por Paulo de Tarso Salles
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A resiliente vida cultural do país, e mais especificamente do estado de São Paulo, se prepara para celebrar um evento-chave na história das artes brasileiras, o centenário da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. Àquela época, como agora, o mundo estava às voltas com uma pandemia, a gripe espanhola, que entre 1918 e 1919 ceifou no mínimo 50 milhões de vidas; além disso, avaliava-se os resultados político-econômicos da Primeira Guerra (1914-1918), enquanto o “ovo da serpente” do fascismo ia sendo chocado. Um festival como a Semana representava quase uma ressurreição, uma reflexão sobre os novos rumos a serem tomados, os cuidados para que não se processasse uma restauração da antiga ordem.
Esse evento, capitaneado por uma insurgente parcela da elite econômica paulistana, enriquecida pela exportação do café, esclarecida nos salões, exposições e concertos parisienses, simboliza o desejo de sacudir o marasmo da arte acadêmica que predominava em todos os setores de expressão no Brasil, passando pela literatura, pela pintura, escultura, teatro, música etc.
Quis o destino que a repercussão obtida pela exposição individual de Anita Malfatti, realizada entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918, desencadeasse um debate que reverberou nas páginas de “O Estadinho”, edição vespertina de O Estado de São Paulo, onde Monteiro Lobato escreveu o célebre comentário “Paranoia ou mistificação?” (20/12/1917), dando voz ao pensamento conservador, que tomava como ponto de partida a distinção entre arte “normal” e “anormal”.[1] Por outro lado, a exposição atraiu admiradores como Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e Mário de Andrade, que logo se tornaram porta-vozes da nova sensibilidade que emergia nas obras expostas por Anita Malfatti.
Essa aproximação iria levar à proposta de um evento reunindo diversas manifestações artísticas. Quem convidar como representante da arte musical, além de Guiomar Novaes, pianista notável que se encarregaria de apresentar obras de Debussy? Naquele momento, Villa-Lobos era o único compositor cuja obra expressava uma estética compatível com a dos demais modernistas. Vasco Mariz, diplomata e musicólogo, primeiro biógrafo de Villa-Lobos, conta que o compositor foi convidado a participar da Semana por Graça Aranha e Ronald de Carvalho.[2] Acompanhado por alguns de seus principais intérpretes no Rio de Janeiro (a esposa Lucília e Ernani Braga, pianistas; a violinista Paulina D’Ambrosio e outros grandes instrumentistas e cantores), ele realizou apresentações em todos os três dias do festival...
O convite a Villa-Lobos foi mediado por alguns contatos que ele havia feito desde sua estreia como compositor em 1915. Depois de uma amostra de sua incipiente produção camerística, que no entanto já foi suficiente para causar espanto em críticos conservadores renomados como Cernicchiaro, Borgongino e Guanabarino,[3] Villa-Lobos superou outra barreira, apresentando um programa com obras sinfônicas e até trechos de uma ópera (Izaht) em um concerto organizado em agosto de 1918. Mariz relata a incompreensão por parte da crítica e até mesmo de músicos da orquestra; nesse meio tempo, Villa-Lobos conheceu o famoso pianista polonês Arthur Rubinstein, que ficou curioso por conhecer aquele jovem compositor que causava tanta polêmica.
