Os promotores do humanismo, por Jacob Burckhardt

Niccolò Niccoli e Giannozzo Manetti. Cosme de Medici e Lourenço, o Magnífico. A partir desses nomes, o teórico suíço analisa a ascensão do humanismo na Itália renascentista.

[…] são dignos de nossa atenção aqueles cidadãos que, principalmente em Florença, fizeram do interesse pela Antiguidade uma das metas principais de suas vidas, tornando-se eles próprios grandes eruditos, ou grandes diletantes a dar apoio aos primeiros. Eles foram de grande importância para o período de transição, no princípio do século XV, porque é neles que, pela primeira vez, o humanismo manifesta-se, na prática, como um elemento necessário da vida cotidiana. Foi somente depois deles que príncipes e papas dedicaram-se seriamente a cultivá-lo.

Já se falou aqui, por diversas vezes, em Niccolò Niccoli e Giannozzo Manetti. O primeiro é-nos descrito por Vespasiano como um homem que nada tolerava a seu redor que pudesse perturbar o espírito da Antiguidade. Sua bela figura, com seus trajes longos e fala amigável, em uma casa repleta de magníficas peças antigas, causava impressão singularíssima. Niccoli era sobremaneira asseado em todas as coisas, sobretudo à mesa, tendo diante de si, sobre o linho mais branco, vasos antigos e taças de cristal. A maneira pela qual conquistou um jovem florentino amante dos prazeres para seus próprios interesses espirituais é por demais graciosa para que aqui deixemos de narrá-la.

Filho de um distinto mercador e destinado a seguir os passos do pai, Piero de Pazzi, belo em aparência e bastante dedicado aos prazeres do mundo, pensava em tudo, menos na ciência. Um dia, estando ele a passar pelo Palazzo del Podestà, Niccoli chamou-o para si. Piero atendeu ao aceno daquele homem tão respeitado, embora jamais tivesse conversado com ele. Niccoli perguntou-lhe quem era seu pai. Piero respondeu: “Messer Andrea de Pazzi”. Perguntado acerca de sua ocupação, Piero respondeu como o fazem comumemente os jovens: “Aproveito a vida” [Attendo a darmi buon tempo]. Niccoli disse-lhe, então, que, como filho de um tal pai e dotado de tal figura, ele devia se envergonhar por não conhecer a ciência latina, que constituiria para ele tão grande adorno. E mais: que, se não a aprendesse, não seria ninguém, transformando-se, tão logo fanada a flor da juventude, em homem sem qualquer valor (virtù). Ao ouvir isso, Piero prontamente reconheceu estar diante da verdade, respondendo que se dedicaria de bom grado àquele aprendizado, se encontrasse um mestre. Niccoli disse-lhe que cuidaria disso. E, de fato, arranjou-lhe um homem erudito para o ensino do latim e do grego, chamado Pontano, a quem Piero acolheu como a um membro de sua família, pagando-lhe cem florins de ouro ao ano. Em vez da habitual luxúria, Piero passou então a se dedicar, dia e noite, aos estudos, tornando-se amigo de todos os homens cultos e magnânimo estadista. Aprendeu de cor toda a Eneida e muitos dos discursos de Tito Lívio, em geral no caminho de Florença até sua casa de campo, em Trebbio.

Giannozzo Manetti representa a Antiguidade em um outro sentido, mais elevado. Precoce, concluíra já, quase um menino, o aprendizado do comércio e trabalhava como escriturário para um banqueiro. Passado algum tempo, porém, tal atividade pareceu-lhe fútil e passageira, e ele começou a ansiar pelo conhecimento científico — para ele, a única maneira pela qual o homem pode garantir sua imortalidade. Na qualidade do primeiro nobre florentino a fazê-lo, enterrou-se nos livros, tornando-se, como já foi dito, um dos maiores eruditos de seu tempo. Designado pelo Estado encarregado de negócios, coletor de impostos e governador (em Pescia e Pistoia), desempenhou suas funções como se um ideal elevado houvesse despertado dentro dele — produto da combinação de seus estudos humanistas com sua religiosidade. Deu cumprimento à cobrança dos mais detestados impostos decretados pelo Estado, não aceitando nenhum pagamento por seus serviços. Como governador de província, repeliu presentes, zelou pelo abastecimento de grãos, apaziguou infatigavelmente os conflitos judiciais e tudo fez pela contenção das paixões por meio da bondade. Os habitantes de Pistoia jamais lograram descobrir por qual de seus dois partidos ele se inclinava. Como a simbolizar o destino e o direito comum de todos, escreveu, em suas horas de lazer, a história da cidade, posteriormente preservada no palácio municipal em encadernação púrpura, como um objeto sagrado. Por ocasião de sua partida, a cidade presenteou-o com uma bandeira contendo o brasão municipal e com um magnífico elmo de prata.

Quanto aos demais cidadãos ilustrados de Florença, há que se ler sobre eles em Vespasiano (que os conhecia a todos), porque o tom e a atmosfera de que se reveste o que escreveu, as condições sob as quais conviveu com essas pessoas, afiguram-se mais importantes do que os feitos de cada um. Se esse valor mais precioso de sua obra estaria já fadado a perder-se em uma tradução, que dirá então nas breves indicações a que, forçosamente, vemo-nos limitados aqui. Vespasiano não é grande escritor, mas conhece o assunto que tratou e possui um senso profundo de seu significado intelectual.

