O liberalismo esclarecido de Marianne Weber

No dossiê "O Conceito de Liberalismo", Giulle Vieira passa da esposa de Max, o renomado sociólogo alemão, para a destacada ativista pelos direitos das mulheres e socióloga do direito, Marianne Weber.

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O liberalismo esclarecido de Marianne Weber

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por Giulle Vieira

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Quando se investem esforços na recuperação do legado de intelectuais desconsiderados pelo cânone, há que se tirar tempo da discussão para as devidas apresentações. Nesse caso, peço licença para fazê-lo de maneira bastante breve e ao longo de meu texto, apoiando-me, é verdade, na curiosidade intelectual e iniciativa dos leitores. Passarei direto da esposa de Max, o renomado sociólogo alemão, para a destacada ativista pelos direitos das mulheres e socióloga do direito, Marianne Weber (1870-1954).

Primeiro a política como vocação. O que Marianne entendia por liberdade e racionalidade se encontra registrado em suas memórias sobre o tempo de atuação no Partido Democrata Alemão (DDP).

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“Nosso colorido grupo — uniforme apenas na faixa etária — era composto por pessoas maduras. Algumas delas eram espirituosas e ávidas, mas sem aquele fogo que arde em alguns jovens socialistas. […] Os democratas em particular se mostravam moderados no ajuizamento sobre as coisas à medida que buscavam considerar os diversos ângulos. No final, [essa moderação] mostrava-se útil nos tempos difíceis, quando basta um elemento subversivo para desencadear infortúnio ainda maior para um povo [já] submetido à arbitrariedade hostil. Apesar de algumas tensões — nitidamente tive a impressão de fazer parte de um grupo de pessoas extremamente decentes e bem-intencionadas, não comprometidas fosse com interesses unilaterais de cunho econômico e de classe, fosse com uma orientação denominacional ou ideológica. Gente livre, com visão aberta, que buscava pesar uma coisa tão bem quanto a outra e que, me pareceu, empenhar-se com particular ênfase pelo bem de todos, pelos interesses justamente equilibrados.” (Weber 1948, p. 92).

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“Política da moderação” é o que Peter Berger e Anton Zijderveld (2012) diriam, pois se trata de atitude que obedece à autoridade racional legal em sua capacidade de exigir respeito aos limites das distintas esferas de livre ação dos indivíduos em interação. A mesma postura adotada pela ativista para quem, weberianamente, tratava-se da ética da liberdade como espírito do feminismo.

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“Na Alemanha, dentro do movimento feminino de caráter não confessional, predomina a ampla unidade das visões em torno da ideia de que a mulher deve ser sim considerada, tanto dentro quanto fora do casamento, como um ser destinado à autonomia [Selbstverantwortlichkeit] no que se refere ao pensamento e à ação; além de que, por isso mesmo, em lugar da submissão feminina como fundamento do casamento é a ideia de plena parceria [Kameradschaftlichkeit] entre os cônjuges que fora elevada à condição de princípio irrenunciável para organização dessa relação” (Weber 1919, p. 80).

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Identifica-se nas palavras da autora a opção por um mínimo ético: o direito ao convívio organizado conforme o valor da coexistência das liberdades. Apesar do risco de cansar o leitor, uma citação mais extensa vale a pena para esclarecer o que está em jogo aqui.

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“As exigências derivadas logo após [o surgimento de] a ideia de liberdade de consciência no que tange à relação do indivíduo com o Estado, com o grupo social, com seus semelhantes, encontraram sua formulação mais bem acabada na doutrina da liberdade ética do Idealismo Alemão segundo Kant: enquanto portador da razão, o ser humano é destinado a determinar a si mesmo conforme a lei moral, ou seja, a agir, não segundo o arbítrio de suas inclinações, mas segundo seu juízo. Enquanto portador dessa capacidade para a ‘autonomia’, ele detém uma dignidade específica, que o distingue de todos os outros seres: ele tem como reivindicar ser fim em si mesmo. A isso se segue o princípio fundamental válido para instituição de todas as [formas de] interação humana: (…) que ninguém deve tomar o outro como mero meio para os próprios objetivos. De onde se conclui que para a mulher também se coloca a tarefa moral de desenvolvimento da própria personalidade ética, autônoma. Para ela também é antiético se dobrar a uma força externa [quando] ao arrepio do próprio entendimento. Por isso ela também não deve ser tomada como mero meio para os objetivos do homem. Desses pressupostos básicos pode-se derivar o princípio positivo de instituição do casamento, onde em lugar de submissão da esposa, passa a valer sua fundação na parceria dos cônjuges” (Weber 1919, p. 146).

