por Dominique Rousseau
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O coronavírus é um assunto global. Os fluxos migratórios são um assunto global. O aquecimento global é um assunto global. A desigualdade social é um assunto global. A fraude fiscal é um assunto global. A igualdade de gênero é uma assunto global. A liberdade de imprensa é um assunto global. Em suma, todos esses “assuntos” não envolvem a existência de um povo, de um Estado ou de um continente; eles envolvem a existência de todos os povos, de todos os Estados, de todos os continentes. Com um detalhe a mais: todos assuntos que se desenvolvem ao mesmo tempo. Portanto, seria ilusório pensar que cada povo, cada Estado, cada continente possa resolver essas questões “do seu jeito”, “de acordo com sua livre decisão”. São situações nas quais devemos abandonar o princípio da soberania, um princípio que se tornou inútil e perigoso, abandonar a estrutura do Estado nacional e propor o princípio de solidariedade para (re)fundar a ordem política mundial que está emergindo.
Em 1941, Ernesto Rossi e Altiero Spinelli, ativistas antifascistas presos na prisão na Ilha de Ventotene, escreveram um manifesto cada vez mais atual no início do século XXI:
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“A ideologia da soberania nacional tem sido um fermento poderoso de progresso; tornou possível superar muitas diferenças baseadas no espírito de enquadrar na óptica de uma maior solidariedade contra a opressão de governantes estrangeiros. No entanto, carregava em si as sementes do imperialismo capitalista. A soberania absoluta dos Estados-nação conduziu à vontade de dominação por parte de cada um deles, uma vez que cada um se sente ameaçado pelo poder dos outros e considera como seu “espaço vital” territórios cada vez maiores para permitir que se movam livremente e garantam seus meios de subsistência sem depender de ninguém. Como resultado disso, como garantidor da liberdade dos cidadãos, o Estado tornou-se o patrono dos sujeitos mantidos a seu serviço. O problema que deve ser resolvido primeiro – sob pena de que qualquer progresso eventual possa ser perdido – é a abolição final da divisão da Europa em Estados nacionais soberanos.”
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Essa conclusão em forma de convite não foi ouvida após a Segunda Guerra Mundial. Em 2020, deveria ser para que possamos sair da policrise em que nos encontramos. Assim como o Renascimento trouxe à tona o princípio da soberania e a figura do Estado, a globalização impõe outro princípio de organização política: o princípio de solidariedade entre os povos para administrar seus bens comuns, dotando-se de instituições mundiais.
Objetivamente, hoje todas as economias, todas as músicas, todas as ideias, todas as emoções estão conectadas. Objetivamente, todos os povos formam uma comunidade humana mundial multicultural. Objetivamente, os humanos compartilham as mesmas situações, experimentam as mesmas condições e experimentam os mesmos eventos que os constituem em um Ser Histórico Mundial. Além disso, já faz muito tempo, caso acreditemos na fórmula célebre de Montaigne quando afirmava que “todo homem carrega toda a forma da condição humana”. Porém, subjetivamente, essa condição humana, esse Ser Histórico Mundial, essa comunidade de existência não foram sentidos pelos povos. Isso porque todo conhecimento levou cada povo a viver como uma singularidade irredutível. Porque a reação espontânea, ainda hoje, é objetar que as diferenças culturais, demográficas, religiosas, econômicas e políticas dentro do mundo proíbem postular a existência de um Ser Histórico Mundial. Mas, nesse sentido, seria rapidamente impossível falar de um Ser Histórico Francês em termos de práticas sociais que às vezes variam amplamente de um extremo ao outro do hexágono. A menos que a sociedade seja definida como uma reunião de clones, a diversidade e até mesmo as diferenças não impedem a criação da sociedade; pelo contrário, ela é uma condição, pois fazer sociedade significa sempre associar-se a alguém que não seja a si mesmo, encontrando com esse outro os interesses, princípios, valores que podem vincular. O Ser Histórico Mundial não é a expressão de um devir hegeliano do Ser Histórico Europeu ou Ocidental. Ele é construído e é construído pela capacidade dos povos de raciocinar entre si suas semelhanças, suas diferenças, suas correspondências.
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Hoje, o subjetivo se encontra com o objetivo. Pela multiplicação de crises – sociais, ambientais, sanitárias… – as pessoas tomam consciência de “sua comunidade de destinos” nas palavras de Edgar Morin, sentem em seu ser o que os artistas cantaram em 1985: we are the world. Com o coronavírus, cada povo experimenta a necessária coordenação global de cientistas – que não estão todos em um mesmo país! – para fins de encontrar o tratamento certo; experimenta a fórmula até então abstrata e distante que dizia que “a saúde é um bem comum global”; experimenta os sistemas econômicos que os vinculam e os forçam a pensar juntos nas maneiras de sair da crise.
Essa experiência sensível não deve ser perdida; deve ser experimentada de acordo com o processo descrito por John Dewey, ou seja, manifestação por atos e por instituições da consciência que as pessoas têm de suas experiências relacionais. Se a saúde agora é sentida como um bem comum global e não como um conceito meramente abstrato, torna-se possível desconectá-lo das instituições estatais nacionais e confiá-lo a uma instituição global. O mesmo ocorre com a questão do clima, da biodiversidade, dos fluxos migratórios, da sonegação de impostos, etc.
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Além disso, o caminho proposto não é novo. No final da Segunda Guerra Mundial, para garantir a paz na Europa e a solidariedade entre seus povos, os pais fundadores da nova Europa que deveria ser imediatamente criada retiraram dos Estados a administração do carvão, do aço e do átomo para confiá-la a instituições supranacionais administradas em comum. Da mesma forma, as agências especializadas da ONU – como OMS, OIT, FAO, etc. – representaram a expressão do primeiro estágio de conscientização sobre alimentação e trabalho como bens comuns globais. Hoje, porém, são superados por uma consciência mais aguda, mais forte e mais urgente do princípio de solidariedade, que exige que sejam reconstruídos com base no direito dos cidadãos do mundo de participar de sua administração e na definição de suas políticas públicas. Como essas futuras instituições globais serão responsáveis ??por definir políticas de saúde pública, clima e trabalho que pesarão sobre os cidadãos do mundo, é mais do que lógico que eles devam participar de sua construção e governança. Lógico e democrático.
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