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Os pluralismos liberais
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por Sebastián Rudas
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I.
Nos anos recentes, tem se evidenciado que o liberalismo é uma doutrina política com um forte compromisso pela defesa do pluralismo, seja este cultural, religioso, de visões do mundo, de capacidades, ou de vínculos de identidade a grupos sociais tais como identidades de gênero, etnia ou raça. Em particular, o denominado liberalismo igualitário defende que todas essas expressões do pluralismo deveriam se relacionar em condições de igualdade de status. Ou seja, numa sociedade liberal, no que se diz respeito tanto a grupos quanto indivíduos, não há ‘Série A’ e ‘Série B’; todas as pessoas, independentemente das possíveis formas nas quais as poderíamos agrupar, devem poder participar na sociedade em condições de igualdade de status.
O vínculo entre o liberalismo e o pluralismo não é novo. Autores como Isaiah Berlin já propuseram fundamentar o liberalismo a partir da ideia do “pluralismo de valores”, o qual defende que a diversidade de concepções do bem existente no mundo depende da existência de uma multiplicidade de valores mutuamente irredutíveis. Discordamos profundamente sobre o que é a ‘vida boa’ porque baseamos nossas concepções do bem em valores (liberdade, igualdade, solidariedade, segurança, etc.) irreconciliáveis. Embora a tese do pluralismo de valores não seja tão influente na atualidade como já o foi na época de Berlin, hoje o liberalismo coloca o pluralismo no holofote.
É interessante ressaltar que num dos livros mais relevantes da filosofia política liberal do século XX, Uma Teoria da Justiça (1974), de John Rawls, o pluralismo tem uma função, quando muito, secundária: o termo “pluralismo” aparece só uma vez, e o faz para referir a uma doutrina metafísica similar à descrita por Berlin. Foi só em 1993, com a publicação do Liberalismo Político, que Rawls colocou o pluralismo no centro das suas reflexões filosóficas. A centralidade do pluralismo na filosofia política liberal é tal que, hoje, o adjetivo ‘liberal’ parece significar ‘pluralista’.
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II.
Encontramos a ênfase no pluralismo em distintas expressões da teoria política liberal contemporânea. Por exemplo, na sua expressão como exercício crítico, o pluralismo é utilizado como critério para avaliar fenômenos políticos atuais que atraem a atenção de analistas de várias disciplinas e correntes políticas. Um dos casos mais emblemáticos na política recente é o assim chamado ‘populismo’. No influente livro do teórico político liberal Jan-Werner Müller (2016) sobre o assunto, encontramos que este é um fenômeno anti-democrático devido a seu carácter anti-pluralista. Para Müller, o populismo é um fenômeno político que cria uma distinção entre um povo moralmente ‘puro e nobre’, e tudo aquilo que lhe seja contrário. O povo ‘nobre e puro’ joga na ‘Série A’, enquanto o restante é rebaixado para a ‘Série B’, sem possibilidade de ser promovido. Em outras palavras, o movimento populista define o povo como homogêneo, e tudo aquilo que seja contrário a essa definição é excluído. O populismo é, assim, anti-pluralista e, portanto, contrário ao liberalismo.
Embora a pretensão universalista, e às vezes arrogante, do liberalismo possa sugerir o contrário, a teoria liberal do populismo não tem a última palavra, nem é a mais plausível, sobre esse fenômeno político. Autores como John McCormick e, mais recentemente, Camila Vergara (2020) e Luciana Cadahia e Paula Biglieri (2021), defendem o populismo como um projeto político que tem como objetivo principal a inclusão do povo no exercício do poder político democrático. De acordo com esses autores, o que consideramos como ‘o povo’ numa democracia não pode reproduzir os termos homogeneizantes e anti-pluralistas corretamente temidos por Müller. O ‘povo’ deste populismo — às vezes denominado ‘de esquerda’ — é uma entidade política que alberga diversidade. Liberais como Müller dizem que esses tipos de expressões políticas não são, em última instância, genuinamente populistas — eis a arrogância liberal. Outros liberais poderiam dizer que esse é um tipo liberal de populismo, com o qual abrimos espaço conceitual para o populismo como um fenômeno desejável no espectro do liberalismo como ideologia política. Hoje, acredito, ninguém defende um populismo liberal. No entanto, o uso que o termo ‘liberal’ vem adotando recentemente coincide com essa adjetivação.
