“Figura”, de Erich Auerbach

Leia um excerto da obra na edição que acaba de ser lançada pela Editora 34, com organização, tradução e prefácio de Leopoldo Waizbort.

Com organização e prefácio de Leopoldo Waizbort — que assina a tradução com Erica Castro, Célia Euvaldo e Milton Ohata —, o volume que acaba de ser publicado pela Editora 34 reúne, além de “Figura” (1938-39), sete estudos de Erich Auerbach em torno da interpretação figural — uma maneira de pensar a história que confere sentido às relações entre o Velho e o Novo Testamento.

O lançamento do livro inspirou uma análise de fôlego de Eduardo Henrik Aubert, professor de Letras Clássicas na USP. Em texto para o Estado da Arte, que você pode ler aqui, ele propõe uma “leitura em movimento” desta que é uma das obras fundamentais do filólogo e crítico alemão.

Na passagem a seguir, Auerbach investiga os sentidos da palavra latina que nomeia seu ensaio. Trata-se de um excerto da primeira parte do estudo, ao longo da qual o autor percorre os diferentes usos e aparições de “figura” de Terêncio a Quintiliano.

Hans Holbein, o Jovem. “Alegoria do Velho e do Novo Testamento” (1530).

Figura, da mesma raiz que fingere [moldar], figulus [ceramista], fictor [escultor] e effigies [estátua, efígie], significa, de acordo com sua origem, “forma plástica” e aparece inicialmente em Terêncio, que no Eunuchus diz de uma moça: “nova figura oris” [um formato incomum de rosto].1 O fragmento de Pacúvio2 deve provir aproximadamente da mesma época: “Barbaricam pestem subinis nostris optulit/ Nova figura factam […]” [Apresentou contra nossas lanças uma peste/ tendo aspecto desconhecido].3

É provável que Plauto não conhecesse o termo; ele emprega duas vezes fictura [moldagem],4 nos dois casos sem dúvida em um sentido que exprime antes a atividade do formar do que o seu resultado; posteriormente, fictura ocorre muito raramente.5 Com a menção da palavra fictura somos de imediato alertados para uma peculiaridade de figura: ela é derivada imediatamente da raiz, e não, como natura [natureza] e outros de mesma terminação, do supino.6 Pretendeu-se explicar isso com uma aproximação a effigies:7 contudo, nessa formação específica da palavra exprime-se algo de vivo e movente, incompleto e lúdico; de todo modo, há nela uma elegância altiva da manifestação fonética, que encantou muitos poetas. O fato de que os dois testemunhos mais antigos utilizem nova figura não pode ser um acaso; mesmo que seja, é significativo, pois essa nova manifestação, transformante, marcou de modo continuado toda a história da palavra.

Para nós, essa história começa com a helenização da cultura romana no último século antes de Cristo; em seus inícios, três escritores tiveram uma participação decisiva: Varrão, Lucrécio e Cícero. Certamente, não podemos mais determinar com precisão o que eles tomaram dos mundos e fundos mais antigos e que se perderam. Só as contribuições de Lucrécio e Cícero já são tão peculiares e tão independentes entre si, que lhes é preciso atribuir uma grande parcela na criação do seu significado.

Dentre eles, Varrão é o que menos possui essa independência. O fato de que, nele, figura signifique ocasionalmente “manifestação exterior” e mesmo “contorno”8 — e que portanto comece a se desligar de sua origem, o conceito mais estrito de forma plástica — parece ser um processo geral, de cujas origens ainda trataremos. Em Varrão esse desenvolvimento nem sequer é muito marcante. Ele é um etimólogo, consciente da origem da palavra (“fictor cum dicit fingo figuram imponit” [O artífice de imagens, quando diz “fingo” {eu modelo}, põe uma figura em
algo]),9 e desse modo a palavra contém, quando referida a seres vivos e objetos, em geral uma ideia plástica. É por vezes difícil dizer o quanto essa ideia ainda foi atuante, como por exemplo
quando ele diz que, na compra de escravos, deve-se levar em conta não somente a figura [aparência], mas também as características, como nos cavalos a idade, nos galos o valor de criação, nas maçãs o aroma;10 ou quando diz de uma estrela que ela mudou de colorem, magnitudinem, figuram, cursum [cor, tamanho, aparência, curso].11 Ou, ainda, quando ele compara as estacas em forma de forquilha das paliçadas com a figura da letra V.12 Assim que se passa a falar de formas vocabulares, a dimensão plástica se esvai. Tomamos, diz ele,13 novas formas de vasos dos gregos; por que se defender de novas formas vocabulares, formae vocabulorum, como se fossem venenosas? “Et tantum inter duos sensus interesse volunt, ut oculis semper aliquas figuras supellectilis novas conquirant, contra auris expertes velint esse?” [Será que os arcaístas pensam que há tanta diferença entre o sentido de uma palavra antiga e o de uma nova sinônima, que eles, sempre a procurar novos modelos de móveis para seus olhos, creem porém que seus ouvidos estejam livres de semelhantes novidades?]. Aqui estamos bem próximos da ideia de que também haveria figuras para o senso auditivo. Ademais, é preciso saber que, em
Varrão — como em todos os autores latinos que não possuíam, como especialistas filósofos, uma terminologia exata —, figura e forma eram empregadas indistintamente no sentido geral de
“forma”. Na verdade, forma significa “molde”, em francês moule, e está para figura assim como o molde está para a forma plástica feita a partir dele. Contudo, em Varrão muito raramente notamos isso, quando muito talvez em um fragmento transmitido por Gélio: “semen genitale fit ad capiendam figuram idoneum” [a semente geradora torna-se apta a adquirir uma forma].14

