por Alberto Aggio
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O Brasil que completa 200 anos como Nação independente, em setembro de 2022, é atualmente o quinto país em extensão territorial e o sexto em número de habitantes, ultrapassando a casa dos 200 milhões. Não é, portanto, um espaço geopolítico desprezível no globo. Casa comum de imigrantes que se integram e convivem, notabiliza-se por sua diversidade e diferenciação em termos demográficos e também por sua unidade enquanto pertencimento a uma comunidade imaginária: todos nós nos reconhecemos como brasileiros e, ainda que de forma difusa, valorizamos esse sentimento.
O Brasil destaca-se por ter consolidado o Estado nacional sem tensões territoriais importantes e pela construção de uma sociedade tolerante, plural e dinâmica. A estabilização do território assim como a adoção de uma única língua oficial, falada e escrita, além dos avanços econômicos alcançados em diversos setores são expressão dessa construção. O Brasil chegou a ser o país de maior crescimento econômico durante boa parte do século XX e, por algum tempo, tornou-se a sétima economia do mundo.
Entretanto, há um déficit bastante evidente para todos: a imensa desigualdade entre seus habitantes e com ela a insuficiência real na vigência concreta dos direitos humanos básicos, atestados de maneira diferenciada conforme as regiões do país. Conquistas civilizatórias convivendo com misérias insuportáveis compõe um retrato do que é o Brasil que chega aos 200 anos.
Não vivemos hoje uma jornada particularmente otimista. Por inúmeras razões, o governo de turno nos impede tal tipo de sentimento. Contudo, sabemos que o Brasil continua a ser, difusamente, uma referência positiva e esperançosa tanto para brasileiros quanto para o resto do mundo que nos mira com certa expectativa.
Tentar entender o Brasil, ou seja, pensar o Brasil nunca foi apenas um exercício individual de caráter acadêmico ou intelectual. Envolve forçosamente uma reflexão que alimenta, o tempo todo, a perspectiva de compreender o país e arquitetar projetos que visam seu futuro. Que representação os brasileiros fazem do seu país? Para o ex-ministro Pedro Malan, os brasileiros, como outros povos que se destacam ao redor do mundo, deveriam ou necessitam ter uma “certa ideia” do Brasil, mesmo que seja uma “ideia precária… sempre aberta a diálogo… sobre nossos problemas fundamentais;…uma certa ideia, mais ou menos compartilhada”[1].
Não é, certamente, uma demanda sem sentido. Para muitos intérpretes, o Brasil sempre foi e continua a ser um enigma[2]. Para outros, sua existência é sobretudo um artifício da imaginação, seja antropológica ou literária. Para outros tantos, seria essa imprecisão ou indefinição que lhe daria sentido, escapando de qualquer modelo comparativo apanhado em alguma latitude do planeta; o Brasil seria um paradoxo que não pode ser explicado e nem realizado[3]. Nesse caso, o Brasil expressaria uma excepcionalidade superlativa, distinta de outras experiências históricas, com seus maneirismos típicos dos quais o “jeitinho” ou a “gambiarra”, incensados ad nauseum, seriam suas marcas identificadoras[4]. Enfim, há muitas perguntas no ar sobre que tipo de sociedade se formou nessas terras e que expectativas se poderia projetar para seu futuro ao completar 200 anos de vida independente. E a resposta sugerida é que, em definitivo, não sabemos. Mas, o fato é que necessitamos saber. Imersos nessa disjuntiva, voltamos ao ponto inicial e talvez seja por isso que pensamos tanto o Brasil.
Alguns importantes interpretes, cada um a seu tempo, buscaram traduzir como compreendiam o país por meio de imagens-sínteses. A imagem que ganhou mais densidade na nossa história política e cultural deriva de uma leitura acerca da matriz fundadora do país, que Caio Prado Jr. definiu como o sentido da colonização. Uma fórmula que deitou raízes não apenas na historiografia, mas também na política. Por intermédio dela construiu-se a noção de “revolução brasileira” na esperança de que se processasse no país uma ruptura com aquele sentido desvendado. Haveria a necessidade de se projetar e realizar uma “revolução brasileira” que suplantasse os séculos de vida colonizada e os males engendrados nessa trajetória: a escravidão e o latifúndio. Mas, como sabemos, não foi uma “revolução” desse tipo que deu cabo ao par perverso que infelicita o país desde as origens. E sabemos também que a herança de ambos, mesmo no bojo das modernizações que conhecemos, permaneceu nos assolando até os dias que correm.
