por Tiago Pavinatto
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Passada a Páscoa, o dia da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Brasil viveu, em 24 de abril de 2020 (porque, por aqui, exceto as jabuticabas e as tomadas de três pinos, tudo chega com atraso), sua Sexta Maior. Todavia, para que a análise dessa Sexta-feira Nada Santa seja consistente e diversa de tudo sobre o que dela, exaustivamente, já se falou, devo voltar ao ano de 2003.
Nos velhos bancos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o Dr. Luiz Sérgio Modesto, com o qual dificilmente eu, na minha horrorosa soberba, estava de acordo apesar de sua eloquente e sedutora argumentação nos seminários de Teoria Geral do Estado, introduziu-nos alguns aspectos fundamentais da semiótica, uma teoria geral dos signos que investiga, grosso modo, as relações e operações sígnicas mentais que acontecem de modo automático, intuitivo e implícito.
Cabe dizer, de antemão, que um conhecedor da semiótica é capaz de direcionar o significado ou produzir grande impacto e superdimensionamento de um acontecimento no espectador – e não é demais salientar que, apesar de elaborada no final do século XIX por Charles Sanders Pierce, a primeira grande escola dessa ciência teve início na extinta União Soviética e foi responsável pelo estruturalismo linguístico dessa longeva e poderosa tirania, bem como, nos dias atuais, a chamada semiótica de imagem ou matriz visual é fundamental instrumento publicitário.
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Mas volto ao Dr. Modesto que, além de Doutor e Mestre em Teoria do Estado, é Doutor em Comunicação e Semiótica. Esse nosso monitor nos dizia que os modelos teóricos da política – por ele definida como mando ou força justificáveis – ainda apresentam intacto o cordão umbilical com a mitologia e seus derivados terminológicos diádicos do bem e do mal das teologias religiosas, de maneira que muitas das asserções da Sociologia, da Teoria Política e do Direito revelam fundamentos teológicos sem os quais ruiriam seus argumentos persuasivos para domesticação. Para ele, a origem ocidental da crença na ordem política vem do texto seminal da etnia akkad denominado Enuma Elish do Século XII a.C., cosmologia teogônica de autor desconhecido que teria continuidade diluidora na Torá, escrita entre os séculos IX a V a.C..
Em apertada síntese, o conhecimento da semiótica pode instrumentalizar interesses através da manipulação de ações para que encontrem aceitação automática e implícita no registro de signos do interlocutor, onde se encontra tudo o que vem à mente, na qual o possível se torna real pela conexão com o nosso conhecimento no instante do registro. Conclui-se, portanto, que a semiótica pode ser uma perigosa arma no jogo político.
Quinze anos mais tarde, em 2018, para minha Tese de Doutorado sobre a condição do fanático religioso no direito civil, sem que percebesse, voltei à manipulação dos signos através dos símbolos conforme as valiosas lições de Pierre Bourdieu, que, em O Poder Simbólico, conecta a eles um intrínseco poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem; um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica – em português: o símbolo tem o poder de provocar reações e direcionar o entendimento das pessoas que não querem saber, não sabem ou não percebem que esse símbolo está sendo utilizado com a intenção de direcionar o conhecimento delas.
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Todo aquele que se utiliza do poder de um símbolo para determinada finalidade, discorre Bourdieu em A Produção da Crença, por não ser o gênio criador, atua como criador substituto, um vigário do gênio, e poderá enfrentar exigências antiéticas de uma posição contraditória, uma vez que, voltando à obra O Poder Simbólico, se existe uma verdade é que a verdade está em jogo nas lutas.
Municiados desse conhecimento, é possível analisar a patética cena, talvez construída por algum místico guru especializado em patifaria intelectual, do pronunciamento do Presidente da República, na mencionada sexta-feira profana, sobre a bombástica saída de Sérgio Moro (que, em seu relato de despedida, implicitamente acusou Jair Bolsonaro da prática de seis crimes: obstrução de Justiça, falsidade ideológica, advocacia administrativa, prevaricação, corrupção e crime de responsabilidade) do seu “time” de Ministros de Estado.
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Todos os outros Ministros não demissionários e mais algumas figuras de proa do bolsonarismo, durante o pronunciamento presidencial acompanhado pelos brasileiros com obstupefação dada a absoluta falta de nexo entre os argumentos alinhavados naquele discurso (talvez uma construção dadaísta não percebida por nós, insensíveis desconhecedores dos movimentos artísticos), não estavam sentados na plateia nem foram acomodados sentados atrás ou em lugar de destaque próximo ao presidente. Não tiveram direito a uma cadeira e, pela destoante figura do Ministro Paulo Guedes (sinalizando iminente retirada de campo pelo fato de ser o único ali a usar máscara e não estar trajando passeio completo), ficou patente que sequer tiveram a opção de não comparecer. Foram distribuídos, como peças de um xadrez semiótico, em três linhas horizontais, estando Jair Messias no centro da primeira delas atrás do púlpito presidencial com altura para revelar a mesma parte do corpo que restaria revelada caso estivesse sentado em uma mesa de jantar.
