por Pedro Gomes Sanches
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O título deste artigo pode bem induzir o leitor mais incauto a pensar que o Brasil deve escolher entre abrir-se ao cosmos, ao outro e ao imenso, ou fechar-se entre os seus e ir de táxi. Se leu assim, não foi incauto, foi arguto: isso também é verdade. Mas para já o ponto que quero explorar não é bem esse. E juro que a história do táxi também não é piadinha requentada ao caso da Inmetro, nem ao episódio que se lhe seguiu.
No passado dia 22 de Outubro, no Estoril Political Forum (EPF), numa iniciativa do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, realizou-se um painel com o tema “Brazil and Latin America: The Challenges Ahead”, com Bruno Garschagen, Gilberto Morbach, Leonidas Zelmanovitz, Luiz Felipe Pondé e Ricardo Sondermann, moderados por Júlia Evangelista Tavares e acolhidos por João Pereira Coutinho. O riquíssimo painel foi um óptimo ponto de partida para uma discussão urgente e útil sobre o Brasil e a tradição conservadora liberal; entendamo-lo assim para esta reflexão, como ponto de partida: não esgotando a discussão ali havida, mas também não se confinando a ela.
Aí se debateu como a tradição conservadora liberal pode contribuir para responder aos novos desafios e actores políticos que emergiram no Brasil. Mas esse debate coloca desde logo vários problemas. Primeiro o da tradição. Sendo a tradição conservadora liberal tão vasta, com contributos na política, na economia, na cultura etc., qual desses contributos seria de considerar? Depois os “novos desafios” e “actores políticos”. “Novos desafios” que se colocam a uma escala mais macro, como na questão da Amazónia e das alterações climáticas, ou no posicionamento geoestratégico no Atlântico Sul, América Latina e relação com África, num quadro de desafio da China ao incumbente Estados Unidos? Ou antes “novos desafios” e “actores políticos” a uma escala mais micro, designadamente os que resultam dos casos de corrupção de políticos e estruturas como no caso da Lava Jato, ou de conflitos institucionais como os do Presidente com o ex-Ministro da Justiça a propósito de casos de nomeações na esfera judicial? Ou ainda “novos desafios” como o aumento das assimetrias socioeconómicas — já antes grandes — com a crise pandémica?
Para mitigar a intratável amplitude desta discussão — porque para cada uma das questões anteriormente apresentadas seria possível encontrar contributos conservadores liberais —, ater-me-ei apenas a alguns aspectos salientados no painel do EPF.
Bruno Garschagen sinalizou que a população brasileira acordou para os riscos da tradição autoritária e realçou a importância do pluralismo das ideias, designadamente na relação entre a internet e a imprensa tradicional e no papel dos debates na universidade. O papel da internet foi muito reforçado por Luiz Felipe Pondé, designadamente quanto ao papel das redes sociais enquanto expressão do poder do povo. Gilberto Morbach, reforça Garschagen quanto à mentalidade autoritária, sublinhando, porém, sua presença — em uma dimensão até reacionária — no próprio conservadorismo brasileiro, e daqui tece algumas considerações sobre a insuficiência da mera rejeição do que não queremos em sede de guerra cultural. Retomando Raymond Aron, Morbach diz, citando L’opium des intellectuels, que, se “o revolucionário torna-se opressor, o conservador adere aos poucos ao cinismo”. Este aspecto, de marca reaccionária (entendamo-la como tradição conservadora não liberal), é central no debate político actual, não só no Brasil. Linhas conservadoras (não liberais) têm insistido na guerra cultural — contra o marxismo cultural e/ou o niilismo — como chave do debate político actual. Morbach afirma que “vencer uma guerra cultural parece em si um oxímoro”; não basta inverter o sinal de tudo o que vem sendo criado. Leonidas Zelmanovitz, por seu turno, fez uma critica à economia da esquerda, para Ricardo Sondermann concluir com uma visão pessimista sobre o país do quase, da qual salientaria uma ideia essencial: “nenhum governo completa o que foi feito anteriormente”.
É seguramente difícil tecer uma malha que, neste espaço, ligue tantas e tão complexas ideias, mas centrar-me-ei na questão da ordem — elemento absolutamente central a todas as tradições conservadoras — e da guerra cultural — o buzz do momento na maior parte dos países — para, a partir daqui, dizer ainda algumas coisas sobre ruptura e continuidade, aspecto porventura essencial para a compreensão do conservadorismo liberal.