Ao ouvir algumas obras que Villa-Lobos lhe mostrou, Rubinstein ficou convencido que estava diante de um talento notável, que teria muito a ganhar se pudesse apresentar suas obras na Europa e conhecer as tendências nos grandes centros. Rubinstein introduziu o compositor aos mecenas da elite carioca, notadamente a família Guinle. A partir de então, as portas começaram a se abrir. Em julho de 1919, um grande concerto em homenagem ao presidente Epitácio Pessoa, pelo papel significante que desempenhou nas negociações do Tratado de Versalhes. Esse evento originou a encomenda de três poemas sinfônicos que comemoravam o final da Primeira Guerra sobre argumentos escritos por Luiz Gastão d’Escragnolle Dória: “A Guerra”, “A Vitória” e “A Paz”. Os compositores inicialmente convidados foram respectivamente Alberto Nepomuceno, João Octaviano Gonçalves e Francisco Braga. Nepomuceno abandonou o projeto, após desavenças com um dos organizadores; faltando pouco mais de um mês para o concerto, Villa-Lobos foi convidado em seu lugar para compor o poema sinfônico “A Guerra”. Apenas os dois movimentos iniciais, “A vida e o labor” e “Intrigas e cochichos” foram apresentados, mas a recepção pelo público e crítica foi boa. Paulo Guérios observa que essa obra, que posteriormente foi rebatizada como Sinfonia nº 3, deu maior visibilidade à crescente produção villalobiana.[4]
No entanto, a incompreensão dos críticos ainda estava longe de acabar. Tendo estabelecido um canal direto de comunicação com o presidente Epitácio Pessoa, Villa-Lobos propôs a composição do ciclo integral de três sinfonias, “A Guerra”, “A Vitória” e “A Paz”, para homenagear o casal real belga em visita ao Rio de Janeiro em 1920. Diplomaticamente, Pessoa observou que era preciso deixar espaço também para outros músicos, concedendo que “A Guerra” e “A Vitória” fossem realizadas, dentro de um programa extenso que incluiu os hinos nacionais belga e brasileiro, a Oração à Pátria de Francisco Braga, Calabar de Elpídio Pereira, Bebê s’endort de Henrique Oswald, e Anoitece, de Alberto Nepomuceno. Villa-Lobos revelou sua expectativa positiva com relação ao evento em uma entrevista publicada no mesmo dia do concerto:
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[…] pela vitória que obtive na execução da minha primeira sinfonia (A Guerra), espero a paz com a segunda (A Vitória), assim como prevejo a minha independência, quando se executar a terceira sinfonia, A Paz” (Villa-Lobos, A Noite, Rio de Janeiro, 30/09/1920).
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Em relação à estreia dos dois movimentos iniciais, “A Guerra” apresentava como novidade o terceiro movimento, “A Batalha”, aonde o compositor ia ainda mais longe no campo das representações sonoras, buscando descrever a violência do conflito. Alguns acréscimos viriam tempos depois: a parte para coro ad libitum, remanescente do acervo do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, datada de 1944, aparentemente não fazia parte da concepção inicial de “A Batalha”, mas é bastante sugestiva e ainda permanece inédita, ao menos em gravações; um quarto movimento foi acrescentado na terceira posição, “Sofrimento”, mantendo “A Batalha” como o finale.
No movimento final de “A Guerra”, Villa-Lobos emprega todo o arsenal de tópicos musicais militares: fanfarras, cavalgadas, heroísmo. Após uma curta introdução de quatro compassos, reaparece o tema cíclico (apresentado no primeiro movimento e uma aplicação direta do método cíclico de Vincent d’Indy, sistematizado no tratado Cours de Composition Musicale, que Villa-Lobos estudou desde 1914) nos trombones. Após uma exploração desse material, as cordas apresentam um novo tema, de caráter lírico exaltado, com características da modinha brasileira, mas pontuada por “explosões” de pratos e bumbo (cf. gravação de Isaac Karabtchevsky com a OSESP, 1:54, que servirá como referência para as observações seguintes). Curiosamente, esse tema é explorado em “Sofrimento”, o movimento acrescentado nos anos 1940.
Em seguida, uma transição faz referência ao “estilo turco”, com uso da percussão e fanfarras (a partir dos 3:09). Novas “explosões” do bumbo anunciam a citação do Hino Nacional Brasileiro, em contraponto com a “Marselhesa” (4:00), que finalmente se sobressai; nesse ponto (4:32) a figuração pontuada do hino brasileiro surpreendentemente migra para o registro agudo dos violinos e parece citar a abertura da ópera Tannhäuser de Richard Wagner.