A verdadeira inovação e o embaçamento do sentido original, que se encontram inicialmente em Varrão, situam-se no terreno gramatical; já os indicamos acima. Em Varrão encontramos inicialmente figura como formação gramatical, derivação e forma flexionada. Figura multitudinis significa, para ele, “a forma do plural”; “alia nomina quinque habent figuras” significa: “outros substantivos declinam-se em cinco casos”.15 Esse uso teve um efeito significativo;16 igualmente, forma também foi muito empregada com o mesmo sentido, já desde Varrão — contudo, figura parece ter sido preferida e mais frequente entre os gramáticos latinos. Como foi possível que as duas palavras — sobretudo figura, que lembra em sua forma vocabular ainda mais claramente a sua origem — tenham alcançado tão rapidamente um significado puramente abstrato? Isso ocorreu por meio da helenização da cultura romana. A língua grega, cujo vocabulário científico e retórico era incomparavelmente mais rico, possuía um grande número de palavras para o conceito de forma: morphé, éidos, schêma, typos, plásis, para nomear apenas os mais importantes. A formação filosófica e retórica do uso platônico-aristotélico da língua atribuiu um domínio a cada uma dessas palavras, e estabeleceu limites claros especialmente entre, de um lado, morphé e éidos e, de outro, schêma. Os primeiros são a forma ou a ideia que informam a matéria; enquanto o último é a configuração puramente sensível dessa forma. A passagem clássica que confirma isso está na Metafísica de Aristóteles, onde, no âmbito da exposição da ousía, a morphé é designada como “schêma tês idéas”.17 Assim, encontramos em Aristóteles também schêma de modo puramente sensível, como uma das categorias de qualidade, e a conjunção de schêma com mégethos, kínesis e chrôma, que já encontramos em Varrão. Era evidente que, em latim, forma verteria morphé e éidos, pois continha desde sempre a ideia de modelo; ocasionalmente encontramos também exemplar. Por sua vez, para schêma definiu-se em geral figura. Mas como na terminologia científica grega schêma, enquanto “forma exterior”, expandiu-se amplamente — na gramática, na retórica, na lógica, na matemática, na astronomia —, nesse caso por toda parte, em latim, utilizou-se figura. E assim surgiu, ao lado e defronte ao antigo significado de dimensão plástica, um conceito muito mais geral da manifestação sensível e da forma gramatical, retórica, lógica e matemática, a que mais tarde se juntaram a musical e a coreográfica. É certo que o antigo significado de dimensão plástica não se perdeu por completo, pois também typos (“marca distintiva”, “impressão”) e plásis, plasma (“forma plástica”) foram frequentemente vertidos por figura — em função da raiz fig. A partir do significado de typos, figura desenvolveu-se como “impressão de um selo”, que possui uma nobre história como metáfora, de Aristóteles (“hè kínesis ensemáinetai hoîon typon tinà tôu aisthématos” [movimento implica certa impressão da coisa sentida]),18 passando por Agostinho19 e Isidoro,20 até Dante (“come figura in cera si suggella21).22 Para além da dimensão plástica, o typos, em virtude de sua tendência ao universal, legal e exemplar,23 foi significativo para figura, e isso por sua vez contribuiu para borrar os limites, já por si mesmos sutis, com forma. A ligação com palavras como plásis intensificou a tendência — provavelmente já existente desde o início, mas que só avançou lentamente — à expansão de figura na direção de “estátua”, “imagem”, “retrato”; o termo avança no terreno de statua, e mesmo de imago, effigies, species e simulacrum.

