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A secularização como problema político: a perspectiva liberal
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por Sérgio da Mata
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De meu primeiro semestre na universidade, em 1986, uma aula de nosso professor de ciência política se mantém viva na memória. Bem-humorado, ele fez entender à turma que não é de bom tom ler autores liberais, mas que em algumas ocasiões em isso se mostra rigorosamente inevitável. Evitável, dizia ele, era que delatássemos pelos corredores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG o nome do docente que recomendara a leitura daquilo. Passados trinta e cinco anos, creio que já não há problema em revelar a identidade do responsável: o saudoso professor Carlos Baesse de Souza. A propósito, “aquilo” era um ensaio de José Guilherme Merquior sobre democracia.
Em que pesem todas as enormes diferenças, os liberais alemães parecem ter enfrentado dificuldades semelhantes na segunda metade do século XX. Ilhas perdidas num vasto oceano de pensadores radicais — à esquerda e à direita —, eles não pareciam contradizer a percepção generalizada de que duas guerras mundiais, totalitarismo e holocausto haviam feito do representante do liberalismo político alemão o mesmo de seu análogo brasileiro — uma avis rara. Sabemos hoje, graças aos importantes estudos de Jens Hacke (2018, 2021), que as coisas transcorreram de forma diferente na Alemanha.
Escrito no mesmo espírito, este ensaio pretende dar uma ideia da riqueza de uma corrente ainda pouco conhecida do pensamento liberal do pós-guerra. Para tanto, me limitarei à obra de dois autores que, ouso dizer, Baesse e Merquior haveriam de admirar. O que não quer dizer que se deva alimentar esperanças de que o liberalismo político, especialmente em sua versão alemã, possa via a “popularizar-se” em nosso país. A lei de ferro que parece orientar o mercado latino-americano de ideias, em tudo desfavorável a tudo que não se revista de certo radicalismo (meramente retórico ou real, à direita ou à esquerda: pouco importa), sempre há de tornar as coisas extraordinariamente difíceis para os que se recusam a pensar em termos binários. Nada indica que essa situação há de mudar tão cedo. Recomenda-se, portanto, um mínimo de modéstia. A tarefa residiria, antes, em contribuir para que a dimensão política seja devidamente reincorporada ao horizonte intelectual dos liberais brasileiros. De que maneira tal esforço não deve desconsiderar a íntima conexão entre o político e o religioso, é o que se tentará demonstrar a seguir.
Hermann Lübbe (1926-) e Ernst-Wolfgang Böckenförde (1930-2019) são dois dos mais proeminentes membros do Collegium philosophicum, grupo cuja história e importância apresentamos brevemente em outra oportunidade (Mata 2021). Da extensa obra publicada por um e outro, interessa-nos um tema em especial, tema, aliás, raramente discutido por autores liberais: o complexo problema das relações entre religião, secularidade e legitimação dos Estados modernos.
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É trivial dizer que o liberalismo se articula, desde sua gênese, aos ideais de liberdade política e econômica. Menos trivial é a pergunta sobre como o liberalismo — e o liberalismo político em especial — se relaciona com os princípios de liberdade religiosa e de separação entre Estado e Igreja. Trata-se, pois, de refletir sobre as seguintes questões: como o Estado moderno, liberal, se relaciona com a religião, e, em particular, com a secularização? Em que medida a secularização pode ser vista como um problema político?
A diversidade de pontos de vista por meio dos quais se pode abordar tais questões é patente. A secularização pode examinada como um problema de semântica histórica (a história do conceito de “secularização”), como um problema político-jurídico, histórico-filosófico e, last but not least, sociológico. Em suas publicações a respeito, Lübbe e Böckenförde cumprem a difícil tarefa de articular esse amplo arco de possibilidades. Daí sua visão criativa e, a nosso ver, analiticamente poderosa, sobre temas que, como demonstra a mais ligeira passagem de olhos pelo noticiário, se mantém rigorosamente atuais no Brasil de hoje.
