por Gunter Axt
A criação ou extinção de cargos na magistratura é tema que, de tempos em tempos, aparece na pauta do Legislativo. A última reforma do Judiciário terminou em dezembro de 2004 com a extinção dos juízes de alçada – ainda havia dois tribunais de Alçada em atividade no Brasil, em São Paulo e no Paraná –, tendo começado em 1999 com a extinção do juiz classista.
A instituição do juiz classista, inicialmente saudada como uma garantia democrática e popular existente em vários países (como Alemanha, Bélgica, Grã-Bretanha e Dinamarca), passou, contudo, a ser severamente criticada ao longo de sua existência no Brasil. Quando de seu surgimento, entre fins dos anos 1930 e princípios dos anos 1940, muito se disse que se tratava de influência direta da Carta del Lavoro, editada pelo fascismo italiano, o que é um reducionismo, fartamente repetido a posteriori pelos manuais de Direito. Os anos 1920 e 1930 assistiram a uma forte crise dos sistemas representativos liberais no mundo inteiro, um vez que se entendia estarem os mesmos capturados pela oligarquia e pela burguesia, suscitando respostas e reações, tanto à extrema direita (como no caso do fascismo), quanto à esquerda (como no caso de anarquismo). No Brasil, esse debate ecoou, especialmente, no chamado Movimento Tenentista, no movimento operário e na Revolução de 1930, que foi considerada pela historiografia burguesa e modernizante.
A Carta de 1934 previu a figura do representante classista nos parlamentos, como vogal, eleito pelos sindicatos e não pelo voto direto e universal, o que não foi confirmado pela Constituição de 1946, a qual assinalou o retorno à normalidade democrática após a ruptura institucional de 1937. A ideia de um parlamento com representação corporativista e não liberal é anterior ao fascismo: o filósofo francês Auguste Comte, fundador da doutrina liberal positivista, que influenciou o movimento republicano no Brasil a partir da década de 1870, propugnava, por exemplo, legislativos compostos por parlamentares eleitos por segmentos de ofícios. Pode-se também registrar que Getúlio Vargas, em cujo governo a legislação trabalhista emergiu, fora exposto, durante os anos 1920, em Porto Alegre, capital de seu Estado de origem, à exitosa experiência, que combinara paternalismo germânico com fordismo, nas indústrias de AJ Renner, líder empresarial que presidiu a fundação da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS), na esteira da Revolução de 1930.
Depois de 1946, a representação classista foi mantida apenas na Justiça do Trabalho. Corria a convicção de que eram nomeados às vagas destinadas aos trabalhadores apenas aqueles militantes mais dóceis para com as diretrizes e a política do Ministério do Trabalho. O TST, por seu turno, era não raro compreendido como um órgão lento e conservador. Mesmo uma vitória dos trabalhadores, por exemplo, poderia ser arruinada, pois até ser publicada a decisão, o que podia consumir meses, não tinha efeito legal. Na verdade, como sublinha John French, os sindicatos, às vezes, enfrentavam as negociações do ano seguinte desconhecendo a decisão final do Tribunal com respeito ao ano anterior. Por vezes, ainda, o desfecho poderia ser regressivo. Ficou célebre a decisão que reverteu, um ano mais tarde, o acordo firmado em desdobramento à greve dos 400 mil, em 1957, que se havia encerrado com uma sentença do Tribunal Regional de São Paulo concedendo aumento de 25% aos operários, o qual foi significativamente reduzido. Em alguns tribunais regionais, a situação não era muito diferente. Baseado em sua experiência como vogal e procurador do trabalho nos tribunais paulistas nos anos 1960, Luiz Roberto Puech relatou que quando menores ou mulheres empregados em condições que a CLT vedava recorriam à Justiça, os tribunais negavam as petições com base no argumento de que a situação envolvia trabalho ilícito, o que não estaria na esfera de sua jurisdição.
Nos anos 1990, as críticas aos juízes classistas recrudesceram, ora em função dos salários considerados elevados, ora por conta de aposentadorias percebidas como precoces. Segundo Piquet Carneiro, um dos membros do Conselho da Reforma do Estado, órgão criado pelo Presidente Fernando Henrique em 1995 e presidido pelo ministro Bresser Pereira, o cargo custava ao país R$ 500 milhões por ano, e só contribuía para agravar o congestionamento da Justiça do Trabalho. No Brasil, havia 3.500 juízes titulares classistas e 3.500 suplentes, com salários de R$ 4 mil reais, podendo se aposentar com apenas cinco anos de serviço. Mais tarde, a figuração de alguns classistas como pivôs de episódios ruidosos de corrupção corroeu o apoio residual das centrais sindicais, da magistratura togada e de intelectuais.
A extinção dos juízes classistas da jurisdição trabalhista tinha sido tentada, sem sucesso, durante a Constituinte de 1987. Quando se promoveu a Revisão Constitucional, em 1994, o relator da matéria, deputado Nelson Jobim, retomou a proposta. Os classistas se organizaram em forte lobby e foram em romaria aos gabinetes. A revisão acabou naufragando e o tema mais uma vez congelado.
Mas se a reforma do Constituição e do Judiciário micava, a extinção do cargo de juízes classistas, talvez o ponto mais consensual, passou a correr em faixa própria. Em 17 de novembro de 1995, a PEC 63 foi aprovada em primeiro turno pelo plenário da Câmara, por 328 votos contra 75 e 19 abstenções. A aprovação contou com os votos da oposição, como os do PT. Apenas PTB, PCdoB e PDT orientaram as suas bancadas a votar contra o projeto.