A teoria política liberal contemporânea também pode se expressar como um exercício de revisão de conceitos normativos. Nesse âmbito, o pluralismo é utilizado como critério para reinterpretar propostas políticas que no passado não distante pareciam contrárias ao projeto político liberal. O caso do nacionalismo é ilustrativo. Em décadas recentes, o nacionalismo era rejeitado pela maioria de teóricos e teóricas liberais, pois o consideravam quase unanimemente como um fenômeno contrário aos ideais de justiça, liberdade e igualdade. De acordo com o ideal liberal (iluminista) de reconhecimento da igual dignidade entre todas as pessoas, dividir o mundo em estados nacionais e autorizá-los para excluir pessoas baseados nessas divisões é moralmente arbitrário. Para o liberalismo da segunda metade do século XX, o estado moderno era uma instituição política que deveria ser superada em favor de uma ordem baseada na unidade da humanidade. Na base dessa atitude cosmopolita encontramos uma intuição pluralista: os processos de criação das nações que compõem os estados contemporâneos excluem, discriminam e, com frequência, exterminam grupos sociais. O nacionalismo era um projeto fundamentalmente anti-pluralista.
No entanto, há na tradição liberal atual um processo de reconciliação com o nacionalismo. Defende-se agora o denominado nacionalismo liberal. Se substituímos o adjetivo ‘liberal’ e colocamos ‘sensível ao pluralismo’ na fórmula ‘nacionalismo liberal’, podemos ter certeza de que preservamos a intenção daqueles que propõem esse tipo de nacionalismo. Ou seja, o nacionalismo liberal é um projeto pluralista (e igualitarista) de nacionalismo. Se o nacionalismo é a descrição de um vínculo emotivo relativamente forte com o artifício da nação, o nacionalismo liberal é esse vínculo, mas sensível à diversidade presente na constituição do povo. Qualquer que seja a descrição da identidade nacional adotada por um movimento nacionalista liberal, esta deve ser inclusiva e sensível às numerosas identidades particulares presentes no país. Em outras palavras, o etnonacionalismo é rejeitado, assim como também o nacionalismo definido em identidades religiosas ou em tradições culturais que discriminam entre grupos populacionais pertencentes à mesma comunidade política. Embora a construção de qualquer ideia de identidade nacional implique em alguma distinção entre ‘nós’ e ‘eles’, o nacionalismo liberal defende a tese de acordo com a qual essas distinções podem, e devem, evitar a divisão entre ‘Série A’ e ‘Série B’.
Por que há no liberalismo um movimento de reconciliação com o pluralismo? De acordo com Martha Nussbaum (2013), uma das filósofas liberais mais influentes na atualidade, o ideal da justiça do liberalismo igualitário requer que os cidadãos e cidadãs aceitem realizar sacrifícios importantes para promover o bem comum. Na concepção da justiça de Rawls, exige-se a aceitação de um princípio da justiça que requer sempre distribuições igualitárias, com a exceção dos casos nos quais uma distribuição não igualitária seja em benefício dos menos favorecidos. Embora esse tipo de igualitarismo seja sedutor para muitas pessoas, é inegável que é um princípio controverso, rejeitado por muitas pessoas, acadêmicas ou não, liberais ou não. Rawls é ciente de que a adesão voluntária a esse princípio requer muito mais do que (bons) argumentos morais. É importante que exista um vínculo emotivo particularmente forte que motive as pessoas a aceitarem esse tipo de princípio igualitário. Para Nussbaum, esse vínculo emotivo deve estar apoiado num sentimento nacionalista (liberal), ou seja, um sentimento que nos motive a aceitar políticas redistributivas em benefício das pessoas menos favorecidas em nosso país. Na base deste raciocínio está a seguinte observação: os sentimentos que nos motivam a aceitar redistribuições são mais fáceis de gerar entre pessoas que se identificam como integrantes de um mesmo grupo (a família, grupo de amigos, a cidade, o país, etc.). Quanto maior for o grupo, maior será a dificuldade e mais intensa deve ser a promoção dos sentimentos de solidariedade.