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Note que o conceito “casamento de parceria” se orienta por uma noção bastante específica de liberdade que deveria, segundo Marianne, dirigir a lei moderna de forma a garantir, sobretudo à esposa e mãe, o que todo adulto precisa para se sentir livre: proteção de sua esfera de liberdade contra a tendência expansiva das arbitrariedades. E antes que o conflito entre legitimidade tradicional e legitimidade racional legal venha à baila, cabe esclarecer que para ela não se trata de intervenção do Estado no domus. Pelo contrário. Para nossa autora é, sobretudo, a interferência objetivamente injustificada do Estado na esfera necessária de liberdade da pessoa que preocupa, e sempre deve preocupar (cf. Weber 1919, p. 153). Daí sua ordem de prioridades: o que ela julgava ser o mais urgente para o Movimento Feminino era lutar pela reforma do direito em função da liberdade da pessoa também no feminino. Por quê?

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“[Porque] na ausência de algum tipo de proteção externa, não existe direito, apenas questão de poder – poder e direito parecem tão mais idênticos à medida que o senhor pode exercer seu domínio sem qualquer [expectativa de] contenção do próprio interesse” (Weber 1907, p. 17).

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Na dimensão histórica de sua análise do Esposa e Mãe no Desenvolvimento do Direito, o nome de seu principal livro, publicado em 1907, Marianne pautou, como era esperado, o conjunto de normas e regras que autoriza e garante a total submissão da mulher, o violento constrangimento de “seu agir no mundo” conforme “o julgamento do patriarca e da multidão” (Weber 1907, p. 300). Concluiu que “não existe nenhum direito matrimonial no mundo que tenha desqualificado com firmeza de maneira a tornar moralmente superável e inofensiva a forma patriarcal de instituição do compartilhamento da vida” (Weber 1907, p. 500). Mas na sequência, sua perspectiva abre nossos olhos para o que o horror à submissão normalmente nos impede de ver: os variados exemplos de figuração do direito enquanto meio para garantia e expansão da liberdade, isso ao longo de seu desenvolvimento, desde as organizações tribais, passando pelas grandes codificações até o Código Civil Alemão de 1900. Olhos abertos para o peso desse instrumento cultural, Marianne tece considerações sociológicas sobre a importância da vigília e do trabalho contínuo de reforma da lei para cumprimento de nobre função na defesa da mulher contra o interesse em sua objetificação.

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Marianne Weber

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O “imperativo institucional” (cf. Zijderveld 2000) de Marianne não agradou. Na linha de frente da Liga Feminina Alemã entre 1919 e 1923, se viu lidando a um só tempo com quatro pontos de vista sobre como deveria ser travada a luta para emancipação do feminino. Em cada um dos quatro postos, um estandarte diferente, desenhado a partir de uma visão particular sobre a liberdade enquanto baliza para administração da justiça (cf. Weber 1907 p. 403). Cada estandarte disputando o posto de bandeira sob a qual deveria marchar o movimento como um todo. Quatro propostas de reforma: a reforma moral, a reforma legal, a socialista e a sexual. O que dividiu a Liga entre libertários e conservadores. A ala dos libertários, por seu turno, subdividida em duas falanges: de um lado os socialistas e seu interesse na libertação da sociedade como um todo; de outro, os adeptos da “nova ética sexual” e sua luta pelo reconhecimento de liberdades específicas como forma de aumentar o nível de liberdade geral de cada pessoa, como diria Will Kymlicka (2006). O que os dois tipos de libertários tinham em comum é o anti-institucionalismo justificado na adulteração das bases da legitimidade das instituições jurídicas no que se refere à sua função de proteção da dignidade humana. Posição reforçada pela crença de que a identidade de interesses predomina na sustentação da interação social.

Mas e no front dos conservadores? Bom, ali também a divisão era clara: de um lado, os interessados no uso da forma legal de dominação com vistas a perpetuar programas tradicionalistas de ação; de outro, os legalistas e sua tendência a subsumir legitimidade da lei na mera legalidade. O que os dois tipos de conservadores tinham em comum era a intenção de se apropriar do direito enquanto meio para legitimação de ortodoxias com objetivos nada razoáveis. Digamos que os extremos se retroalimentavam em sua reatividade. Em todo caso, o moralismo político foi identificado como efeito colateral grave aos olhos de quem assumiu como substrato antropológico-filosófico de sua sociologia a ideia iluminista de garantia da coexistência das liberdades a partir de justas instituições jurídicas. Uma ideia que, segundo Marianne, teve “sua voz abafada ora através do relativismo naturalista e histórico, ora através do materialismo também histórico” (Weber 1907, p. 403).

