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O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky fez um discurso surpresa durante a noite do Grammy 2022. Ali, dirigiu um pedido a uma plateia espantada com a sua inesperada presença: “Em nossa terra, estamos lutando contra a Rússia, que trouxe um silêncio horrível com suas bombas. O triste silêncio da morte. Preencham esse silêncio com sua música. Preencham-no agora. Contem nossas histórias. Digam a todos a verdade sobre essa guerra […]. Por favor, apoiem-nos de qualquer maneira possível. De todas as formas, mas não com o silêncio. Então também haverá paz em todas as cidades destruídas por esta guerra.”
A guerra, porém, não é apenas silêncio. A guerra tem um som. E não é só o rumor de bombas, os gritos, as sirenes antiaéreas, as explosões, o pranto ou os tiros. Há também os hinos marciais, os clarins, o rufar de tambores, a cadência da marcha e os cânticos de batalha que animam as tropas e amedrontam os inimigos. Essa é a trágica e estrondosa melodia da guerra há muitos séculos.
Em 2010, o popstar Simon Bikindi, célebre cantor e compositor de Ruanda, espécie de Michael Jackson local e rosto mais visível do Ministério da Juventude e Esporte do país africano destruído pela guerra civil, foi condenado a quinze anos de prisão, por crime contra a humanidade, por um tribunal das Nações Unidas. O seu delito? Incitar de maneira grave, repetitiva, direta e pública, com composições musicais distribuídas em fitas cassete e divulgadas em alto-falantes, shows ao vivo e gravações na Rádio Ruanda, os seus compatriotas da etnia hutu ao feroz genocídio da etnia tutsi, durante os massacres de 1994. Para os magistrados do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, em Haia, na Holanda, Simon Bikindi, ao criar a trilha sonora do flagelo ruandense, foi culpado de incitamento ao genocídio com suas obras que misturavam letras de rap a melodias tradicionais africanas.
Nunca antes um tribunal internacional havia condenado um músico pelo teor de suas músicas, embora esta não fosse, nem de longe, a primeira vez que a música tivesse sido utilizada para afrontar direitos humanos, como arma de guerra, para fomentar o ódio racial ou como instrumento de tortura.
Exemplos antigos e recentes não são poucos, desde as estrepitosas Trombetas de Jericó, da Bíblia, passando pela humilhante “Tauza”, a dança em que prisioneiros políticos do Apartheid sulafricano eram obrigados dançar nus, diante de outros detentos e policiais, a fim de expor potenciais objetos escondidos em suas partes íntimas, chegando até mesmo à utilização da música como meio de tortura psicológica em prisões em Abu Grahib, Guantánamo ou no Gulag soviético. O drama de músicos judeus que eram obrigados a tocar para seus algozes durante as festas do III Reich ou de prisioneiras políticas argentinas que tinham que dançar com oficiais da ditadura militar em discotecas e centros de diversão para as tropas tampouco podem ser jamais esquecidos.
Decididamente, nem toda música significa elevação intelectual, moral ou espiritual. Música é uma ação profundamente social, nunca é inocente, e, como todo resultado da conduta humana, é ambígua, pode ser explorada pela ideologia e configurar-se como ferramenta ou resultado de nacionalismos, extremismos e toda sorte de violência.
Mas e quanto à paz: A paz tem um som? Esse som seria um ruído ou poderia ser música? Aliás, pode uma melodia constituir um caminho para a paz? A música pode ser um instrumento de peacemaking, peacekeeping, peacebuilding e peace enforcement?