Foi na primeira metade da década de 1960 que Lübbe e Böckenförde passaram a se debruçar sobre a complexa relação entre religião e modernidade política. Com efeito, é sabido que os anos 1960-70 podem ser considerados a época áurea dos estudos sobre secularização. Bastante difundida entre sociólogos e inclusive entre teólogos era a tese de que secularização significaria um declínio inexorável da religião, e que o ordenamento político nas sociedades industriais teria se emancipado completamente seja das ideias, seja das instituições religiosas. O espaço social do religioso se restringiria tendencialmente, na melhor das hipóteses, à vida privada. Onde quer que a realidade não se apresentasse exatamente dessa maneira, é porque ali o processo de modernização não estaria “consumado”. Assim rezava a teoria, ou as teorias, da secularização em sua vertente sociológica e histórico-filosófica: modernidade e religião seriam antípodas. A fim de que uma possa se impor, a outra deve retroceder. Para os saudosos de um domínio da religião sobre a vida, a modernidade é sinônimo do materialismo mais tacanho, e a secularização um mal a ser evitado ou revertido; ao passo que para os apóstolos da laicidade a secularização é algo — como chegou a escrever um dos mais célebres entre eles — de que não deveríamos abrir mão “nem terminológica, nem existencialmente” (Pierucci 1998, p. 65). Mas o que é, afinal, a secularização?
Em seu famoso livro sobre a história do conceito, Lübbe desvela a trajetória do termo desde suas origens no século XVII, passando por sua politização entre os jovens hegelianos no século XIX, por sua neutralização na sociologia de Tönnies e Weber, e, enfim, por sua intensa mobilização e politização nos meios eclesiásticos do pós-guerra. Para Lübbe, a transmutação de uma categoria descritiva em instrumento de luta política (como aconteceu, entre nós, com o conceito de “golpe de Estado”) é o que metamorfoseia o conceito de secularização num ideenpolitischer Begriff, num conceito político — ou antes, politizado. Em situações assim “o conceito torna-se palavra de ordem” (Lübbe 2003, p. 20). Ele deixa de ser instrumento heurístico para se tornar armamento retórico pesado. Ora, tal operação foi levada a cabo por setores das Igrejas cristãs para os quais a causa última de todos os males da sociedade ocidental, do Renascimento aos crimes do totalitarismo, adviriam da secularização (Lübbe 2003, p. 116-117). Nesses meios, a secularização se torna o “conceito central de uma teoria da decadência histórica” (Lübbe 2003, p. 87). É no mínimo curioso observar como o meio acadêmico produziu análogos dessa teoria confessional da religião, por exemplo com Marcel Gauchet. Num salto especulativo vertiginoso, Gauchet sugeriu que o religioso só teria existido em sua plenitude nas primeiras sociedades humanas, antes do advento do poder político e do Estado (Gauchet 1985). À gradativa institucionalização do político (sobretudo em sua configuração moderna) corresponderia, necessariamente, um progressivo esvaecimento da religião.
Voltemos a Lübbe. Não se pode negar que a história política do conceito de secularização contenha uma dimensão pragmática própria. Podemos resumi-la nos seguintes termos: a defesa da secularização é também uma defesa do Estado liberal-democrático. Por outro lado, e como se verá adiante, essa posição de Lübbe, a posição de um liberal “depois do Iluminismo”, não se confunde com as versões militantes, laicistas, de secularismo. Para além da depuração semântica proporcionada pela história conceitual, a tarefa intelectual decisiva, aqui, é a de identificar o tipo de secularização de que não podemos prescindir, ou antes, a sua extensão ótima nos marcos do sistema político aberto e pluralista que nos cabe promover e defender.