Definamos o pano de fundo para esta reflexão. Hayek desenvolveu um tema central[1] aos conservadorismos, e, não por acaso, também ao Brasil dos dias hoje: a ordem; esse insigne lema nacional inscrito na vossa bandeira. De acordo com o autor, há dois tipos de ordem: uma emergente e uma imposta; cosmos e taxis, respectivamente, para usar a velha terminologia grega. A primeira refere-se a uma ordem resultante da interacção dos indivíduos, orgânica, herdeira de tradições e costumes incorporados na sociedade, mas adaptável; uma grown order. A segunda refere-se a uma ordem criada, imposta num certo sentido, visando um propósito final previamente concebido; uma made order. A primeira doutrinal, a segunda ideológica. É sob a égide desta oposição entre uma organicidade tradicional e uma mecanicidade ideológica que vamos.
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Como Morbach sublinhou, nos últimos anos foi crescendo e sendo difundida uma convicção de que seria, mais que necessário, urgente combater as esquerdas. A alegação? Que estas se impuseram com a ditadura do politicamente correcto e que promovem consciente e consistentemente a erosão dos valores e instituições mais tradicionais da sociedade. O caminho a seguir? Travar um combate cultural contra o niilismo, contra toda a espécie de neo-marxismo, contra o politicamente correcto, e contra a destruição de todas as tradições e suas instituições. Como? Reagindo, empenhando-se em negar as narrativas da esquerda. A síntese verificada? Ser a antítese da esquerda. A conclusão indesejada? Permitir que esta se afirme como a tese dominante.
Ora, esta visão, para lá do efeito pragmático que aponto, é extremamente redutora para a tradição conservadora liberal, amarrando-a a uma exiguidade de soluções e forçando-a a abandonar os seus valores intemporais em favor de uma resposta tíbia à crispação do momento. Mais: falar nas direitas — e não discernir entre tradições conservadoras — sem estabelecer as diferenças entre elas é um erro, como aliás Rosenfield de forma clara num artigo no Estadão assinalou. Pode funcionar conjunturalmente, como é próprio da reacção, mas dificilmente dura o tempo necessário para agir estruturalmente. No caso do Brasil, hoje, o que a corrupção petista uniu na reacção, a autocracia bolsonarista começa a cindir na continuação. Porque se a estratégia da antítese pode funcionar durante algum tempo, ela não é duradoura nem virtuosa.
De resto, para a discussão que nos interessa, podemos sempre afirmar que se o conservadorismo reacionário, de inspiração francesa, datado de 1789 e bastamente desenvolvido, também em França, em finais do século XIX, até pode ser acusado de existir para ser a antítese da esquerda — reconhecendo-lhe com isso primazia —, o conservadorismo liberal nasce antes, com Burke, para ser uma síntese dos seus valores essenciais com o espírito do tempo presente. Eu sei, eu sei, esta afirmação é, no mínimo, ousada. Desde logo porque talvez seja difícil encontrar afirmação que gere mais polémica no pensamento conservador, que uma que se relacione com a ideia de tempo; e que, não obstante, João Pereira Coutinho desenvolveu com clareza inspiradora.[2]
Sobre isto, contudo, porque me parece centralmente relevante para o tema da continuidade/ruptura vale a pena desenvolver mais.
É possível encontrar um ramo do conservadorismo que quer cortar com a “perdição” do presente e voltar a um passado idílico de ordem (reaccionarismo), e um outro que quer romper com este presente para construir uma nova ordem de um Homem Novo (vanguardismo). Quer um regresso romântico a uma idade de ouro do passado, quer um avanço para um novo e perfeito futuro, são ambas pulsões de uma made order (taxis), de um projecto de engenharia social, profundamente ideológico; caminho vivamente desaconselhado pela História, cujos cemitérios estão repletos de vítimas das ideologias. A alternativa, no pensamento conservador, é aquela que estima o presente como herdeiro das interacções humanas, das tradições e dos costumes: a tradição conservadora liberal.
Porém, estas considerações sobre o tempo trazem consequências: desde logo o repúdio pelas rupturas violentas — seja em direcção ao passado, seja em direcção ao futuro. E isto devolve-nos à afirmação, em jeito de lamento, de Ricardo Sondermann de que “nenhum governo completa o que foi feito anteriormente”. Para o conservadorismo liberal a preservação do que se ama, do que se conhece, obriga necessariamente a um cuidado do presente. Mas não um presente hedonista, desligado dos nossos mortos e dos nossos nascituros; antes um presente como tempo de passagem da tradição, em que nos encontramos e sobre o qual temos responsabilidade. É por isso, por esta continuidade, que, mais pragmaticamente falando, é essencial também uma continuidade nas políticas públicas. O abandono sem avaliação, nem incorporação, a ruptura inconsequente para substituir por algo “novo” é profundamente violento para a tradição conservadora liberal, que não dispensa as reformas, mas repudia as revoluções. Ou, como dizia o meu conterrâneo Miguel Esteves Cardoso, “Estamos todos presos no presente. O presente pode não ser perpétuo, mas existe. O futuro nunca aconteceu.”