Naquela mesma Ruanda de Simon Bikindi, anos antes de sua condenação, a musicista Odile Gakire (Kiki) Katese criou, em 2004, um grupo de percussão tradicional formado apenas por mulheres chamado Ingoma Nshya. Todas as mulheres eram sobreviventes da guerra civil ruandesa de 1994 e egressas de ambos os lados do conflito. Algumas daquelas percussionistas que haviam perdido parentes e entes queridos tocavam seus tambores lado a lado com parentes de genocidas, em uma demonstração eloquente do poder da música de reunir, aproximar e produzir harmonia. Para além disso, a percussão tradicional em Ruanda era reservada apenas para homens, e o grupo Ingoma Nshya demonstrou que, levando as mulheres a um lugar de destaque, as culturas podem mudar e evoluir.[1]
Esse, obviamente, não é um exemplo único. Músicos de muitos matizes notabilizaram-se contra a guerra e a favor da paz em diversas ocasiões. Na segunda metade do século XX, o violoncelista catalão Pablo Casals destacou-se eloquentemente contra todos os tipos de guerras e regimes opressores. Casals chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 1958, recebeu a Medalha da Paz das Nações Unidas e até compôs um Hino às Nações Unidas, em 1971, encomendado pelo secretário-geral U Thant. Bob Dylan, vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 2016 e autor de clássicos pacifistas como “Masters of War” e “Blowing in the Wind”, foi figura destacada nos protestos contra a Guerra no Vietnã. Em 2006, o violoncelista Yo-Yo Ma foi designado pela ONU como “Mensageiro da Paz”. Logo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, o violoncelista russo Mstislav Rostropovich tocou uma composição de J. S. Bach em uma Berlim novamente reunificada. Não se pode esquecer também a West Eastern Divan Orchestra, sinfônica fundada em 1999 pelo maestro Daniel Barenboim e o escritor Edward Said com o propósito de promover o diálogo entre músicos de países e culturas historicamente inimigos. Agora, durante a tragédia da guerra na Ucrânia, as televisões do mundo mostraram um violoncelista anônimo tocando seu instrumento como um grito desesperado de paz.
Mas qual é o sentido dessas iniciativas? Qual o poder dessas performances de música pela paz? Isso tem algum efeito prático? O que, de fato, pode um musicista com seu instrumento contra exércitos e canhões? Isso, por acaso, é diferente daquilo que pode um intelectual com a sua caneta ou um manifestante com o seu megafone?
W. H. Auden guardava uma visão pessimista do poder da arte e dos artistas. Certa vez, ao ser questionado, disse: “Eu sei que, mesmo com todos os versos que escrevi, mesmo com todas as posições que tomei […], eu não salvei um único judeu… A história política do mundo teria sido exatamente a mesma se não tivesse sido escrito um único poema, nem pintado um único quadro, nem composto um único compasso de música.”[2]
Perdoem-me a ousadia, mas não posso concordar com o poeta inglês. A arte, a música, e os artistas podem muito, caso contrário não seriam tão perseguidos, mortos, presos ou censurados pelas ditaduras ao longo da história. Portanto, há sim um sentido profundo, uma importância enorme e uma utilidade inegável nessas performances de “música pela paz”.
Quando um músico executa uma melodia contra a guerra, ele nos permite enxergar, em primeiro lugar, que a música é uma excelente metáfora para um “processo de paz”, já que é ela própria, a criação musical, o resultado da resolução de conflitos entre notas, entre instrumentos, entre interpretações, entre dissonâncias que dialogam e se harmonizam. Com efeito, a música não elimina as diferenças, mas sim as soma e as reaproxima, produzindo empatia, entendimento mútuo e transformação, convertendo em consonância e harmonia o que antes era apenas conflito, desarmonia, desafinação. Em uma orquestra, por exemplo, seria trágico silenciar o violinista para escutar apenas os violoncelos. A diversidade é a maior riqueza de qualquer grupo musical.
Em segundo lugar, um concerto demonstra que, apesar de o senso comum dizer que a música é uma linguagem universal, a cultura musical está fortemente ligada às tradições locais, à cultura da região e ao sentido de pertencimento a uma comunidade. Repartir uma melodia comum ou entoar um ritmo folclórico reforça o senso de acolhimento, quebra percepções de dissimilaridade e cria um sentido de solidariedade e um sentimento de reconciliação. Uma performance musical, muitas vezes, permite ouvir uma expressiva convergência de gestos musicais que enfatizam o sentido de fraternidade. O mesmo sentido de fraternidade presente, por exemplo, no quarto movimento da 9.ª sinfonia de Beethoven, o Hino à Alegria, que sempre nos encanta e emociona a todos desde as suas notas iniciais.