O Rei Alberto I, um condecorado herói de guerra que comandou a resistência belga durante os três anos de invasão alemã, aparentemente não gostou do que ouviu e deixou o teatro após a audição de “A Guerra”, antes mesmo que “A Vitória” fosse apresentada, levando consigo Epitácio Pessoa e toda a plateia, que quis se mostrar sintonizada com o gosto do monarca (cf. Jornal do Commercio, sexta-feira, 1/10/1920). Não se sabe qual foi o motivo da saída do rei, mas ele provavelmente se ofendeu com a citação de Wagner, um ícone da dominação alemã, mais do que por alguma questão estética. A pífia participação do Brasil no conflito armado, apreciado à distância na leitura de jornais ou informes no rádio, certamente resultou nessa gafe, que nem deve ter passado pela cabeça de Villa-Lobos ou de seus detratores. O mordaz crítico Bastos Tigre não perdeu a oportunidade de ironizar a sonoridade “futurista” de Villa-Lobos, diante da reação do rei:
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O maestro Villa-Lobos fizera ouvir várias symphonias futuristas, de arrancar o couro às caixas e aos bombos; havia dentro da música, orquestrados à maneira do século XXII d. C., pelas linhas e espaços do pentagrama, e ainda para baixo e para cima, todos os rumores da selva tropical: córregos cantantes, Iguassus escachoantes, urros de feras, silvos de cobra, gorjeios de sabiás, zunir do vento pelas ramagens… Nada faltava para dar ao auditório a impressão exacta e precisa de uma floresta super-wagneriana (Bastos Tigre, Correio da Manhã, 7/10/1920).
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Apesar do evidente fracasso da apresentação associado ao juízo crítico negativo, que anulou todos os esforços para realização de uma obra monumental como “A Vitória” (depois rebatizada como Sinfonia nº 4), Villa-Lobos ficou indelevelmente marcado como um futurista. Descontando o caráter de chacota do comentarista, nota-se também a associação do compositor com a representação dos sons da floresta brasileira, que nem é tão evidente em “A Guerra”, mas muito mais em “A Vitória”.
A repercussão pelo cancelamento de “A Vitória”, após o desconforto que “A Guerra” causou no soberano europeu, supostamente por seu gosto conservador, secundado pela crítica amparada por esse “decreto real”, foi mais decisiva para que Villa-Lobos fosse convidado à Semana de Arte Moderna em São Paulo do que se o compositor tivesse sido aclamado. Afinal de contas, isso contava como se Villa-Lobos tivesse sido “excomungado” do cânone parnasiano, das sonoridades adocicadas do romantismo europeu e da convicção melódica da ópera italiana. Um saldo nada mal para uma gafe aparentemente despercebida: Alberto I manteve sua agenda, foi a Belo Horizonte e acertou os trâmites para a fundação da Companhia Belgo-Mineira de mineração; Villa-Lobos despontou como o compositor modernista que poderia desencadear uma nova etapa em nossa música.
A espontaneidade com que o compositor realizava esse projeto parece vir de duas condições bem peculiares: o rebaixamento do status social de sua família, após a morte de seu pai, Raul Villa-Lobos em 1899 e sua postura primordialmente autodidata em relação ao estudo da composição. A consequência mais notável decorrente do empobrecimento dos Villa-Lobos foi que o jovem Heitor passou a travar contato com músicos populares, muitos deles pertencentes aos estratos mais humildes da sociedade. Aprendeu a tocar violão e o praticava nas rodas de choro no Rio de Janeiro, experiência única entre os compositores clássicos de então. O casamento com Lucília Guimarães em 1913 o afastou da vida boêmia e o deixou mais focado em relação à composição voltada para a sala de concerto. Sem a tutela de um professor, sem disciplinas rígidas alheias à sua própria curiosidade, Villa-Lobos pode então ficar à vontade para experimentar certas combinações formais e sonoras que dificilmente resistiriam à severidade do ensino ortodoxo. Ele estava livre das mordaças estéticas; essa liberdade o impeliu a ir além da assimilação servil da tradição europeia e propor a fundação de uma tradição brasileira. Para realizar isso, era necessário ir à periferia de uma cultura periférica, aos subúrbios e morros cariocas, ao interior do país.