Porque se para outras correntes conservadoras a tradição é uma “ideia” congelada no passado à qual se quer voltar, para o conservadorismo liberal a tradição é algo vivido e em permanente construção, legada de geração em geração. E, como tal, são necessárias reformas que mudem o necessário para preservar o essencial.
Aliás, sobre isto, como não recordar a translucidez das palavras de Burke?
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A natureza humana é intrincada, os fins da sociedade são da maior complexidade e, por isso, nenhuma simples disposição ou orientação do poder pode ser adequada quer à natureza do homem quer às características dos seus assuntos. Quando eu oiço a simplicidade dos esquemas que se propõem e que se louvam, em qualquer nova constituição política, não tenho dificuldade em decidir que os seus artífices ou são grandemente ignorantes do seu ofício, ou totalmente negligentes do seu dever. É com cuidado infinito que qualquer homem se deve aventurar a deitar abaixo um edifício que há muito tempo responde satisfatoriamente aos fins comuns da sociedade, ou aventurar-se a construí-lo de novo, sem ter ante os seus olhos modelos e padrões de utilidade comprovada.[3]
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Nesta afirmação, Burke, para lá de repudiar as rupturas e louvar ad contrarium a continuidade, repudia também a ideologização da política e, passe a redundância, qualquer espécie de ordem imposta (taxi). É por isso que onde parece haver uma intenção ideológica, a prudência — essa virtude conservadora de inspiração também Burkeana — parece recomendar uma abordagem mais doutrinária. E é também por isso que pode ser a tradição conservadora liberal a via adequada para dar resposta à muito pertinente questão levantada por Morbach de que não basta inverter o sinal de tudo o que vem sendo criado.
Ainda nesta linha, e regressando a Hayek, poderíamos afirmar que é na ordem espontânea, socialmente emergente (cosmos), consolidada pelo somatório de interacções ao longo do tempo, que a política deve agir; limitando-se. Mas isso traz-nos outros problemas no cerne da tal guerra cultural, que é, na verdade, uma guerra moral, porque centrada nos valores dominantes que suportam as práticas culturais.
A generalidade dos conservadorismos preza a religião, a memória colectiva e a família. Alain Benoist, que não é desta história, e a sua Nova Direita, talvez contradigam esta assumpção, mas, lá está, lembrando o célebre poema de Drummond de Andrade, não são desta história: da do conservadorismo liberal. Voltando: no nosso quadro de análise, a adesão a esses valores deve ser voluntária, livre ou, pelo contrário, imposta se a adesão não se verificar? E no caso da segunda hipótese, como compatibilizá-la com o facto de um dos valores desta tradição ser também o da liberdade individual? Neste conflito, o que é que certo e errado? E como é que o conservadorismo liberal tende a posicionar-se?
A moral parece ser uma variável política central, quer na história do pensamento político, quer na história das comunidades políticas; e, indelevelmente, no pensamento conservador, lato sensu. A distinção entre o bem e o mal, o certo e o errado, e a forma de organizar a sociedade em sua função têm ocupado pensadores e políticos ao longo dos séculos. Mas se estas afirmações parecem pacíficas, e extensíveis às mais diversas visões da sociedade; se estas afirmações podem, em princípio, ser reclamadas como válidas por correntes (e governos) mais liberais ou mais iliberais, mais democráticos ou mais oligárquicos, mais livres ou mais autocráticos, mais individualistas ou mais colectivistas, mais conservadoras ou mais progressistas, mais antigas ou mais pós-modernas; o que é que causa tanta clivagem entre elas?
A resposta mais imediata a esta questão poderá ter a ver com os valores estimados. A moral alicerçada em valores, e a crença de que são esses os valores bons por oposição aos que, passe a redundância, se lhes opõem parece ser a principal razão para os antagonismos morais.