Essas palavras atiçam mais a curiosidade que o entendimento se não damos a devida atenção ao caráter esclarecido do liberalismo de Marianne. E como devemos o adjetivo ao jurista alemão Martin Kriele (1983, p. 9), ouçamos o especialista.

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“A ideia esclarecida do progresso — diz Kriele — não visa dar um salto para o reino da liberdade, mas à encarnação da justiça na realidade. Libertação significa [por isso] ou o restabelecimento e reconsideração do direito ou a substituição da injustiça pela criação de um direito mais justo. (…) Para o iluminismo trata-se da forma que devem apresentar as instituições para servirem à justiça. [Porque] instituições permitem competências de decisão. A exigência de justiça, portanto apela, por exemplo, ao pai de família, ao professor, juiz, funcionário, legislador, aos órgãos administrativos etc., a quem cabe tomar decisões que obrigam os outros. Sendo assim, tanto a regra que serve de base à decisão, quanto a sua aplicação têm de ser justas. A luta pela libertação política encontra [pois] sua expressão em regras do direito: nas regras do Direito Internacional, nos Direitos Humanos, nas demais regras do direito material e processual, como também nas instituições constitucionais e nas organizações públicas e judiciárias, as quais são a condição para que o direito justo possa ser criado e aplicado” (Kriele 1983, p. 9-10).

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Vinte e seis anos depois da morte de Marianne, Kriele nos brinda com a distinção entre o tipo esclarecido de liberalismo, o tipo relativista e o tipo progressista. Seu argumento começa pela diferenciação entre o ideal de liberdade e o ideal de “libertação” defendido na teologia praticada na América Latina a partir da década de 1970. Kriele (1983, p. 234) identifica naquele momento histórico, duas correntes fundamentalmente diferentes do iluminismo: “uma que pretende fundamentar o estado constitucional, e outra que pretende fundamentar o domínio de uma nova concepção de mundo”. O jurista se concentra na segunda corrente para distinguir os tipos de liberalismo, porque é dela que emana “a ideia de que a humanidade possa e deva se ‘libertar’ do direito, da moral e das religiões” (Kriele 1983, p. 235-36). Central no argumento do autor é a maneira como o liberal relativista enxerga as “condições institucionais de uma cultura jurídica humana”. Kriele o descreve como alguém que se considera “um racionalista, para quem todas as ideias políticas são igualmente ideologias, baseadas ou em interesses ou em preconceitos” e para quem se torna cada vez mais “difícil admitir avanços seja na consciência da justiça, seja no desenvolvimento do direito positivo” (Kriele 1983, p. 174).

Bom, mas, em que consistiria o caráter progressista do liberalismo então? Para Kriele (1983, p. 173), o terceiro tipo de liberalismo é fruto da radicalização do relativismo e pode ser identificado por “sua forma particular de exigir liberdade”, qual seja, dispensando “os fundamentos institucionais da liberdade, do pluralismo e da tolerância”. A descrição segue:

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“Para o liberal progressista são particularmente suspeitas as instituições do estado. Ele entende que se pode dispensá-las, desmascarar a ideologia de sua pretensa necessidade e o ethos ministerial da justiça. Ridícula parece-lhe a afirmação de que os instrumentos que o estado emprega para coerção, possam servir exatamente para o fim de defender a liberdade…” (Kriele 1983, p. 186).

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E se o tom sobe, a voz de comando passa a ordenar, na melhor das hipóteses, a missão de “transformação da consciência” que consiste em incentivar a denúncia de toda e qualquer autoridade enquanto exercício crasso de poder (Kriele 1983, p. 176). E apesar de ser verdade que o tema central também para o liberal progressista seja a injustiça, o que governa é uma impaciência diante do trabalho rotineiro e infinito de esmero das formas de institucionalização do convívio. Animados com a solução final, os liberais progressistas apostam suas fichas na instauração de um novo mundo onde a ideia de justiça se tornaria supérflua precisamente porque nesse admirável mundo novo, toda e qualquer espécie de instituições e autoridades, inclusive o Estado, restariam superados. O máximo que essa ética da convicção permite reconhecer é a necessidade de defesa da liberdade como igualmente obrigatória. Não se investe no alargamento do conteúdo da liberdade e falta imaginação quanto aos meios políticos da liberdade.