Portanto, se em termos gerais se pode afirmar que figura, em seu uso latino, verte schêma, com isso não se esgota o poder da palavra, potestas verbi: figura ainda é não só ocasionalmente mais plástico, mas também irradia de modo mais movente e intenso do que schêma. Certamente ela é mais dinâmica do que a palavra alemã Schema; schémata são como se denominam os gestos mímicos dos seres humanos, em especial dos atores, em Aristóteles; o significado de forma móvel não é absolutamente estranho a schêma; mas figura desenvolveu de modo muito mais amplo esse elemento de movimento e metamorfose.24

  1. Terêncio, Eunnuchus, 317. ↩︎
  2. Fragmento 270/1 in Otto Ribbeck, Scaenicae Romanorum Poesis Fragmenta, Leipzig, Teubner, 1871, vol. I, p. 110. ↩︎
  3. Como me esclarece P. Friedlander, “barbarica pestis” refere-se provavelmente a um ferrão de arraia, com o qual Ulisses foi ferido mortalmente; não é certo o sentido de “subinis”. ↩︎
  4. Plauto, Trinummus, 365; Miles Gloriosus, 1189. ↩︎
  5. Na Antiguidade Tardia (Chalcidius, Isidoro) e na Idade Média ele reaparece, em um jogo de palavras com “pictura”. Cf. Ernst R. Curtius, “Zur Literaturästhetik des Mittelalters I”, Zeitschrift für Romanische Philologie, no 58, 1938, p. 45. ↩︎
  6. Alfred Ernout e Antoine Meillet, Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, Paris, Klincksieck, 1932, p. 346. ↩︎
  7. Friedrich Stolz e Joseph H. Schmalz, Lateinische Grammatik [1900], Munique, C. H. Beck, 5a ed., p. 219. ↩︎
  8. Várias definições posteriores movem-se nesse sentido, cf. Thesaurus Linguae Latinae, 722, 54. ↩︎
  9. Varrão, De Origine Linguae Latinae, 6, 78. ↩︎
  10. Idem, 9, 23. ↩︎
  11. Citado em Agostinho, De Civitate Dei, 21, 8. ↩︎
  12. Varrão, De Origine Linguae Latinae, 5, 17. ↩︎
  13. Idem, 9, 21. ↩︎
  14. Gélio, Noctes Atticae, III, 10, 7. ↩︎
  15. Varrão, De Origine Linguae Latinae, 9, 52. ↩︎
  16. Cf. Thesaurus Linguae Latinae, figura III A, 2a, col. 730 e 2e, col. 734. ↩︎
  17. Aristóteles, Metafísica, 1029a 4. ↩︎
  18. Aristóteles, De Memoria et Reminiscentia (Parva Naturalia), 450a 31. ↩︎
  19. Epistulae, CLXII, 4, in Patrologia latina, XXXIII, col. 706. ↩︎
  20. Differentiarum Libri Duo, I, 528, in Patrologia latina, LXXXIII, col. 63. ↩︎
  21. “Purgatório” X, 45 (“como na cera a marca se chancela”) ou “Paraíso” XXVII, 62. [Esta última referência não está correta; pode-se ver, com o sentido discutido por Auerbach, “Purgatório” XXXIII, 79-80 (“Como o selo verdadeiro,/que não se altera mais quando chancela”, trad. Cristiano Martins). (N. do O.)] ↩︎
  22. Em Aristóteles (como também já em Platão), typoi significa “em geral”, “em grandes linhas”, “em regra”. Sua expressão “pachulôs kai typôi” ([Ética a Nicômaco] 1094b 20) ou “kath’ hólou léchthen kài typoi” espraia-se, passando por Irineu (2, 76) e Boécio (Topicorum Aristoteles Interpretatio, I, 1, Patrologia latina, LXIV, col. 911 B), até o francês e o italiano. Cf. Frédéric Godefroy, Dictionnaire de l’Ancienne Langue Française, Paris, F. Vieweg, 1881-1902, s. v. “figural”: “Il convient que la maniere de proceder en ceste oeuvre soit grosse et figurele”, ou s.v. “figuralement”: “car la maniere de produyre/ Ne se peust monstrer ne deduyre/ Par effect, si non seulement/ Grossement et figuraulment” (Greban). No italiano, o sentido da ligação “sommariamente e figuralmente” parece logo não ter sido mais compreensível; ver os exemplos em Nicolò Tommaseo e Bernardo Bellini, Dizionario della Lingua Italiana, Turim, Società Unione Tipografica, 1865-1879, s. v. figura 18. ↩︎
  23. Cf. a conjugação com nomikós, Aristóteles, Política, 1341b 31. ↩︎
  24. Há significados de schêma que não encontramos em figura, isto é, que não se impuseram como, por exemplo, “constituição”. ↩︎

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“Figura”, de Erich Auerbach: leitura em movimento — Por Eduardo Henrik Aubert, professor de Letras Clássicas na USP, uma análise de fôlego de uma das principais obras do filólogo e crítico alemão, que acaba de ganhar uma nova tradução para a língua portuguesa.

Esquema de Auerbach — Por Eduardo Henrik Aubert, o esquema de Auerbach — com Dante, com com Guinizelli e Cavalcanti —, em uma leitura de Mimeis e uma releitura do Dolce Stil Novo.

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