A posição de Lübbe fica mais clara numa resenha publicada dois anos antes de concluir sua história do conceito. Na ocasião, ele afirma: “A democracia é secular em sua substância, e uma vontade política que queira mudar isso a ameaça […] em sua substância mesma” (Lübbe 1961, p. 349-350). Guiar-se seja por uma teologia política conservadora, seja por uma teologia política revolucionária, só é possível quando se ignora “o conteúdo daquele ‘liberalismo’ que não pode ser ultrapassado sem que com isso o próprio Estado democrático seja ultrapassado” (Lübbe 1961, p. 350). Todo aquele que, guiado por um “ressentimento de perdedor”, insiste em tratar “incansavelmente como herético o moderno Estado democrático, […] representa em sua pessoa a debilidade da relação que a consciência política [coletiva], uma vez mais, mantém com nosso Estado democrático” (Lübbe 1961, p. 351).
Em suma, a forma como concebemos a secularização está longe de ser apenas um problema de semântica histórica, de convicção religiosa individual ou mesmo de ausência dessa convicção. A questão está estreitamente relacionada à legitimidade mesma de que desfruta o Estado moderno.
Ora, tal hipótese não estaria na contramão da lógica dominante na modernidade ocidental, segundo a qual o político gradativamente se liberta do religioso? Para compreender a questão será preciso examinar um influente ensaio de Böckenförde de 1967, A formação do Estado enquanto processo de secularização. Em suas conclusões, o autor (que foi juiz da Suprema Corte alemã entre 1983 e 1996) apresenta uma proposição cuja influência na teoria política e nos meios jurídicos de seu país se manteve praticamente inabalada desde então: “o Estado liberal, secular, vive de premissas que ele próprio não é capaz de garantir” (Böckenförde 2007, p. 71).
Böckenförde está menos interessado na história do conceito que da coisa. E coisas, como se sabe, são em geral mais antigas que as palavras que inventamos para denotá-las. O autor recua não à Paz de Vestfália em 1648, mas à disputa das investiduras, em pleno século XI. No medievo predominava a noção de orbis christianus, em que inexistia uma clara distinção entre as atribuições e competências da autoridade religiosa e da autoridade civil. Somente no calor da disputa entre o imperador Henrique IV e o papa Gregório VII que se estabeleceu uma oposição entre as esferas do “mundano” e do “espiritual”. Ao denegar ao Imperador a possibilidade de nomear bispos, o papa produz uma inflexão sem precedentes: reclamando para si o domínio exclusivo da esfera religiosa, Gregório VII “expulsa” o poder civil para o âmbito do estritamente “mundano”. O poder político é destituído então de sua conotação sagrada e passa a dispor (ao menos teoricamente) de uma jurisdição própria. Ou seja, os primórdios da “secularização” da autoridade civil e a quebra de unidade simbólica do orbis christianus são processos originalmente deflagrados pela autoridade eclesiástica, e não contra ela. Para Böckenförde (2007, p. 50), “a querela das investiduras constitui a política enquanto esfera própria”. A despeito de todas as idas e vindas até o século XVII, fica claro que a separação entre mundano e espiritual fornece as bases nas quais o Estado moderno viria a se constituir, e que tal processo pode ser efetivamente descrito como uma “secularização da política” (Böckenförde 2007, p. 51). Daí que a formação dos primeiros Estados-nação se confunda, em grande parte, com a luta pela afirmação da soberania do poder civil ante as pretensões imperiais dos pontífices romanos.