E por falar em emoção, um terceiro ponto pode ser citado no profundo e eloquente diálogo entre música e paz. Dado o apelo emocional que as manifestações musicais apresentam, um concerto demonstra que a música tem o condão de amplificar ações em favor da paz. Ações que vão desde as demonstrações anti-guerra, passando pelas afirmações da própria humanidade em meio ao conflito e o apoio à cicatrização dos traumas, até a promoção do empoderamento da comunidade e a expressão e a valorização de grupos marginalizados. Nesse quadro, a música pode, sem dúvida, apoiar e reforçar os processos de peacemaking, peacekeeping, peacebuilding e peace enforcement.
Uma apresentação musical ainda proporciona uma quarta reflexão, agora sobre a privilegiada conexão entre música e humanidade. Uma peça musical bem composta e bem executada é uma grande proeza do espírito humano — tanto quanto uma pintura de Leonardo ou um escultura de Nicola Pisano, por exemplo. Mas, no caso da performance musical, é como se estivéssemos sentados precisamente ao lado do grande mestre Nicola Pisano no exato momento em que ele maneja o martelo e o cinzel para esculpir o majestoso púlpito do Batistério de Pisa, jóia do gótico e uma das pedras angulares da escultura italiana. Ou seja: há aqui uma mensagem de otimismo: “ainda somos capazes”. Nunca é fácil, mas é possível. Não é fácil porque, como dizia Vladimir Horowitz, tocar bem demanda razão, coração e meios técnicos em igual medida e proporção: “Sem razão, será um fiasco; sem técnica, um amador; sem coração, máquina.” Essa complexa modulação entre razão, técnica e emoção requer treino, ensaio, investimento em tempo e estudo. Tudo isso não está longe dos processos de peacemaking, peacekeeping, peacebuilding e peace enforcement. Posso dizer isso com a experiência pessoal de quem foi assessor da Missão de Paz da ONU em Timor Leste — um país em que a cultura musical é rica e muito serviu para a sua reconstrução.
Ao facilitar as conexões entre as pessoas, ao ultrapassar diferenças, ao permitir a memória e ao reconstruir relacionamentos fraturados pela violência, não tenho dúvidas de que o soft power da música ocupa um lugar privilegiado nos processos de paz, em qualquer parte do mundo.
Não tenho dúvidas também de que o som da paz, nas sociedades multiétnicas, multirreligiosas e multiculturais é inclusivo, diverso, dialógico, polifônico, múltiplo, plural. Da mesma forma que não há apenas um único caminho para a paz, também não existe apenas uma única música para a paz. Há várias trilhas sonoras possíveis. Porém, digo sem receio de errar, que, nessa trilha sonora da paz, há de haver um espaço generoso para um pequeno trecho de ópera: a última frase do personagem Marcello, o pintor de “La Bohème”, de Giacomo Puccini, um fragmento que deve constituir o apelo permanente para todos os nossos esforços, grandes e pequenos, em busca da paz: “Coraggio!” “Coraggio!”
Com o eco dessa pequena frase, ressoando em nossos ouvidos, ainda há tempo para uma última lição que a música nos oferece: não pode haver paz sem audição. Ouvir o outro, escutar a diferença, é essencial na música e na paz...
Notas:
[1] URBAIN, Olivier. Overcoming Challenges to Music’s Role in Peacebuilding. Peace Review: A Journal of Social Justice, 31:332-340, 2019, p. 334.
[2] PHILLIPS, Gerald L. Can There Be “Music For Peace”? International Journal on World Peace. v. XXI, n. 2, June 2004.