por Marize Schons
No dia 1o de novembro de 1755 – ironicamente, Dia de Todos os Santos –, a cidade de Lisboa acordou abalada por intensos tremores que dariam início a uma das maiores tragédias da história: um terremoto, seguido por um tsunami e um catastrófico incêndio, destruíram quase completamente a capital e outras cidades do reino português. O abalo sísmico, que segundo estimativas chegou a 8,7 graus na escala Richter [1], não só foi o responsável por perdas materiais irreversíveis, como também a causa de profundos impactos no pensamento da época.
Os dados demográficos são imprecisos, mas acredita-se que além de causar milhares de vítimas nas cidades portuguesas, o tremor também acometeu outros países como Espanha e Marrocos. O tsunami chegou a atingir a costa do continente americano e o incêndio em Lisboa persistiu durante cinco dias, destruindo cerca 75% dos prédios públicos [2].
Nada mais seria como antes. Os efeitos psicológicos pós-desastre delinearam uma euforia em torno de uma visão de mundo apocalíptica e religiosa. Figuras como o Padre Jesuíta Gabriel Malagrida [3]acreditavam que a devastação era um castigo do qual os portugueses eram os culpados. Essa visão, porém, encontrou resistência na elite política e intelectual emergente da época: para o Marquês de Pombal, por exemplo, o terremoto era um fenômeno natural explicado pela ciência e que proporcionaria à sociedade novas formas de organização [4].
Os religiosos consideravam que essas visões seculares levavam à ignorância e ao pecado, e essa resposta colocava em evidência uma disputa política que afastava os jesuítas das instituições de poder do Estado [5]. A crítica não se voltava apenas à visão de mundo do Iluminismo, mas aos rumos “retrógrados” que o reino, na visão dos religiosos, tomava [6].
A história mostrou que Pombal estava certo: o desastre de Lisboa significou o fim de um modelo de cidade medieval e desencadeou mudanças na estrutura política e social da época. Nesse embate entre tradição e modernidade, as visões seculares sobre as catástrofes prevaleceram frente às explicações místicas, ainda que essas nunca tenham desaparecido [7]. O “novo mundo”, de acordo com as expectativas de Pombal, teria um Estado esclarecido pelas artes e pelas ciências, industrializado e independente da Igreja.
O século XX foi responsável pelo estreitamento entre ciência e política. No entanto, assim como em 1755, definir atualmente o que é um desastre – ou, ainda, quais são as suas causas – diz mais sobre a visão de mundo daqueles que o explicam e menos sobre o fenômeno em si. Nessa direção, o famoso Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), criado pela ONU em 1988, consiste em um dos maiores exemplos de cooperação entre ciência e política; e, diferente das profecias medievais que compreendiam que a salvação estava no plano espiritual, os relatórios do IPCC clamam por ações políticas urgentes e imediatas para a salvaguarda da humanidade na Terra.
Alguns ambientalistas acusam o capitalismo de usurpar os recursos naturais e promover um modo de produção industrial que nos levará ao colapso.
Construída sobre a base de um imaginário catastrófico, a emergência da temática ambiental a partir dos anos 60 e 70 levou para o debate internacional narrativas sobre o futuro que expressam representações implícitas de como o mundo deveria ser, e não exatamente como o mundo é [8].
Hoje, a disputa continua sendo um conflito entre diferentes identidades: alguns ambientalistas acusam o capitalismo de usurpar os recursos naturais e promover, por meio das grandes corporações, um modo de produção industrial que nos levará ao colapso. Por outro lado, os céticos acusam o ambientalismo de alarmista e uma minoria mais radical chega a acusar de fraude e pseudociência as previsões apresentadas. Para o primeiro grupo, nós, humanos, somos responsáveis diretos pelo o problema e o Estado, como “mediador imparcial”, tem a capacidade de impedir que o planeta seja destruído. O segundo grupo opta pelo fatalismo de que nada precisa ser feito por não acreditar nas causas antropogênicas das mudanças climáticas e minimiza a discussão ética sobre a responsabilidade de danos ambientais.
A questão ambiental é um problema que não compreendemos bem e que envolve dinâmicas tanto sociais quanto naturais. Em outras palavras, trata-se de um tema inerentemente complexo e permeado por incertezas e controvérsias. Independente da discussão quanto à responsabilidade da ação humana em relação às catástrofes, os efeitos de um evento extremo ainda são nosso problema. Não se trata de ignorar a importante discussão sobre as responsabilidades individuais e coletivas, mas priorizar a reflexão sobre quais são as medidas mais efetivas para prevenir e mitigar os efeitos dos desastres.
Qual a melhor forma de alocação de recursos escassos? Quais as medidas que de fato estão ao nosso alcance e quais são as expectativas irreais? Quais os custos dessas ações? Como fazer ações preventivas quando existem problemas imediatos e os recursos financeiros limitados? É possível precificar bens ambientais? Quais os melhores incentivos para atingir as metas?