O próximo momento decisivo é o das guerras de religião que se espalharam pela Europa no rescaldo da Reforma. Esses conflitos sangrentos, e que alguém chamou de “guerras civis hermenêuticas”, fazem com que a questão religiosa assuma um claro significado político. Afinal, cada uma das confissões pretendia que a tarefa do Estado fosse reprimir e, se possível, eliminar suas concorrentes. Dá-se então o segundo grande passo rumo à separação entre as esferas civil e eclesiástica, e que levou à afirmação definitiva da primeira sobre a segunda. O Estado só é capaz de pacificar a sociedade quando se emancipa dos interesses religiosos particulares. A autoridade real tem por tarefa precípua estabelecer a concórdia, não a “verdade”. E ainda que o instituto da religião “oficial” tenha sido uma criação daquele período (cujus regio, eius religio), após o Edito de Nantes, em 1598, o que predomina é a ideia de que dos súditos se espera lealdade e conformidade às leis, quaisquer que fossem suas crenças. Com isso, se estabelece como finalidade última do Estado “os objetivos puramente seculares, orientados para a imanência e independentes da religião” (Böckenförde 2007, p. 62).
Essa longa história, como sabemos, culmina na Revolução Francesa, quando se completa, enfim, a imanentização do político. A “base do Estado” é agora o ser humano por si e em si mesmo. Com a consubstanciação da liberdade de religião enquanto direito objetivo, deixa de fazer sentido a ideia de que uma determinada religião possa gozar de privilégios especiais. Chega à sua plenitude um processo que, para Böckenförde, havia se iniciado muito antes da invenção do conceito de secularização.
Eis porque, para o autor, a extensão da secularização do Estado pode ser “medida” pela efetividade com que se implementa e preserva o direito à liberdade religiosa. Uma vez superado esse limiar, todas as tentativas de se restabelecer a situação anterior, pré-moderna, estão condenadas ao fracasso. A história do Estado secular moderno não pode ser desvinculada da separação Igreja-Estado e da garantia de efetiva liberdade religiosa.
Eis a motivação última do ensaio de Böckenförde, e que, a rigor, não difere da de Lübbe: tão logo assume sua configuração plena, de que fontes — para além do que Weber bem caracterizou como o “monopólio do uso legítimo da violência” — o Estado moderno extrai as forças capazes de amalgamar e manter unido o corpo de cidadãos? Onde buscar tais energias, agora que os símbolos e ritos religiosos restariam afastados da esfera pública? No século XIX e em parte do XX o nacionalismo, de fato, chegou a desempenhar este papel. Mas a época de ouro deste fenômeno já se foi. Como mostra o exemplo do atual governo brasileiro, a tentativa ultraconservadora de reavivar a mística nacionalista se apresenta, quando muito, como uma pálida e anacrônica projeção do que chegou a ser outrora.
O problema diagnosticado por Böckenförde apresenta uma dupla dimensão. Por um lado, constata ele, não há possibilidade de retornarmos à situação vigente no Antigo Regime sem que, com isso, se coloque abaixo essa extraordinária conquista moderna: o Estado concebido como o ordenamento da liberdade. Por outro lado, segue irresolvida a questão expressa em sua famosa fórmula: “o Estado liberal, secular, vive de premissas que ele próprio não é capaz de garantir”. Eleições legitimam governantes, mas como legitimar o Estado? Em sociedades pluralistas, como construir consensos em torno do modelo de Estado que queremos sem, com isso, colocar em risco o próprio pluralismo? Böckenförde duvida, inclusive, que isso se possa obter por meio do “Estado de bem-estar”. Que Estado estará em condições de satisfazer continuamente as crescentes expectativas eudemonistas numa sociedade de massas? Caso se pretenda de fato trilhar esse caminho, “em que um tal Estado pode[rá] se apoiar numa hora de crise?” (Böckenförde 2007, p. 72; grifo nosso). Com a súbita queda do bem-estar material, a legitimidade mesma do Estado restaria gravemente comprometida.
Böckenförde não teve a pretensão de oferecer uma solução para esse dilema. Na condição de teórico e historiador do Direito, mas também na de católico liberal engajado, sua intenção foi antes a de tentar sensibilizar sua Igreja para a necessidade de reverter uma já multissecular resistência ao Estado secular. Vale dizer: parte considerável das energias desestabilizadoras do edifício institucional que desde 1949 ancora a democracia alemã advinham justamente dos que ainda insistiam na utopia retrospectiva do orbis christianus. Ao identificar na secularização o “mal” moderno por excelência e, consequentemente, colocar em questão o estatuto secular do ordenamento político-jurídico da República Federal, a intelectualidade católica alemã minava os fundamentos culturais sobre os quais assenta o Estado enquanto “ordenamento da liberdade”.
