (1852-1931) e Francisco Mignone (1897-1986).
E o que nos diz de Carlos Seixas (1704-1742), com quem o senhor tem tanta afinidade e a quem dedicou dois CDs com 23 sonatas?
Na minha adolescência, recebi da famosa pianista polonesa Felicja Blumental (1808-1901), que residiu durante certo período no Brasil, um LP com sonatas para cravo de Carlos Seixas que me deixou atônito. No primeiro recital que apresentei em Lisboa (1959), a convite do notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), iniciei com duas sonatas de Carlos Seixas, interpretadas ao piano. Em 2004 gravei em Mullen, na Bélgica, para o selo De Rode Pomp, dois CDs com 23 sonatas de Seixas, executadas ao piano. Carlos Seixas, contemporâneo de Domenico Scarlatti, que trocou Roma por Lisboa durante uns dez anos, foi um dos maiores musicistas do barroco português, tendo composto 105 sonatas para teclado publicadas, sendo que centenas desapareceram no terremoto de 1775. Não sei por que os intérpretes de Portugal pouco o divulgam ao piano.
Com que idade iniciou sua carreira como pianista e quais foram seus momentos mais marcantes?
Iniciei os estudos pianísticos aos nove anos. Na adolescência comecei a tocar regularmente o excelso repertório padrão: Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin, Liszt, Schumann, Brahms… Em 1962 dei um recital no Teatro Municipal e executei a majestosa Sonata em Sol Maior op. 37, de Tchaikovsky. O ilustre crítico João Caldeira Filho, de O Estado de S. Paulo, que foi meu professor, publicou uma nota em que dizia não compreender a minha adesão a “uma obra de tal insignificância”. Isso me afetou muito àquela altura e fiquei três anos sem tocar. Certo dia fui a Ribeirão Preto, onde morava uma minha prima, professora de piano, que me disse: “Há uma surpresa para você”. Atrás do piano meia-cauda havia uma estante de livros e o que eu vejo? A obra integral para cravo de Rameau, um dos meus compositores favoritos, com que a prima me presenteou. Sentei ao piano e toquei a primeira peça da obra, não contendo as lágrimas. “Vou recomeçar”, pensei, “mas só interpretando composições de que eu gosto, após debruçar-me além da partitura”. Fui o terceiro pianista a gravar a obra integral de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano (Bulgária, 1997) e o primeiro a gravar as seis Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau (1660-1722), na Bélgica. Do período barroco ainda gravaria os dois concertos para dois teclados de J.S.Bach, em Sófia, na Bulgária, com meu irmão João Carlos Martins, completando a integral de Bach por ele gravada.
Já que falou em seu irmão, também pianista e regente famoso, diga-nos se por acaso há alguma linha hereditária de musicistas em sua família.
Bem, propriamente hereditária, não sei dizer, mas meu pai, nascido no Minho, em Portugal, era um aficionado por música e desde a nossa infância sempre nos incentivou com o apoio de nossa mãe.
Quando Henrique Oswald entrou em seu repertório?
Tardiamente. O compositor Sérgio Vasconcellos-Corrêa (1934) convidou-me para dar um recital apenas com músicas brasileiras em uma temporada do SESI (1978). Fui à Casa Amadeus, no centro da cidade, procurar obras de Henrique Oswald. “Aqui estão as partituras mais antigas”, disse-me o vendedor. Adquiri todas e comecei a pesquisar as suas composições para piano. O recital programado foi inteiramente dedicado a Oswald. Gostei tanto dessas criações que falei ao Régis Duprat (1930-2021) — cofundador da Orquestra de Câmara de São Paulo — que eu cogitava me aprofundar em sua obra. Disse-me que a neta do compositor, Maria Isabel Oswald Monteiro, tinha acervo precioso do avô no Rio de Janeiro. Fui até a sua morada e mal entrei vi o piano de cauda de teclas amareladas que pertencera a Henrique Oswald. Aproximei-me do piano e toquei Il Neige!, obra com a qual Oswald obteve o 1º prêmio no concurso promovido em 1902 pelo jornal parisiense Le Figaro, que recebeu 647 músicas para piano vindas de todos os cantos do mundo. No júri, Camille Saint-Saëns, Gabriel Fauré e Louis Diemer. A neta ficou comovida. Convidou-me para jantar e me presenteou com uma partitura manuscrita autógrafa (1886) de Oswald, “Berceuse, a mia carissima madre”. Meu doutorado e as provas de professor titular na USP tiveram como tema Henrique Oswald. Editei partituras, escrevi livro sobre Oswald e gravei cinco LPs e quatro CDs dedicados às suas extraordinárias criações para piano solo e camerísticas. A tese de doutorado foi a primeira sobre Oswald (1988). Hoje já são mais de dez defendidas por especialistas no Brasil e no exterior. Segundo o excelente compositor francês François Servenière (1961-), é lamentável ser Henrique Oswald desconhecido no mundo.
Curioso realmente, quantas coincidências! Mas diga-nos, o acaso teve papel importante em sua vida?