Lourenço, o Magnífico, cercado por artistas, em pintura de Ottavio Vannini (Palazzo Pitti, Florença).

Quando se procura, então, analisar o encanto que os Medici do século XV — sobretudo Cosme (morto em 1464) e Lourenço, o Magnífico (morto em 1492) — exerceram sobre Florença e seus contemporâneos de modo geral, verifica-se que a força desse encanto passa ao largo da esfera política, para localizar-se em sua liderança no campo da educação. Alguém na posição de Cosme, mercador e chefe partidário local, tendo ainda a seu lado todos os pensadores, pesquisadores e escritores; alguém que já de berço é tido como o mais importante dos florentinos e mais, por sua cultura, como o maior dos italianos — este alguém é efetivamente um príncipe. Cosme é ainda possuidor da glória particular de ter reconhecido na filosofia platônica o mais belo rebento do pensamento antigo, de ter disseminado esse reconhecimento a seu redor e, assim, de ter estimulado um segundo e mais elevado renascer da Antiguidade no interior do humanismo. O modo como isso se deu foi-nos relatado com bastante precisão. Tudo se vincula à convocação do erudito João Argyropulos e ao entusiasmo pessoal de Cosme em seus últimos anos de vida, de tal modo que — no tocante ao platonismo — o grande Marsilio [Ficino] pôde se permitir autodesignar-se filho espiritual de Cosme. Sob Pietro de Medici, Ficino viu-se já à testa de uma escola. Abandonando os peripatéticos, para ele acorreu o filho de Pietro e neto de Cosme, o ilustre Lourenço. Dentre seus mais renomados companheiros são mencionados Bartolommeo Valori, Donato Acciaiuoli e Pierfilippo Pandolfini. O entusiasmado mestre declara, em várias passagens de seus escritos, que Lourenço investigou todas as profundezas do platonismo, manifestando a convicção de que, sem este, seria difícil ser bom cidadão e bom cristão. O famoso grupo de eruditos que se reuniu ao redor de Lourenço tinha por vínculo comum o elevado espírito de uma filosofia idealista, distinguindo-se de todos os demais agrupamentos do gênero por esse mesmo fator. Somente em um tal círculo podia alguém como Pico della Mirandola sentir-se feliz. O que há de mais belo para se dizer a esse respeito, porém, é que tal grupo constituía, paralelamente a todo o culto da Antiguidade, um santuário da poesia italiana e que, de todos os raios de luz que emanaram da personalidade de Lourenço, esse pode ser considerado o mais poderoso. Como estadista, julgue-o cada um como o desejar — um estrangeiro não se imiscui, se não é obrigado a fazê-lo, no balanço do que em Florença é culpa ou destino; mas não há polêmica mais injusta do que aquela que acusa Lourenço de ter, no domínio da cultura, protegido predominantemente os medíocres, culpando-o assim pela ausência de Leonardo da Vinci e do matemático fra Luca Paccioli e por ter, no mínimo, negado incentivo a Toscanella, Vespúcio e outros. Por certo, Lourenço não foi possuidor de um espírito universal. Mas, de todos os grandes que alguma vez intentaram proteger e estimular as coisas do espírito, foi ele um dos mais multifacetados — e aquele no qual essa multiplicidade, mais do que em qualquer outro, decorreu de profunda necessidade interior.

O século XIX costuma igualmente proclamar com suficiente veemência o valor da cultura, de um modo geral, e o da Antiguidade, em particular. Contudo, uma dedicação tão completa e entusiástica, um reconhecimento de que essa necessidade é a mais importante de todas, não se encontra em parte alguma com intensidade semelhante à que se verificou junto aos florentinos do século XV e do princípio do XVI. A esse respeito, dispomos de provas indiretas que afastam qualquer dúvida: não se teria com tanta frequência permitido às filhas da casa que tomassem parte nos estudos se estes não fossem tidos, de forma absoluta, como o mais nobre dos bens da vida terrena; não se teria transformado um exílio numa estada feliz, como se deu com Palla Strozzi; homens que, em geral, tudo se permitiam, não teriam ainda conservado a energia e a vontade para abordar criticamente a Naturalis historia, de Plínio, como o fez Filippo Strozzi. Não é de louvor ou censura que se trata aqui, mas de reconhecer o espírito de uma época em toda sua vigorosa singularidade.

Além de Florença, houve ainda outras cidades italianas nas quais, por vezes, indivíduos ou círculos sociais inteiros, empregando todos os meios que dispunham, puseram-se a serviço do humanismo e deram suporte a seus eruditos. As coletâneas de cartas da época revelam-nos uma profusão de relacionamentos pessoais desse gênero. O pensamento oficial das camadas mais cultas tendia quase exclusivamente para essa mesma direção.

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[O texto reproduzido acima é um excerto do ensaio “A cultura do Renascimento na Itália”, de 1860, publicado no Brasil em 2009 pela Companhia das Letras, com tradução de Sérgio Tellaroli. Pp. 208-212.]

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