Não foram poucos os interpretes que fizeram um diagnóstico duro a respeito do fracasso sucessivo das modernizações vivenciadas pelo Brasil[5], mesmo que não tenham deixado de reconhecer que foi como resultado delas que se atualizou o país ao liberalismo nos primeiros anos da nossa independência; que se estabeleceu aqui um apreço pela educação e pela ciência, desde o final do século XIX; que se superou a falsa ideia da sua imutável vocação agrícola e se deu passos largos rumo à industrialização e, com isso, à edificação de cidades e metrópoles, projetando uma arquitetura inovadora, e assim por diante. Tais ondas modernizadoras produziram entre nós avanços civilizatórios indiscutíveis. Contudo, de crise em crise, a modernidade, que ensaiava sua emergência em todos esses processos acabava sempre escorrendo por entre nossos dedos sem que pudéssemos apreendê-la coletivamente e seguir sua trilha. Em síntese, como asseverou Raymundo Faoro, o Brasil expressaria, dessa maneira, a figura de um gigante deformado, uma força bruta, de impossível conexão com qualquer narrativa edificante de uma Nação em busca da sua modernidade.
A reiteração ou ressignificação do passado, reposta a cada momento de sua atualização ao mundo, acabou gerando uma “dialética perturbadora entre o moderno e a modernização”[6], estabelecendo a imagem-síntese que melhor tem identificado a trajetória do país. O Brasil seria a expressão de uma “modernização sem o moderno”, uma construção analítica que conformaria uma teoria explicativa sobre o Brasil. Em outros termos, uma imagem que comungaria simultaneamente força e grandeza, tropeço e repulsa a si mesmo, o que iria resultar numa “história sem síntese”, na qual nossas modernizações acabam se tornando um “cemitério de projetos, de ilusões e de espectros”, isto é, um rosário de modernizações que sepultam modernizações, sem que o moderno possa se estabelecer e, ao mesmo tempo, sem que ele deixe de nos referenciar como anseio e destino.
O Brasil das modernizações sucessivas se fez em meio às disputas intelectuais e políticas pela hegemonia no andamento da sua “revolução passiva”[7], uma história de paradoxos, contradições e incompletudes. A história atesta que nesses seus 200 anos de Nação independente, o Brasil não conheceu o protagonismo de um movimento de caráter abertamente revolucionário que tivesse alcançado êxito. A nossa é, assim, uma história sem-revolução, embora não possa ser vista como uma história sem conflitos políticos e lutas sociais, por vezes agudas e cruentas. É uma história cujos momentos de passagem a novos patamares, muitas vezes falseando a noção de revolução, foram realizados a partir da vitória da conciliação e da moderação políticas. Uma história complexa que guarda uma sucessão de “transformismos” que oscilam e informam as positividades e negatividades da nossa formação social[8]. O moderno aqui, como afirma Luiz Werneck Vianna, “longe de realizar seu caminho de imposição pela drástica remoção do atraso…, afirmou-se… pela via recessiva do transformismo, sob a direção de um Estado que trouxe para si a administração de um compromisso entre as elites industriais emergentes e as agrárias, cuja força política e social provinha, secularmente, do exclusivo da terra e das formas repressivas de controle social exercidas sobre os trabalhadores do campo. Sob essa estratégia, o moderno burguês não procurou o antagonismo – como evidente na chamada era Vargas e nos anos JK, momentos fortes de expressão do seu projeto – com as forças do atraso e da tradição, que aliás, lhe concederam lastro político à sua sustentação”[9].