Em outros termos, a disposição cenográfica do Presidente da República, de seus Ministros e de alguns mais chegados durante o fatídico pronunciamento, buscou reproduzir, implicitamente, um poderoso símbolo; qual seja, a Última e Santa Ceia de Jesus retratada no mundialmente famoso Cenacolo de Leonardo da Vinci encontrado na Igreja de Santa Maria delle Grazie em Milão.
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Um símbolo sagrado foi recriado na tentativa de inculcar, de gravar no espírito e na mente dos brasileiros menos atentos uma ideia de santidade do Presidente, revestindo-o com a túnica do Messias ocidental. Quer dizer: Jair ocupava o lugar de Jesus e anunciava Sérgio Moro como traidor, o nosso Judas Iscariotes; os demais empapagaiados eram os apóstolos.
Entretanto, a semiótica vai além da matriz visual, estando presente também no desconexo discurso do mandatário que se acha soberano (“Eu não preciso pedir autorização a ninguém” disse o Jair Messias, que, anteriormente, já havia advertido seus Ministros de que “autonomia não significa soberania”, evocando para si o divino direito que o Pai somente dá aos reis e rainhas e que é usurpado pelos imperadores e tiranos – se é que alguma diferença existe entre eles). O simbolismo religioso com o qual se buscou impregnar o evento, seja porque não era conveniente que o ator e seus figurantes estivessem fazendo, de fato, uma refeição, seja pelo intuito de reforçar o papel messiânico desse protagonista, reaparece duas vezes no discurso do Presidente.
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“Hoje pela manhã, por coincidência, tomando café com alguns parlamentares, eu lhes disse: ‘Hoje vocês conhecerão aquela pessoa que tem um compromisso consigo próprio, com seu ego, e não com o Brasil’. […]. Hoje, essa pessoa vai buscar uma maneira de botar uma cunha entre eu e o povo brasileiro.”
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Comparemos esse trecho do discurso de Bolsonaro com duas passagens do Evangelho de Mateus (e optamos pela tradução direta do grego feita por Frederico Lourenço):
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26, 20-21: “Jesus sentou-se à mesa com os doze. E estando eles a comer, disse: ‘Amém vos digo que um de vós me trairá.’”
26, 31: “Então diz-lhes Jesus: ‘Todos vós ficareis escandalizados comigo esta noite, pois ficou escrito: Ferirei o pastor e serão dispersas as ovelhas do rebanho’.”
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Na fala de Bolsonaro, o café da manhã substitui a ceia, os parlamentares tomam lugar dos apóstolos e, da mesma maneira que Jesus anuncia que será traído, Jair anuncia que alguém trairá a pátria. Além disso, coloca-se no papel do pastor e apresenta o povo brasileiro como as ovelhas do rebanho da metáfora de Cristo. Se tais ovelhas se dispersarão com o ferimento do pastor, Jair Messias anuncia a colocação de uma cunha entre ele, o pastor, e o povo brasileiro, as ovelhas.
Mas não é só.
Ainda segundo o mesmo Evangelista, Jesus disse a Pedro (26,34): “‘Amém te digo que, esta noite, antes de o galo cantar, três vezes me terás renegado’.”
Não à toa, disse Jair a Sergio Moro: “como o senhor disse hoje na sua coletiva por três vezes. O senhor disse que tinha uma biografia a zelar”.
Se o galo da despedida de Sócrates narrada por Platão em Fédon reaparece, entre tantas outras significativas e suspeitas semelhanças entre Sócrates (o histórico e o platônico) e Jesus (o bíblico e o da Igreja), na liturgia cristã, o esoterismo bíblico das “três vezes” reaparece como recurso simbólico no pronunciamento de Bolsonaro.
Feitas as comparações, talvez dirá o eventual leitor bolsonarista: “Mas qual o problema?”
Eis que responderei: Ludibriar é sempre um problema. Utilizar-se da semiótica para transformar um discurso político fraco, desconexo e mentiroso em um discurso que encontre acolhida involuntária em virtude dos símbolos e signos evangélicos é colaborar para a perpetuação da praga política que ludibria a grande maioria do povo brasileiro, carente de educação, mas temente a Deus.
Mas devemos dar graças, pois o ocorrido foi o cenáculo de Jair, o falso Messias, que não encontrou a ressurreição de seu crédito e sua popularidade no terceiro dia. Muito pelo contrário.
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