Na vida, na atividade pianística. São várias longas histórias. Mencionaria uma decisiva. Aos 18 de Novembro de 1995 houve um longo concerto no Conservatório Real de Gent, na Bélgica, inteiramente dedicado a Henrique Oswald. Participei na extensa primeira parte acompanhando ótimos músicos belgas em obras camerísticas do homenageado: Sonata para violoncelo e piano op.44, Quarteto com piano op.26, as cinco Canções de Ofélia para soprano e piano e interpretando algumas peças para piano solo. Na segunda parte, o coral Novecanto apresentou na excelência a Missa a cappella, do nosso compositor. Após o concerto foi lançado um CD com a integral para violino e piano do compositor, que o excelente violinista Paul Klinck e eu graváramos meses antes em Bruxelas. Mal dormi naquela inesquecível noite, a pensar que teria sido um sonho, pois nada mais me ligava à cidade, visto que retornaria ao Brasil a seguir. Pela manhã, ao colocar a mala no bagageiro do táxi, no meio fio da rua estaciona um carro, dele descendo um autêntico flamengo que eu desconhecia. Felicitou-me pelo concerto, perguntando-me a que horas sairia meu voo em Bruxelas. Disse-lhe que sempre chego aos aeroportos quatro horas antes da partida. André Posman retirou a valise do táxi, levou-me à sede da sua empresa de concertos e gravações, De Rode Pomp, e marcou recital para o ano seguinte, conduzindo-me a seguir ao aeroporto Zaventen, em Bruxelas. Ao todo foram 24 viagens à Bélgica (1995-2023) para recitais, turnês pelo país e gravações de CDs, sempre sob os cuidados do excepcional engenheiro de som Johan Kennivé na mágica capela de Saint-Hilarius, em Mullem, na planície flamenga.
Como se deu o seu ingresso na USP?
Quando Olivier Toni (1926-2017), que foi professor de Gilberto Mendes, me convidou para lecionar na USP, dediquei-me ao ensino, continuando a atividade pianística. Somava-se à pesquisa, aos recitais e às gravações no Exterior. Como disse anteriormente, em determinado momento (1967) decidi não mais interpretar uma só música se dela não gostasse imenso. Meus colegas uspianos me privilegiaram com criações relevantes: Willy Corrêa de Oliveira (1938-), Mario Ficarelli (1935-2014) e Gilberto Mendes (1922-2016), um verdadeiro amigo-irmão, que me dedicou 30 peças para piano, todas apresentadas em público.
Os biógrafos dizem, por exemplo, que o fundamento da obra de Debussy foi a poesia. Quais outras considerações suas sobre a obra de Debussy em sua trajetória?
Sim, a poesia teve imensa importância na obra de Debussy. Ao longo de muitas décadas taxaram Claude Debussy (1862-1918) como impressionista, mercê do movimento pictórico. Na realidade Debussy teve ligações com os poetas simbolistas, a pontificar Mallarmé. A esse respeito posso contar um caso curioso. O insigne musicólogo François Lesure (1923-2001), autor de vários livros sobre o compositor francês e nome maior no desvelamento do compositor na segunda metade do século XX, sempre descartou o rótulo de impressionista para Debussy. Participou do júri da minha Banca de Livre-docência na USP que teve como tema “O idiomático técnico-pianístico na obra para piano de Debussy”. Ele era o Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale e presidente do Centre de documentation Claude Debussy. Eu havia interpretado as integrais para piano (quatro recitais) de Debussy e de Mussórgski. Nas minhas pesquisas sobre os dois grandes mestres, encontrei grandes afinidades entre as obras dos dois, além das conhecidas até então. Lembro-me de Francisco Mignone, que, em “A parte do anjo”, escreveu em 1947: “Originalidade está na lógica da criação e se Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet!), e uma parte terça parte de Mussórgski, bastou-lhe botar uma parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola”.
Escrevi um artigo que foi publicado em Paris, (Cahiers Debussy nº 9, 1985), mostrando que La boîte à Joujoux (1913) de Debussy descendia dos Quadros de uma exposição (1874) de Mussórgski. A sua babá (niánia) contava contos e cantava canções do folclore russo-francês à criança e Mussórgski tardiamente menciona o fato em uma de suas cartas. Detectei que o tema da Porta de Kiev, último quadro dos Quadros de uma Exposição, decorre da célebre canção Frère Jacques. François Lesure entendeu como achado inédito. Há vários exemplos em La boîte à Joujoux que ligam as criações de Debussy ao mestre russo, conscientemente ou não. Friso que as duas obras têm o caráter lúdico. Aliás, nos Cahiers Debussy nº 7, 1983, teci comparações entre as linguagens musicais de Claude Debussy e de outro grande compositor russo, Alexandre Scriabin (1872-1915), mormente nos anos finais dos dois compositores que não se conheceram.
E hoje, o que o senhor acha da MPB?
Entendo que houve uma sensível queda de qualidade, se pensarmos em Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues, Pixinguinha, Adoniran Barbosa, Tom Jobim… Hoje a sigla está desgastada, perdeu-se uma das mais preciosas marcas da autêntica MPB, a espontaneidade, máxime após a invasão do funk, do rap, do sertanejo descaracterizado e de outras manifestações que levam multidões a presenciar a antítese da música popular brasileira, que estava sob a égide da emoção. Os megashows não apenas têm altos decibéis, como parafernália cênica irmanada que camufla a ausência do que se entende como música. Alegria dos patrocinadores, empresários e dos “artistas”. A ascensão do efêmero…
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