A necessidade do nacionalismo liberal não é percebida unicamente a partir da dificuldade na implementação de princípios controversos como o ‘princípio da diferença’ de Rawls — aqui descrito como um princípio igualitarista. Há no interior da tradição liberal contemporânea princípios menos controversos que também motivam a reconciliação liberal com o nacionalismo. Por exemplo, o princípio de igual liberdade. Ou seja, a ideia de que temos o mesmo direito de ser livres. Apesar de ser um princípio aceito consensualmente na teoria política contemporânea, sua implementação prova-se bastante difícil. Por diversos motivos, falhamos sistematicamente nessa tarefa; é como se não conseguíssemos evitar cair na tentação de dividir o mundo em hierarquias grupais, em instituir ‘Série A’ e ‘Série B’ em nossas sociedades. Portanto, dizem aqueles que defendem o nacionalismo liberal, precisamos promover emoções (nacionais) que sejam efetivas em nos motivar para atuar de acordo com os nossos deveres de justiça. Ou, como diz Nussbaum seguindo o filósofo Immanuel Kant, emoções que nos ajudem a escapar da tentação de cair no mal radical que caracteriza nossa natureza humana. O nacionalismo justifica-se, portanto, a partir de reflexões sobre a necessidade de gerar disposições entre cidadãos e cidadãs para cumprir com deveres de justiça que, de outra maneira, não seriam observados. Este nacionalismo é, no entanto, liberal, ou seja, pluralista. A ideia de identidade nacional, dizem autores como David Miller (2013, 91), deve ser inclusiva e acessível a todos os membros dos diversos grupos culturais que compõem as sociedades contemporâneas.
Uma terceira forma da teoria política liberal se expressar nos debates contemporâneos consiste em se mostrar como um projeto de expansão do ideal de justiça liberal. Encontramos um exemplo na teoria normativa que recebe o nome de “multiculturalismo liberal”. Na sua fase inicial, o multiculturalismo liberal foi apresentado como uma crítica ao liberalismo devido a sua cegueira frente ao pluralismo cultural. Para Will Kymlicka (1995), as teorias da justiça liberais devem reconhecer que em todas as sociedades, no passado, no presente e no futuro, haverá pluralismo cultural. Há um erro no pressuposto de equivalência entre estado (entidade política) e nação (entidade cultural). Não há tal equivalência, e o não reconhecimento deste fato envolve vários tipos de injustiças.
No final dos anos 80, quando Kymlicka publicou seu primeiro livro, sua crítica ao liberalismo era em realidade uma crítica à teoria da justiça de Rawls. Contudo, a proposta de Kymlicka consistiu em fazer do liberalismo uma doutrina política sensível ao pluralismo cultural e, portanto, o argumento não oferecia uma razão para rejeitar o liberalismo, mas uma razão para incorporar as considerações sobre o pluralismo cultural na concepção liberal da justiça mais influente da época. O argumento original é ainda plausível: Rawls considera que, numa sociedade justa, o estado deve providenciar um conjunto de bens que qualquer pessoa necessitaria para poder desenvolver qualquer plano de vida — os denominados “bens primários”. Na lista desses bens primários, Rawls inclui as “bases sociais do autorrespeito”, entendidas como o tipo de reconhecimento normalmente requerido para as pessoas adquirirem um sentido de valor próprio que lhes permita perseguir com autoconfiança seus próprios planos de vida. O argumento do multiculturalismo liberal defende que o acesso à própria cultura é fundamental para poder perseguir os próprios planos de vida. Num estado que alberga mais de uma nação — ou seja, qualquer estado — é importante que as pessoas de todas as nações possam acessar a suas respectivas culturas para poderem realizar seus planos de vida. A intuição é a seguinte: se nas instituições que prestam serviços básicos no município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul, só fosse falado o português, as oportunidades para os tacuruenses, cuja língua materna é predominantemente o guarani, seriam reduzidas se comparadas com, por exemplo, às pessoas que moram em Brasília. Essa é uma desigualdade de oportunidades injusta já que é, nos termos comuns nos debates teóricos sobre justiça, moralmente arbitrária. Para o multiculturalismo liberal, uma sociedade justa é aquela na qual o pertencimento cultural — ser parte de um grupo nacional no interior de um estado plurinacional — não é fonte de acesso desigual a oportunidades. De acordo com o ideal de justiça liberal do multiculturalismo, a adoção do guarani como segunda língua oficial em Tacuru, rendendo os serviços públicos básicos acessíveis para os falantes dessa língua, é um passo na direção correta — e um requerimento de justiça ausente nas teorias da justiça anteriores à expansão do ideal de justiça liberal.