A partir de uma perspectiva que busca ser humilde e prudente, o filósofo britânico Roger Scruton, em uma das suas mais recentes obras, intitulada Filosofia Verde (Editora É Realizações, 2016), nos convida a “pensar seriamente sobre o planeta”. Para Scruton, a resposta racional não é a alarmista, nem a negacionista; pelo contrário, o autor aponta o quanto nossa relação com o ambiente se transformou, postulando que essas mudanças ocorrem mais por conta da adaptação dos indivíduos do que simplesmente pela legislação e planejadores centrais. Certamente ações legais auxiliam e direcionam o processo de adaptação, mas só são efetivas quando estão associadas à dinâmica da sociedade civil e à realidade local.
Os ingleses foram os primeiros e principais protagonistas da Revolução Industrial e também se adaptaram aos seus efeitos. As limitações quanto à energia carvoeira – por meio da conhecida “Lei do Ar Puro”, promovida pelo parlamento inglês após o Grande Nevoeiro de Londres que ocorreu em 1952– não comprometeram o aumento dos padrões de vida nos centros urbanos; pelo contrário, incentivaram o setor ferroviário, que criou novas redes de trabalho e comércio.
Evidências corroboram que ações de salvaguarda desenvolvidas em instituições abertas são mais eficientes, pois democracias tendem a sofrer menos que regimes autoritários às consequências dos desastres.
Portanto, para Scruton o que é desejável não é uma revolução global, totalizante, que promova um novo estilo de vida universal e controlado pela burocracia, mas sim o florescimento de propostas modestas de compromisso local, por meio da resiliência, soluções de mercado, conservação estética (e não meramente instrumental) do ambiente, associações livres e leis de responsabilidade civil. Desta forma, uma política ecológica preventiva e prudente prioriza os processos sociais e a interação entre espécies no âmbito comunitário, não assumindo o caráter de uma profecia tecnocientífica global para solução de problemas ambientais.
Evidências corroboram que ações de salvaguarda desenvolvidas em instituições abertas são mais eficientes, pois democracias tendem a sofrer menos que regimes autoritários às consequências dos desastres. Se compararmos o terremoto do Haiti (7 na escala Ritcher) e o terremoto que ocorreu no Chile um mês depois (8,8 na mesma escala), no primeiro, de menor magnitude, 300 mil pessoas morreram, contra 800 pessoas no terremoto chileno. Segundo os pesquisadores, Alastair Smith e Alejandro Quiroz Flores, da Universidade de Nova York, a agilidade do governo do Chile em alertar à população e socorrer as vítimas foi maior do que a capacidade institucional de responder ao desastre no Haiti, que passava por um período de transição política após vários anos de ditadura [9].
Assim como instituições abertas, redes orgânicas são mais efetivas que planejamentos burocráticos top-down. Dessa forma,mercados são aliados como mostrou a rede Walmart durante a resposta ao Furacão Katrina, em 2005. Diante da passividade do Governo Bush, a empresa de grande poder logístico conseguiu, de forma mais eficiente que a FEMA (órgão federal responsável pela defesa civil nos EUA), fornecer mantimentos, remédios e água aos atingidos [10].
Esses exemplos de ações adaptativas demonstram, assim, que a adoção de políticas locais possuem eficácia real em contraste as grandes metas internacionais por vezes revolucionárias. O presente está constantemente sendo transformado pelas narrativas sobre o futuro, porém assim como as profecias reliogiosas, projeções sociotécnicas também são limitadas . Entretanto, pensar nas próximas gerações consiste em um compromisso importante, como já assinalava Edmund Burke “a sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram”.
[1]https://academic.oup.com/gji/article/126/2/314/622962
[3]https://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434417647_ARQUIVO_pombalemalagrida-ANPUH.pdf
[4]POMBAL, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de, 1699-1782.Lisboa, Livraria universal, 1861.https://catalog.hathitrust.org/Record/008862710
[5]FIOLHAIS, Carlos ; FRANCO, José Eduardo – Os jesuítas em Portugal e a ciência (séculos XVI-XVIII). Brotéria : cristianismo e cultura. Lisboa : G.M.L.G.P.C.. ISSN 0870-7618. Vol. 183, n.º 1 (2016), p. 9-28.
[6]FRANCO, José Eduardo. O Mito dos Jesuítas. Tomo I. Lisboa: Gradiva, 2006
[7]https://www.estadao.com.br/noticias/geral,cacique-cobra-coral-e-convocado-para-explicar-as-causas-do-apagao,468659
[8]Hulme, M. Reducing the future to climate: a story of climate determinism and reductionism. Chicago, 2011.
[9]https://www.foreignaffairs.com/articles/2010-07-15/disaster-politics
[10]SOBEL,RS. LEESON,PT. Government’s response to Hurricane Katrina: A public choice analysis. Public Choice, 2006