Nota-se que a lente teórica à qual Kriele nos franqueia acesso permite um ajuizamento de outra qualidade no que se refere à história da recepção da obra de Marianne dentro da Liga. Podemos descrever nos termos do jurista a concorrência entre os diversos pontos de vista sobre a emancipação do feminino já naquela época e sem quase nenhum risco de anacronismo. Ao fazê-lo, podemos esclarecer como a ideia iluminista de liberdade defendida por Marianne passou a ser desafiada já no início do século passado pelo que Kriele identifica (1983, p. 10) como “uma noção inteiramente diferente da ‘libertação’ com uma eficácia poderosa e universal” porque capaz de colocar “em dúvida tanto a ideia da justiça como também a necessidade de instituições para sua concretização”.

Livre da responsabilidade pelo cultivo de formas para garantia de algum nível de imanência para a liberdade, a imaginação das companheiras de Marianne pode explorar várias outras possibilidades: libertação através do domínio da ciência, democracia direta e sua crença na possibilidade de convivência destituída de toda e qualquer mediação política, o “socialismo isento de domínio”, o “progressismo ‘liberal’”, todas estratégias citadas por Kriele e que despontaram no nascedouro do movimento feminino alemão como superiores para vencer às ameaças ao gênero. A opção pela substituição do ideal esclarecido de liberdade pelo ideal de libertação naquele momento atesta o quão poderoso é esse “influxo do ideal de libertação do direito sobre o sistema das coordenadas culturais-morais e políticas dominantes, do qual todas as decisões e ações na política, na moral, na educação e na pedagogia haurem seu sentido, valor e fim”.

As palavras são de Kriele (1983, p. 11-12) e nos permitem dimensionar a força do turbilhão no qual Marianne se viu metida, refletir sobre as premissas que orientaram suas decisões e ações naquela hora e concluir que a postura adotada foi a que corresponde ao liberal esclarecido. Marianne “pesou uma coisa tão bem quanto a outra” e concluiu: se era fato que, nos termos do liberalismo esclarecido, a dominação legal deixava de ser racional toda vez que a lei fosse colocada em função da ampliação da esfera de livre ação do masculino, a luta para resguardo dos limites da esfera de livre ação do feminino não tinha como deixar de encarar o peso do direito nas garantias institucionais da liberdade da mulher.

Esse posicionamento destacou nossa autora como protagonista no que Kriele (1983, p. 12) chama de “antagonismo entre as duas noções de libertação” — a “libertação do direito” e a “libertação pelo Direito”. Um conflito tão fundamental para o Movimento Feminino Alemão que decidiu o destino da sociologia do direito de Marianne junto às companheiras de luta. À época, pareceu conservadora demais uma “história do direito” que, para dizer o mínimo, consiste em um verdadeiro compêndio de razões filosófico-antropológicas, jurídicas, sociais e políticas para o investimento na racionalização do direito matrimonial e de família. Estranho, porque como acusar de “moralismo burguês” o pensamento de uma intelectual que consegue comprovar em sua análise que o ideal de liberdade da esposa e mãe adquire consistência de realidade quando as formas de organização jurídica da vida a dois impõem limites às arbitrariedades do marido e pai? É a pergunta que me faço praticamente todos os dias desde que tomei ciência da qualidade esclarecida do liberalismo que funda a sociologia do direito de Marianne Weber.

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Marianne e Max Weber

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Referências

Berger, Peter; Zijderveld, Anton. Em favor da dúvida. Como ter convicções sem se tornar um fanático. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

Kriele, Martin. Libertação e Iluminismo Político. Uma defesa da dignidade humana. São Paulo: Edições Loyola, 1983 [1980].

Kymlicka, Will. Filosofia política contemporânea. Uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Weber, Marianne. Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung. Eine Einführung. Tübingen: J.T.B. Mohr Siebeck, 1907.

Weber, Marianne. Frauenfragen und Frauengedanken. Gesammelte Aufsätze. Tübingen: J.C.B. Mohr Siebeck, 1919.

Weber, Marianne. Lebens-Erinnerungen. Bremen: Johs. Storm Verlag, 1948.

Zijderveld, Anton C. The Institutional Imperative: The Interface of Institutions and Networks. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2000.

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