Nos anos 90, quando o multiculturalismo liberal já estava popularizado, houve uma certa resistência em aceitar a expansão do ideal de justiça liberal para o âmbito do pluralismo cultural — e a resistência, embora minoritária, ainda continua hoje. No entanto, a autocompreensão do liberalismo inclui a inclusão das demandas de justiça com origem no pertencimento cultural. Vejamos um exemplo: a nova Constituição chilena será mais justa, da perspectiva liberal pluralista, se reconhecer que é injusto que as minorias nacionais não tenham acesso às mesmas oportunidades simplesmente por terem nascido numa nação sem estado-nacional. Em outras palavras, a nova Constituição será mais justa se reconhecer a injustiça envolvida nas relações de desigualdade de poder entre as culturas nacionais minoritárias e a cultura nacional majoritária. As diversas desvantagens sofridas pelos descendentes das culturas nacionais invadidas e exterminadas no passado recente são produto da recusa da cultura nacional invasora em reconhecer direitos culturais para as minorias nacionais. A rejeição da maioria cultural chilena (ou, talvez, da sua elite política) em reconhecer que a impossibilidade de acessar à cultura própria constitui um obstáculo para desenvolver o plano de vida próprio é, para o liberal contemporâneo, uma injustiça. A nova Constituição chilena será descrita como mais liberal se aceitar a importância de reconhecer a diversidade cultural chilena. A abundância de bandeiras mapuches nos protestos sociais que antecederam o processo constituinte é indício de que esse passo vai ser dado e teremos uma Constituição mais liberal no Chile.
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III.
A concepção liberal da justiça mais influente na filosofia política do último século, a ‘justiça como equidade’ de John Rawls, não foi inicialmente defendida à luz do pluralismo. Já com a publicação do Liberalismo Político vemos que as prioridades na reflexão filosófica de Rawls mudaram consideravelmente, pois o assim denominado “fato do pluralismo razoável” de doutrinas compreensivas passa a ser fundamental para entender como é que a filosofia política liberal concebe o ideal de uma sociedade justa. A centralidade do pluralismo no liberalismo político rawlsiano tem implicações profundas sobre como devemos, desde a perspectiva da filosofia política liberal, pensar as possibilidades de promover uma sociedade que não só possa ser avaliada como ‘justa’, mas que também seja aceita como tal por cada um de nós, tão diferentes quanto somos.
Uma das chaves para entender a centralidade do pluralismo no Liberalismo político é o “fato da opressão”. Como veremos, esta centralidade obedece à importância de evitar o uso opressivo do poder do estado. Rawls define o “fato da opressão” como o uso do poder do estado para preservar a unidade de uma sociedade política. Um exemplo que ilustra claramente esta forma de injustiça é o uso do poder estatal para preservar a unidade e coesão social num regime teocrático. Durante a Inquisição da Igreja Católica, por exemplo, o aparato estatal foi utilizado para reprimir expressões de opiniões e práticas consideradas dissidentes da doutrina religiosa e política oficial. A coesão política era procurada através da prática oficial da intolerância.
