De “classificado” a “tombado”: por que a política de preservação cultural urbana no Brasil não funciona

Salvo exceções, como Rio de Janeiro e Belo Horizonte, pode-se dizer que enquanto as políticas preservacionistas brasileiras não forem mais flexíveis, diversificadas e abrangentes, continuaremos a ver nosso acervo arquitetônico ser diariamente empobrecido por demolições, com a perda da identidade de bairros e cidades.
A mansão da família Matarazzo na Avenida Paulista. Tombada pela adminsitração petista de Luíza Erundina, que pretendia fazer ali um Museu do Trabalho (contra a vontade da família), a disputa se prolongou por anos, e o terreno hoje abriga o shopping Cidade São Paulo.

Por Gabriel Rostey

No Brasil muita confusão se faz com o instrumento do tombamento. Graças ao nome que não é repetido em outros países –porque significa a inclusão no “Livro do Tombo”, uma referência aos registros patrimoniais portugueses, localizados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo- é comum que muita gente imagine que se trata de uma jabuticaba, ou seja, uma daquelas coisas estranhas que só acontecem no Brasil. Entretanto, apesar de nem sequer em Portugal o termo “tombado” ser utilizado com o mesmo sentido que damos aqui -utiliza-se “classificado”, a exemplo do francês-, o instrumento do poder público que visa garantir a preservação de bens móveis e imóveis, ao coloca-los em um regime jurídico especial, é largamente difundido em todo o Ocidente.

Sua origem é iluminista e remete à Revolução Francesa. Em meio a tanto afã revolucionário, que provocou muita instabilidade, vandalismo e destruição, procurou-se encontrar uma forma burocrática de proteger a memória de construções representativas do Antigo Regime. Em 1790, a França instituiu sua Comissão de Monumentos.

Por aqui, a prática foi iniciada apenas em 1937, por um Decreto-Lei durante o Estado Novo, ou seja, no regime ditatorial de Getúlio Vargas. Só para ilustrar nosso atraso, em Portugal a Comissão dos Monumentos Nacionais foi criada em 1882, e em 1910 a Argentina declarou seu primeiro Monumento Histórico Nacional.

Apesar de os tombamentos serem também de bens móveis, e nas últimas décadas ter surgido o conceito de reconhecimento ao patrimônio imaterial, é quando se refere a imóveis urbanos que o instrumento costuma provocar maiores paixões. Afinal, os bens móveis não têm suas funções ou potencialidades alteradas pelo tombamento, e a declaração de patrimônio imaterial é basicamente difusa e simbólica. É nas edificações ou áreas tombadas que uma resolução (ou a ausência de) traz consequências práticas imediatas e pode significar a demolição de um edifício significativo e querido, a erradicação de um estilo arquitetônico em uma localidade, a impossibilidade de se empreender algo transformador em uma área específica ou, ainda, milhões e milhões de reais para o proprietário em virtude do que se pode ou não construir em um terreno.

O assunto não é simples pois, de fato, pode alterar radicalmente os planos que um indivíduo tem para seu patrimônio. Mas não é de modo algum um assunto menor para a coletividade. Não se pode negar o papel que edifícios, parques, paisagens, movimentos arquitetônicos ou demais elementos podem ter para o “sentido de pertencimento” de um povo e para a imagem de um local. O quão diferente seria hoje, por exemplo, a identidade de Barcelona se tivesse restado apenas um par de edifícios de Gaudí e do Modernismo Catalão?

Em essência, políticas de preservação são em prol da sociedade e sua memória. Entretanto, no Brasil é comum que sejam vistas por muita gente como nocivas. Isso se dá quando as consequências de um “tombamento” acabam não trazendo bons frutos. Se um casarão tombado está degradado e permanece assim indefinidamente, seus vizinhos associarão “tombamento” a degradação. Se um proprietário não tem facilidades para recuperar ou manter sua construção -e esta não pode mais ser alterada ou demolida- ele associará “tombamento” a desvalorização. Isso se dá não por “problemas culturais do nosso povo”, mas sim por erros na política de preservação. A partir do momento em que os procedimentos melhorarem, a reação da população será outra.