Numa formulação ainda mais explícita, pode-se dizer que para Lübbe e Böckenförde o Estado secular não prescinde da religião, tanto quanto a vida religiosa, em sua diversidade de formas, só pode ser livremente exercida caso as premissas do Estado secular sejam integralmente preservadas. A religião que se recusa a reconhecer o Estado secular moderno — em última análise — coloca a si mesma em risco.
Deixemos claro o que se pretende dizer com esse paradoxal “não prescindir da religião”. Na década de 1980, Lübbe se volta para um tema que ganhara relevância desde a publicação do famoso artigo de Robert Bellah sobre a religião civil na América (Bellah 1968). Após comparar os casos norte-americano, francês e alemão, Lübbe propõe uma original definição do fenômeno. Pode-se falar em religião civil quando “elementos de uma cultura religiosa estão integrados no sistema político”, e de uma forma tal que esses elementos vinculam o cidadão à sua comunidade política tanto como homo politicus quanto como homo religiosus (Lübbe 1983, p. 80, p. 98). Quanto ao conteúdo “doutrinário” da religião civil, Bellah já havia mostrado que ele se reduz a um mínimo: menções isoladas a “Deus” nos discursos dos chefes de Estado e no arcabouço jurídico, um diminuto conjunto de lugares e símbolos sagrados, o emprego de fórmulas estereotipadas como In God we trust ou Deus seja louvado.
Resta saber se o surgimento da religião civil, tendo ocorrido concomitantemente à afirmação do Estado secular moderno, não seria sua negação. Para Lübbe, “não obstante seu lugar privilegiado nos preâmbulos”, a religião civil “tem uma posição marginal no sistema jurídico” (Lübbe 1983, p. 88). Ela não coloca em risco o caráter secular do Estado, uma vez que, em condições normais, se apresenta de forma difusa e não como um real concorrente no mercado de bens religiosos (Lübbe 1983, p. 89). A bem da verdade, trata-se menos de uma religião do que da reverberação do “elemento religioso da cultura política dominante” (Lübbe 1983, p. 94), reverberação que mostra quão apressada é a tese de Gauchet (1985, p. 286) sobre a “dissolução democrática da alteridade do fundamento” das construções sociais da realidade em contextos modernos.
O aparente paradoxo representado pela emergência da religião civil deve ser entendido da seguinte maneira: o que ela revela é o fato de que o Estado liberal e secular não dispõe de “autarquia legitimante” (Lübbe 1983, p. 100). Devemos compreendê-la, portanto, como uma daquelas “premissas” a que se refere Böckenförde em seu teorema. Em outras palavras, antes de ser realidade político-jurídica com um estatuto próprio, o Estado secular e liberal é um artefato cultural (Böckenförde 2007, p. 30-31). É a cultura moderna, na acepção ampla do termo, que o “cria”, ao passo que ele não é capaz de criar uma cultura da qual possa se retroalimentar. A religião civil é um desses reservatórios suplementares de sentido que proporcionam ao ordenamento político-jurídico a sua força interna de coesão, garantindo-lhe um mínimo de reconhecimento social e estabilidade. Eis porque a religião civil não compromete a natureza do Estado secular ou o princípio da liberdade religiosa. De fato, ao oferecer ao Estado uma base de legitimidade suplementar, ela contribui para salvaguardar a liberdade e a diversidade religiosa.