Hoje estamos obrigados a pensar a experiência histórica brasileira, isolando os esquemas abstratos e modelares. Histórica e concretamente somos a combinação e síntese da nossa matriz ibérica com uma tradução particular do “americanismo”, o que nos tornou diferenciados na América Latina. Sobrepostas, ambas influências deram ao país a morfologia da sua formação social. Se seguirmos essa perspectiva analítica podemos inferir que a nossa sempre necessária equalização ao tempo dos contemporâneos não poderá ser sequer vislumbrada caso não se reconheça que a vida social e política, a economia e os valores civilizatórios são hoje história global. Assim, seria importante pensar o Brasil por meio de uma análise que seja capaz de captar a natureza interdependente do mundo atual e alocá-lo num quadro comum de problemas dentre os quais se poderia mencionar os desafios permanentes da consolidação da democracia e de inserção ativa na globalização, carregando um propósito irrecusável de defesa e afirmação da sustentabilidade econômica e ecológica.
O tempo das modernizações ancoradas numa lógica e numa perspectiva autárquica não se coaduna mais com as profundas mudanças do tempo e do mundo. O problema político que está posto às novas gerações que hoje veem o Brasil chegar aos 200 anos, e que são intelectual e politicamente filhos dessa trajetória, é o de superar essa lógica e essa perspectiva a partir das contradições do seu espaço nacional, que não pode mais ser pensado como fora no passado. Depois de o país optar, em vários momentos, por impulsionar saltos, buscando acelerar o “relógio da história” (Faoro), permanecer imerso nesse modus operandi, estimulando a aceleração econômica – uma permanente “fuga para frente” –, com compensações voltadas à distribuição da riqueza, já não se mostra como uma possibilidade real no sentido de vislumbrarmos um futuro promissor para o país.
Está mais do que na hora de se adotar outra orientação, fundada na ideia de autonomia dos sujeitos sociais, individuais e coletivos, na democracia política e em suas instituições, bem como numa economia com novos padrões de sustentabilidade. Em outras palavras, trata-se de pensar e colocar em prática uma transição estrutural que confronte e supere as visões corporativas e utilitaristas, além daquelas explicitamente ilusórias e passadistas, para instituir o vetor de um novo reformismo, não mais como expressão de interesses, mas um “reformismo segundo valores”[10]. Sem partir de nenhum ponto zero ou da ilusão redentorista do “que se vayan todos”, trata-se evidentemente de uma operação que deverá reconhecer os passos dados pelo país, mas que também tenha clareza de que é necessário alterar os referenciais conceituais que têm orientado seu caminho para a modernidade.
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Notas:
[1] MALAN, Pedro. Uma certa ideia do Brasil: entre o passado e o futuro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018, p.17.
[2] BOTELHO, André e SCHWARCZ, Lilia (orgs). Um enigma chamado Brasil – 29 interpretes de um país. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
[3] ROCHA, João Cezar de Castro (org). Nenhum Brasil existe (Pequena Enciclopédia). Rio de Janeiro: Topbooks/Ed. UERJ, 2003.
[4] AGGIO, Alberto. “Gambiarra no centro do mundo”. Revista Será?, 09/2016. Cf. https://revistasera.info/2016/09/gambiarra-no-centro-do-mundo-alberto-aggio/
[5] Seguramente o autor que melhor expressa essa linhagem é Raymundo Faoro em suas obras Os donos do poder (Globo: 1958/Globo/Edusp: 1975) e especialmente em Existe um pensamento brasileiro? (Ática: 1994).
[6] VIANNA, Luiz Werneck. “Raymundo Faoro e a difícil busca do moderno no país da modernização” In BOTELHO, André e SCHWARCZ, Lilia (orgs). Um enigma chamado Brasil – 29 interpretes de um país. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 364-377.
[7] VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro/ Revan, 1997.
[8] VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva …., especialmente o capitulo “O ator e os fatos: a revolução passiva e o americanismo em Gramsci”, p. 28-88.
[9] VIANNA, Luiz Werneck, A modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula. Brasília/ Rio de Janeiro: FAP/Contraponto, 2011, p. 18.
[10] VACCA. Giuseppe. Por um novo reformismo. Rio de Janeiro/Brasília: Contraponto/Fap, 2009, p. 95.
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