Mas não só. Há eventualmente uma resposta não tão imediata. Uma resposta que se prende mais com os processos a partir dos quais os valores são estimados, percepcionados. Não um par perfeito entre adesão e rejeição, mas olhares diferentes sobre os mesmos valores; e radicalmente diferentes quanto à forma de os alcançar. Uma pugnação aparente pelos mesmos valores, mas que redundam quer em configurações políticas finais, quer em mecanismos de defesa diferentes. Aliás, caso contrário, todos os moralistas da história estariam alinhados. Não a despropósito, Isaiah Berlin afirma que “quase todos os moralistas na história da humanidade fizeram a defesa da liberdade.” Nesta linha, como não voltar novamente à subtileza de Hayek no olhar sobre Ordem; como não recordar igualmente a visão de Berlin no seu olhar sobre Liberdade; como não ter presente o olhar disruptivo de Himmelfarb sobre o iluminismo britânico, reescrevendo de forma radical a história do iluminismo? É porque usando as mesmas palavras, defendendo os mesmos valores, podemos (estaremos com certeza) a falar de coisas diferentes; e, desde logo, na Moral, uma diferença entre uma Moral que guia e uma Moral que impõe, uma Moral como tradição e uma Moral como ideologia; ou, indo mais longe, valores morais empáticos ou valores morais de repúdio. No fundo, aqui chegados, estamos perante o confronto entre uma normatividade ideológica e uma adesão doutrinária. Mas divago. Atenhamo-nos novamente aos ilustres palestrantes e voltemos ao combate cultural.
O combate cultural trava-se nas escolas, nas Universidades, na formação de magistrados, na formação e nas redacções de jornalistas, na actividade cultural, na sociedade civil e, hoje em dia também, como sinalizaram alguns palestrantes, nas redes sociais. Dos salões do iluminismo francês às universidades de “ciências” sociais e fora sociais anti-Davos — com Porto Alegre, no Brasil, como ponto predominante – todos dominados pela esquerda; todos abandonados pela direita por desleixo, incompetência, sobranceria ou porque tinham outras coisas para fazer.
É por isso interessante, ainda que polémica e inconclusiva, a afirmação de Luiz Felipe Pondé, de que as redes sociais — segundo ele motor de acção do Presidente Bolsonaro — são a expressão democrática do dia, porque é a expressão do povo que se manifesta.
Porquê inconclusiva? Porque o processo — e não projecto — conservador liberal não é exclusivamente democrático, mas democrático liberal. Porque se a vontade do povo pode ser reputada de democrática, não é necessariamente liberal. E, por outro lado, uma sociedade liberal não é necessariamente democrática. Sim, estimado leitor, estou falando de Rule of People e Rule of Law. Porque se é verdade que pelo Ocidente vamos assistindo à extrema polarização do debate político e à fragmentação do eleitorado em excessos de escrúpulos identitários, com grande preocupação em apontar o dedo aos democratas iliberais (vulgo populistas), frequentemente ignoramos o risco que vem de oligarcas liberais (vulgo status quo) — cujo expoente máximo terá tido expressão no basket of deplorables da Srª. Clinton. E os riscos vêm de ambos os lados.
Porquê polémica? Porque a democracia não se faz pelo buzz internáutico; como nunca se fez pela turba na rua.
Eatwell e Goodwin[4] identificam quatro tendências (4 Ds) que, segundo eles, estão a redesenhar a política no Ocidente; a saber: a Desconfiança das elites que ignoram a maioria dos eleitores e os tratam com condescendência, a Destruição da noção de comunidades locais e nacionais em nome do globalismo, a (Deprivation) privação relativa dos muitos — experimentada como absoluta à escala individual — face à riqueza dos poucos, e o Desalinhamento do eleitorado face aos partidos tradicionais, que aos seus olhos representam essa elite. Isto soa familiar no Brasil, certo?
É a percepção destas tendências, que se vão descortinando nas sociedades, que têm levado algum conservadorismo a embarcar no discurso da emoção, num palco – o político — onde a razão e a preservação das instituições deveriam imperar. Dostoievski, no Crime e Castigo, bem declara que onde “a razão falha, o diabo ajuda”. Oakeshott[5] afirma que um homem com uma disposição conservadora percebe que, no negócio do Governo, a paixão inflamada deve ser contrariada com o ingrediente da moderação, por forma a restringir, diminuir, pacificar e reconciliar; não alimentando a fogueira dos desejos, mas amainando-a.
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Mas, infelizmente, Bolsonaro não terá lido Oakeshott, nem Dostoiévski; já sobre os efeitos de esterilidade da estratégia, o Sr. Trump pode explicar melhor.