Políticas de preservação deveriam ser desejadas, assim como deveriam trazer consequências positivas para todos os envolvidos, em vez de apenas determinar, de modo autoritário, que uma determinada construção continue como está. Sim, é óbvio ululante, mas no Brasil isso não costuma acontecer. E não basta apenas declarar a importância de um bem: em 1819 os franceses já dispunham de dotação orçamentária para salvaguardar as obras classificadas como “monumentos”. A experiência internacional revela inúmeras práticas para compensar as limitações advindas do reconhecimento de valor público de um imóvel, como fundos exclusivos de empréstimos e subsídios, ou isenção de impostos para bens tombados. Somente nos últimos tempos algumas dessas medidas passaram a ser previstas no Brasil, mas além de problemas de aplicação, ainda não são difundidas país afora como pré-requisitos de uma política de preservação eficaz.

Mas, como sói acontecer no Brasil, fazemos uma tenebrosa combinação: além de não darmos estímulos suficientes para que o tombamento traga bônus aos proprietários, ele costuma ser muito rígido. Aqui o conceito de “fachadismo” (do francês façadisme– que é a quase reconstrução da parte interna e manutenção apenas da fachada) não é disseminado como em outros lugares; também exagera-se com a frequência, tamanho e rigidez da “área envoltória”-perímetro definido em torno de uma construção tombada, no qual todos os imóveis passam a necessitar de aprovação dos órgãos do patrimônio para qualquer modificação.

Ou seja, somos muito severos nas exigências e pouco efetivos na real promoção do patrimônio cultural. Resultado: os próprios profissionais da área atuam contra o tombamento. Não raro, professam coisas como “tombamento não é solução”. Por consequência, tomba-se pouco no Brasil. Para ilustrar: enquanto São Paulo tem cerca de 3.600 imóveis tombados, a cidade de Nova York tem mais de 36 mil “landmarks”, ou seja, dez vezes mais. Sociedades com mentalidade muito mais capitalista do que a nossa, como a americana e a inglesa, mantém uma enorme quantidade de prédios antigos não por filantropia, mas sim por regulação estatal. Tampouco Paris e Lisboa são homogêneas daquela forma porque nunca ocorreu a ninguém construir algo maior ou mais chamativo no local de um daqueles prédios típicos.

Também é frequente que nossos órgãos de patrimônio não protejam construções isoladas, pois “exigem” conjuntos do mesmo estilo. Vejo isso como um elitismo inconsequente, pois condena ao desaparecimento determinados tipos de construção que já se tornaram tão raros que não se encontram mais nem sequer em conjuntos. Então, como não estão mais em quantidade para formar um conjunto, é como se perdessem a importância, quando é justamente o contrário: passam a ser mais especiais em virtude da raridade.

É evidente que o tombamento sozinho não resolve tudo, mas a proteção é o ponto de partida. Em cidades como as nossas, que tendem à verticalização, não estimulam a educação patrimonial e não realizam um inventário geral (levantamento completo de todos os imóveis do município) para poderem proteger a priori as construções de interesse, a “classificação” é necessária. É ela que permite que, no futuro, melhores práticas possam resgatar o esplendor e melhor uso para uma construção protegida. É preferível a mais degradada construção de interesse ainda em pé (viva), do que demolida (morta), pois o que a separa de uma boa situação arquitetônica é tão somente uma restauração. Para constatar isso, basta checar a degradadíssima situação do Pelourinho nos anos 1980, antes do processo de renovação urbana (um sucesso predial e fracasso social) empreendido após a área ser declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

Com boas exceções, como Rio de Janeiro e Belo Horizonte, pode-se dizer que enquanto as políticas preservacionistas brasileiras não forem mais flexíveis, diversificadas e abrangentes (a carioca APAC –Área de Proteção do Ambiente Cultural- é paradigmática, e protege cerca de 30 mil imóveis no município do Rio de Janeiro, entre bens tombados, preservados e tutelados), continuaremos a ver nosso acervo arquitetônico ser diariamente empobrecido por demolições, com a perda da identidade de bairros e cidades.

Brasil afora, o padrão é que as notificações de tombamento de um bem sejam enviadas aos proprietários com um tom que mais sugere uma punição, com uma série de obrigações a cumprir. É uma representação do autoritarismo presente no Brasil varguista da concepção do nosso “tombamento”. O contraste com a “classificação” -termo que denota uma espécie de promoção ou inclusão a algo seleto- ilustra perfeitamente o quanto temos a evoluir neste campo.

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