Em publicações posteriores, Lübbe e Böckenförde continuaram explorando a complexa relação existente entre cultura religiosa e os problemas de legitimação do Estado moderno. Nada ali que sugira simpatia por um laicismo militante, à la Pierucci, e cujas feições pré-iluministas ambos fizeram questão de sublinhar (Lübbe 1983, p. 82; Böckenförde 2007, p. 28-29). Suas preocupações se voltam então para temas ligados ao que os alemães chamam de “direito eclesiástico público” (Staatskirchenrecht) e, em especial, para dois desafios recentes. O primeiro deles é a crescente dificuldade de produção de consensos estáveis em sociedades cada vez mais plurais, nas quais as Igrejas históricas passam por uma perda de fiéis sem precedentes, ao passo que comunidades religiosas em franco crescimento têm notórias dificuldades em admitir a separação entre poder civil e religioso. O segundo desafio é o da repolitização da religião, fenômeno ontem representado pela teologia da revolução europeia e pela teologia da libertação latino-americana, e hoje pela ameaça do fundamentalismo em suas diversas modalidades. O que permite identificar a religião repolitizada? Lübbe (1983, p. 102) recorre aqui à sagaz observação de Arnold Gehlen (1971, p. 96): “volta-se a levar a religião a sério” quando há “facções religiosamente condicionadas e dispostas à luta”.
As contribuições de Lübbe e Böckenförde nos ajudam a recolocar com clareza e o devido senso de urgência — mas sem alarmismo — o problema da religião no âmbito de uma teoria liberal do Estado moderno. Em que pesem temores às vezes exagerados e pouco informados, a presença revigorada da religião no espaço público brasileiro não parece ter chegado ao ponto de colocar a secularidade do Estado em risco. Num campo religioso plural como é o nosso, nenhuma confissão dispõe de força suficiente para colocar o aparato estatal a serviço de seus interesses. A situação, porém, dá margem à preocupação e requer vigília. Eis a questão: se a quase totalidade dos ataques recentes à nossa democracia contaram com o silêncio cúmplice dos “novos” protagonistas no mercado de bens religiosos, não é menos verdade que o reforço dos pressupostos culturais do Estado secular e liberal é uma tarefa para a qual estes mesmos atores podem e devem ser convencidos a dar sua contribuição.
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Referências
Bellah, Robert N. Civil Religion in America. In: McLOUGHLIN, W. G.; BELLAH, R. N. (eds.) Religion in America. Boston: Beacon Press, 1968.
Böckenförde, Ernst-Wolfgang. Der säkularisierte Staat. Sein Charakter, seine Rechtfertigung und seine Probleme im 21. Jahrhundert. München: Carl Friedrich von Siemens Stiftung, 2007.
Gauchet, Marcel. Le désenchantement du monde. Une histoire politique de la religion. Paris: Gallimard, 1985.
Gehlen, Arnold. Religion und Umweltstabilisierung. In: SCHATZ, Oskar (Hrsg.) Hat die Religion Zukunft? Graz: Styria, 1971.
Hacke, Jens. Existenzkrise der Demokratie. Zur politischen Theorie des Liberalismus in der Zwischenkriegszeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2018.
Hacke, Jens. Liberale Demokratie in schwierigen Zeiten. Weimar und die Gegenwart. Hamburg: Europäische Verlagsanstalt, 2021.
Lübbe, Hermann. Verteidigung der Freiheit als Kampf gegen den Liberalismus. Zeitschrift für Politik, v. 8, n. 4, p. 347-352, 1961.
Lübbe, Hermann. Estado y religión civil. Un aspecto de la legitimidad política. In: _____. Filosofía práctica y teoría de la historia. Barcelona: Alfa, 1983.
Lübbe, Hermann. Säkularisierung. Geschichte eines ideenpolitischen Begriffs. Freiburg: Alber, 2003.
Mata, Sérgio da. O Collegium philosophicum e o destino da democracia liberal. Estado da Arte, 09/01/2021.
Pierucci, Antonio Flávio. Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 37, p. 43-73.
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