As propostas mais radicais para a jurisdição trabalhista previam sua completa extinção. Havia outros, como o deputado Nedson Luiz Micheleti, do PT do Paraná, que propunham o fim do Tribunal Superior do Trabalho, da representação classista em todos os graus de jurisdição e do poder normativo conferido à Justiça do Trabalho, mas entendiam que a jurisdição deveria ser preservada nas duas primeiras instâncias. Já o deputado Zaire Rezende, do PMDB de Minas Gerais, sugeria em uma outra PEC suprimir os classistas nos Tribunais, mas mantê-los nas Juntas de Conciliação e Julgamento, onde sua experiência profissional poderia ser útil ao esforço conciliatório, sem que a falta de domínio técnico do Direito prejudicasse os trabalhos, como aconteceria nas Cortes. Em 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a afirmar serem os classistas desnecessários, em todas as instâncias. Mas a tramitação da matéria acabou novamente travando.
O assunto reconquistou impulso em 1999 na esteira da CPI do Judiciário, que investigou nove casos diferentes, com destaque para o desvio de R$ 169 milhões de reais das obras de construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, onde pontificava o Juiz “Lalau” – Nicolau dos Santos Neto. Além disso, repercutiu a gravação de uma conversa telefônica entre duas juízas classistas do TRT-RJ, na qual admitiam o comércio de votos e decisões.
Para não ficar a reboque da CPI, cujos holofotes iluminavam o presidente do Senado Antônio Carlos Magalhães, o presidente da Câmara, Deputado Michel Temer, desarquivou propostas de reforma do Judiciário, reinstalando uma comissão para tratar do assunto. Enquanto os temas mais complexos exigiam ainda maturação, a vontade de oferecer uma resposta à sociedade impactada pelos escândalos que vinham à tona fez acelerar a decisão sobre o destino dos classistas, cuja supressão começava a ser apoiada até mesmo pelas entidades representativas da magistratura, como a AJUFE, Associação dos Juízes Federais. Finalmente, duas semanas após a divulgação do relatório final da CPI, a Emenda Constitucional n. 24, de 9 de dezembro de 1999, extinguiu o cargo de juiz classista. A partir daí, além disso, as Juntas de Conciliação e Julgamento passaram a ser chamadas de Varas.
O fim dos classistas também pretendia acalmar a demanda em prol da extinção da jurisdição trabalhista. O deputado Aloysio Nunes Ferreira, com apoio do presidente do Congresso, Senador Antônio Carlos Magalhães, propôs em 1999 a extinção da Justiça do Trabalho. Mas a solução se afirmava na contramão da tendência de especialização do Judiciário. Ademais, a jurisdição trabalhista recebia volume processual cada vez maior, que crescia como uma avalanche desde a promulgação da Constituição de 1988. Não apenas porque os direitos dos trabalhadores haviam sido consolidados e ampliados, mas ainda em função do contexto da crise econômica que se estabelecera.
Nos anos 1990, a taxa média anual de crescimento do PIB foi de 2,2%, com sobressaltos de um ano para o outro. A taxa de desemprego começou a década na casa dos 11%. O desemprego agravou-se a partir de 1995, em função do plano de estabilização econômica, que, mais tarde, seria considerado a base a partir da qual foi possível incrementar a renda média do brasileiro, justamente por ter domado o monstro da inflação. O país, ainda com poucas reservas cambiais acumuladas e com a credibilidade internacional pouco fortalecida, foi duramente impactado por crises financeiras internacionais. Naquela conjuntura, foram afetados mais intensamente a juventude, os operários e assalariados populares, bem como a baixa classe média. Entre 1992 e 2001, a taxa de desocupação no Brasil cresceu 70%. Ficou mais difícil ingressar no mercado de trabalho, e também voltar para ele. Entre as décadas de 1930 e de 1980, ainda que com períodos de oscilação conjuntural, a evolução do emprego acompanhou, na média, a expansão do produto. É evidente que esse quadro econômico e social repercutia sobre a jurisdição trabalhista.
Representantes dos sindicatos, da OAB, servidores e magistrados se uniram para repudiar a pretensão da extinção da Justiça do Trabalho. No balanço geral, houve compreensão no sentido de que a jurisdição era fundamental, pois, como registrou Arnaldo Süssekind, um dos idealizadores da CLT, há uma diferença entre a existência de um direito formal e a sua capacidade de realização, de exercício na prática, garantia otimizada por meio da Justiça do Trabalho. O trabalhador é presumidamente hipossuficiente, precisamente porque não dispõe das mesmas condições de negociação do empregador, dono do capital, transcendendo-se, assim, a característica privatista originária do Direito Civil, no qual os contratantes, como regra, estariam em pé de igualdade. O esforço de mobilização em defesa da jurisdição no final dos anos 1990 legou um engajamento de magistrados e servidores no sentido da modernização da Justiça Trabalhista, com a adoção de novas estratégias e ferramentas de gestão e com adesão pioneira à informatização, o que contribuiu para dar uma Justiça mais célere e administrações bem mais transparentes. A jurisdição tornou-se aquela em que os feitos são julgados com mais celeridade no Brasil.
Fonte: AXT, Gunter. Memória do CNMP. Relatos de 12 anos de história. Brasília: CNMP, 2017.