Mesmo assim, sua produção entre 1914 e 1920 ainda investe no diálogo com o cânone estético europeu, concentrando-se em sonatas para violino ou para violoncelo, com acompanhamento do piano; trios com piano e cordas; três quartetos de cordas; algumas peças características para piano. Essa produção camerística quase canônica foi apresentada ao longo dos três dias da Semana, enriquecida pelas Danças Africanas (em versão para octeto instrumental), pelo Quarteto Simbólico (flauta, saxofone, celesta e harpa, com coro feminino oculto) e por algumas canções para canto e piano. No campo orquestral (não apresentado na Semana), predominava o poema sinfônico. Nada disso faz supor as criações primitivistas que vieram à luz na década de 1920, especialmente a série dos Choros.
O emprego de formas clássicas europeias é compreensível, já que o mero uso de um reco-reco, feito por Alberto Nepomuceno no “Batuque” de sua Série Brasileira, provocou uma repreensão irada do crítico do Jornal do Commercio (Guanabarino?), refutando todo o caráter afro-brasileiro da obra, que em sua visão, “nada tem de brasileiro — são puramente africanos […], figurando na orquestra o instrumento selvagem — ‘reco-reco’ – […] tocado pelos negros em seus ‘jongos’ e ‘sambas'” (Jornal do Commercio, 16/11/1917). Se até mesmo um compositor consagrado como Nepomuceno recebia esse tipo de tratamento, como um iniciante poderia romper essa visão colonizada, segregacionista e racista? O afrancesamento de Villa-Lobos me parece mais estratégia de inserção no meio musical carioca do que propriamente convicção estética.
Após o contato com Rubinstein e Carlos Guinle, os esforços de Villa-Lobos se voltaram na viabilização de sua visita a Paris, onde poderia mostrar sua música a um público e crítica mais interessados por inovações estéticas. Ele não compôs nada novo para apresentar na Semana de Arte Moderna, mas o escândalo causado durante esse festival, para o qual contribuiu ao calçar um par de chinelos para ir ao palco (não por deboche, mas por ter machucado o pé) também serviu como combustível para a realização dessa meta.
Como se vê, os anos que antecederam a participação de Villa-Lobos na Semana de Arte Moderna foram intensos e muito importantes para que ele consolidasse sua carreira. Ele contava então 35 anos (incertos, já que sua data de nascimento só foi esclarecida em 1946 por Vasco Mariz, quando ele fez 59) e já havia realizado um número considerável de obras, pavimentando o terreno para suas principais realizações. Cada uma dessas etapas representa um avanço significativo entre as obras apresentadas em 1915 e 1921, sete anos que representam sete centenários que antecedem a Semana.
O centenário da Semana quase coincide com o contexto pós-pandêmico de 1922; nos dias de hoje, a vacinação provou sua eficácia, reduzindo a propagação e o número de mortos; todavia o cenário ainda é incerto e não se sabe se teremos eventos presenciais ou se serão mantidas as restrições. As celebrações dedicadas a Villa-Lobos certamente terão grandes concertos e recitais, no Brasil e no mundo. Um campo particularmente notável será o aquecimento do mercado bibliográfico, com alguns lançamentos preciosos que estão em preparação: o livro Villa-Lobos, vida e obra (1887-1959) escrito pelo musicólogo finlandês Eero Tarasti (que tive o prazer de traduzir) será lançado em breve pela editora paulista Contracorrente; e biografias inéditas, escritas por Camila Frésca e Rodrigo Alzuguir deverão ser publicadas no próximo ano.
Que esse próximo ciclo tome as devidas precauções para não repetir erros grosseiros diante das evidências históricas e científicas. Que a Floresta do Amazonas, poema sinfônico de Villa-Lobos, não sobreviva apenas como recordação sonora, mas que a floresta real seja preservada em sua sacralidade, como necessária fonte vital para o planeta e lar dos povos indígenas; que o ovo da serpente não volte a dar seus frutos; que a pandemia seja contida e cessem as ações negacionistas, em respeito aos quase cinco milhões de mortos em todo o mundo; que as elites deste país parem de dar as costas às periferias; que a música nos abençoe.
Villa Lobos e Bidu Sayão, 1945 (Fundo Correio da Manhã)..Notas:
[1] BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Editora 34; Edusp, 2006, p. 203-204).
[2] MARIZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro. 11. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p. 57.
[3] Idem, p. 47.
[4] GUÉRIOS, Paulo. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. 2. ed. Curitiba: Edição do autor, 2009, p. 139.