Exagero? Querem exemplos? O espaço público — cada vez mais alargado, cada vez mais ignorante e cada vez mais violento – tem polarizado, um pouco em todo o mundo ocidental, as discussões de uma forma lamentavelmente pobre e vergonhosamente primária. Se os antifas, com a sua agenda totalitária e violenta, chamam a si a causa do antirracismo, do outro lado, por sua causa, logo aparecem os negacionistas do racismo, como se esta deplorável chaga não fosse real. Se os neo-marxistas, com a sua agenda anti-tradição, chamam, pelo menos nominalmente, a si a defesa da igualdade de género e dos direitos LGBT, logo aparecem do outro lado os machões, incomodados com as expressões de liberdade individual e com a defesa dos direitos humanos, como se ainda hoje no mundo não fossem perseguidos e mortos gays, meninas não fossem mutiladas, e mulheres não fossem, absurda e inadmissivelmente, vítimas de maus tratos e assassinadas, apenas por serem quem são. Se os animalistas, com a sua agenda desumanizante e destruidora da ordem social, defendem os direitos dos animais, logo aparecem aqueles que se iram com o tema, como se fossem aceitáveis, e até natural da condição humana, os maus tratos a animais. Se a jovem Greta e os seus amigos natura clamam pelo fim dos voos de avião e o regresso às cavernas, por causa das alterações climáticas, logo aparecem os Gordon Gekko dos tempos modernos a negarem o impacto monstruoso dos nossos hábitos de consumo no equilíbrio da nossa casa comum.
Na Antiguidade matavam-se os mensageiros quando as notícias não eram do agrado dos destinatários. Hoje matam-se as notícias, os seus autores, os mensageiros e, temo, a nossa Civilização por arrasto.
Esta bipolaridade política e cultural, essa desgraça redutora que sempre tivemos de encarar, que tomou o espaço público — sendo a este propósito impossível ignorar a indelével expressão celebrizada por Dahrendorf das “dicotomias infelizes” — tem, desde logo, três problemas. O primeiro é que o torna profundamente ignorante, porque o reduz à escolha entre preto e branco. Quando assim é, e quando os seus principais actores ocupam ruidosamente a discussão, não costuma resultar qualquer síntese virtuosa da mesma. Porque quando o debate é tão pobre, não são teses e antíteses que se discutem, mas apenas antíteses em oposição — sublinhar anti e oposição. Não é conhecimento e evolução que se almeja, mas tão só a destruição do outro, e depois, com ele, as suas posições.
O segundo, é que quem reage — e nestas matérias tem sido a direita, já que tem sido a esquerda a marcar toda a agenda do debate público — perde sempre a oportunidade de chamar a si causas sobre as quais tem não só um lastro de conquistas sociais — e com isso uma certa autoridade moral —, como também o potencial de apresentar posições mais construtivas e úteis que a mera reacção por oposição — por que não poucas vezes opta — terraplanando com isso todo o seu capital de autoridade moral. E, lamento dizer, ajeitando-se para o epíteto de cavernícola. Logo a direita, que deveria honrar a tradição de olhar para cada indivíduo como pessoa única, sem reduzir a sua identidade a traços identitários, e não a subjugando a derivas rousseanas; que contribuiu, por exemplo na Europa, decisivamente para a construção do modelo do Estado Social, dando protecção aos mais vulneráveis, sem impedir o crescimento económico e o prémio do mérito; respeitar a nossa casa comum, a partir do contributo determinante do Papa Francisco com a sua Laudato Si ou dos ensinamentos de Scruton com o seu Green Philosophy.
Finalmente, porque perdemos todos, porque no lugar de melhorar as sociedades em que vivemos, estamos a dinamitar os seus alicerces. Uns porque querem destruir o nosso estilo de vida, numa busca niilista de um futuro distópico, outros porque entram nessa dança destruidora, obliterando todo o processo reformista essencial à conservação das coisas boas.
O ressurgimento de uma uma via media — essa tão Oakeshotteana via — parece a única via pacífica e útil de restabelecimento da ordem e garante de progresso, esse tão alto desígnio brasileiro. Porque entre a esquerda radical e empobrecedora e niilista e a direita reacionária e/ou populista, só a via do conservadorismo liberal parece surgir como essa via media.
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Notas:
[1] Hayek. Law, Legislation and Liberty, cap. 02.
[2] Coutinho (2014). Conservadorismo. Lisboa.
[3] Burke. Reflexões sobre a revolução em França.
[4] Eatwell e Goodwin. National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy.
[5] Oakeshott. Rationalism in Politics and Other Essays.
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