por Rodolpho Bernabel
A Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores, divulgou recentemente uma pesquisa sua que gerou certa polêmica pelo fato dos resultados serem desalentadores para o Partido. A pesquisa em questão, denominada “Percepções e Valores Políticos na Periferia de São Paulo”, pode ser lida na íntegra.
A fundação “descobriu” que os moradores da periferia gostam de consumir, acham que pagam impostos demais e recebem em troca péssimos serviços do governo, não se veem como inimigos da burguesia, valorizam a família, a religião, e — pasmem — querem melhorar de vida empreendendo com suas próprias forças. Na verdade, a única coisa que espanta nisso tudo é que os resultados ainda espantem alguém. Talvez para quem insiste em tentar impor aos outros seus valores, sua ideologia, sua intolerância para com o diferente isso seja realmente estranho.
Antes de continuar com a análise dos resultados, é preciso fazer algumas ressalvas com relação à qualidade dos dados obtidos e à metodologia de pesquisa. O relatório não mostra que mecanismo de seleção de amostra foi utilizado. Dada a pequena amostra e o fato de terem dividido os entrevistados em algumas categorias demográficas, presume-se que não utilizaram qualquer mecanismo de seleção aleatória de participantes. Portanto, é inadequado fazermos generalizações dos resultados obtidos exclusivamente com base nas estratificações expostas. A única coisa que nos permite entender os resultados como sendo passíveis de generalização para toda a periferia é que eles apontam para o senso comum.
Outra curiosidade metodológica do estudo, por assim dizer, é que o relatório apresenta, logo no início, uma coleção de frases reunidas sob a denominação de “hipótese inicial”, que quase formam um argumento, mas que são claramente uma racionalização em cima dos resultados obtidos, além de uma série de estultices, é claro. A “hipótese” é mais ou menos esta: Lula e Dilma melhoraram a vida dos pobres; os pobres que tiveram suas vidas melhoradas se tornaram mais liberais; quando a crise econômica veio esses mesmo pobres que tinham ficado menos pobres, mas que agora voltaram a ficar mais pobres, passaram a ser menos “associativistas” e “comunitaristas” (o leitor que se vire pra saber o que quer dizer isso) e ficaram mais “individualistas”, “meritocráticos” e “competitivos”; e as igrejas neopentecostais, por sua vez, parecem ganhar espaço (?). São tantos os absurdos ditos em tão curto espaço que não teríamos tempo nem paciência para analisar cada um deles. Nesses momentos é preciso fazer o seguinte: ler, identificar o que não faz sentido, e voltar aos nossos afazeres mais importantes. Em seguida, são elencados os objetivos da pesquisa, compreender o mundo e ajudar o projeto político do PT (palavras deles). Ou seja, o objetivo da pesquisa não é levantar evidências a favor ou contra a hipótese (no que o leitor já deve estar a exclamar: “Mas é claro, não há hipótese!”).
Feita essa chata, mas necessária, digressão metodológica, voltemos à substância do estudo. A série de “descobertas” arroladas é grande, mas vamos nos limitar àquelas que espantaram a blogosfera. Abaixo seguem os resultados tais como descritos no estudo, apenas destacados em itálico para diferenciar dos meus comentários.
Os entrevistados têm, no geral, rotina agitada e sufocante e, portanto, a formulação acerca da política não é a prioridade no cotidiano.
Jura por Deus que os trabalhadores trabalham e não podem ficar pensando em revolução o tempo inteiro?!
A racionalização acerca da política não segue a lógica do espectro ideológico que vai de direita à esquerda. Os julgamentos flutuam em zigue-zague, de posições mais conservadoras a mais progressistas dependendo do assunto abordado.
Também há dois outros jeitos de descobrir isso, uma é ler as pesquisas que o Datafolha publica de tempos em tempos, a outra é falar com as pessoas na rua, nas redes sociais etc.
Trabalhador e patrão são diferentes, mas não existe no discurso relação de exploração: um precisa do outro, estão no ‘mesmo barco’.
Ainda mais quando o “barco” está afundando, como é o nosso caso. A tese de Marx de que haveria uma consciência de classe não encontrou respaldo na pesquisa. A classe trabalhadora pode até ter uma consciência em comum, seja lá o que isso queira dizer, mas, infelizmente para a Fundação, é a consciência errada. Não deixa de ser irônico ver o PT descobrindo que seu pai espiritual estava, mais uma vez, equivocado.
Para os entrevistados, o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital e trabalho, entre corporações e trabalhadores. O grande confronto se dá entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes.
O Raymundo Faoro deve estar feliz numa hora dessas!
Querem ter sua singularidade e valores reconhecidos dentro da competitividade capitalista, mostrando que, apesar das limitações impostas pela condição social, também são capazes.
Como qualquer pessoa decente.
…a religiosidade está presente no discurso de todos e a religião, junto com a família, é considerada central na vida dos entrevistados!
É o “ópio do povo”, como dizia Marx.
A política como ferramenta de mudança social está em processo de descrédito, chegando, em alguns casos, a ser até criminalizada.
Não! Quem está em processo de descrédito e sendo, devidamente, criminalizados, são criminosos que usam a política como ferramenta de mudança social deles mesmos.
Em muitos casos, a visão de mundo é formada se espelhando não entre aqueles que pertencem ao mesmo grupo, mas entre aqueles que pertencem ao grupo onde esses indivíduos almejam chegar, é fundamental observar os desejos e as expectativas futuras dessas pessoas.
Deixa para lá…
A lógica mercantil está presente mesmo na interpretação dos direitos trabalhistas e benefícios sociais. As pessoas confiam mais nos programas que ofertam imediatamente recursos financeiros (Bolsa Família/Passe Livre) do que nas leis que orientam direitos.
E aí eu pergunto (como diria um orador da TV): A culpa é de quem?
MAS… os entrevistados seguem acreditando em saídas democráticas, falam em fortalecimento dos processos de transparência e participação. No processo de formação de opinião, as condições materiais de vida e do cotidiano são preponderantes.
Aqui talvez haja um dado novo. A população ainda não perdeu a fé na democracia. Bom para nós! Como dizia Descartes, o homem comum compreende e resolve muito melhor os problemas do que os eruditos que empregam o método errado.