No entanto, nosso imaginário não associa exclusivamente a ideia da opressão com experiências políticas que aconteceram séculos atrás. Quando pensamos na opressão, pensamos também nas práticas de repressão dos agentes estatais nas ditaduras militares da segunda metade do século XX na América do Sul. Como é bem conhecido, o aparato repressivo estatal perseguia dissidentes políticos, que eram, no final das contas, qualquer indivíduo que fosse considerado pelo regime como uma ameaça à estabilidade e unidade política. O fato da opressão é, por definição, anti-pluralista.
No entanto, quando Rawls introduz a noção do uso opressivo do poder estatal, ele não está se referindo exclusivamente a regimes como a Inquisição ou as ditaduras. Encontramos que o fato da opressão também se refere a sociedades governadas por “uma forma razoável do utilitarismo ou pelos liberalismos razoáveis de Kant ou de Mill” (LP p. 37). Rawls reconhece o caráter problemático desta observação, pois tanto Kant quanto Mill são celebrados como expressões da mais alta qualidade intelectual na história do pensamento filosófico ocidental, estando suas posturas éticas e políticas explicitamente comprometidas com os valores políticos da liberdade de expressão, de consciência, assim como com o valor da tolerância. Nestas versões do liberalismo não encontramos o estado repressor que com frequência imaginamos que existia durante a Inquisição e as ditaduras militares. Por que, então, Rawls considera que nesse tipo de sociedades também encontraríamos o fato da opressão? A resposta de Rawls é clara: porque, para preservar sua estabilidade durante o tempo, sociedades reguladas pelos liberalismos de Kant e Mill precisariam do poder estatal. Em outras palavras, essas sociedades só conseguem preservar a unidade através do uso da coerção do estado; o qual constitui um uso opressivo do poder. Este é um ponto importante que vale a pena ressaltar: Rawls considera que o poder estatal é opressivo inclusive em sociedades governadas por concepções da justiça fortemente comprometidas com valores políticos caros ao liberalismo.
Se a descrição como ‘opressivas’ das sociedades milliana e kantiana causa surpresa, resulta ainda mais intrigante a insinuação de Rawls de que uma sociedade governada pela ‘justiça como equidade’ tal e como ela é apresentada em Uma Teoria da Justiça também seria opressiva. Esta é uma afirmação surpreendente se consideramos que a ‘justiça como equidade’ é uma concepção da justiça especialmente sensível com a proteção prioritária das liberdades liberais mais tradicionais, por exemplo a proteção em condições de igualdade da liberdade de consciência. A sociedade regulada pela concepção da ‘justiça como equidade’ também é explicitamente tolerante, chegando ao ponto de ser “tolerante com os intolerantes”. Por sua parte, a “posição original” — um dos argumentos mais famosos em Uma Teoria da Justiça — é explicitamente desenhada para que qualquer pessoa consiga ver porque os princípios da ‘justiça como equidade’ são preferíveis aos princípios de qualquer outra concepção da justiça. Como entender, então, a afirmação de que a ‘justiça como equidade’ constitui uma sociedade bem ordenada que só poderia preservar a unidade a partir do uso opressivo do poder estatal?
A resposta oferecida por Rawls é a seguinte: a concepção liberal da justiça deve levar em consideração a existência do pluralismo como um fenômeno iniludível nas democracias constitucionais. No entanto, o pluralismo ao qual Rawls faz referência não é o mesmo dos tipos de pluralismo mencionados em seções anteriores. Para a teoria liberal na matriz rawlsiana, o pluralismo a ser observado é um tipo de pluralismo epistêmico, ou seja, um pluralismo que refere a formas distintas de entender, avaliar, e descrever o mundo — sejam as nossas concepções do bem ou as nossas concepções da justiça. Para o liberalismo rawlsiano, portanto, é fundamental que os usos do poder coercitivo do estado possam ser entendidos, avaliados, e aceitos por pessoas que julgam o mundo de formas radicalmente distintas — sem por isso ser pessoas que não aderem a um ideal de justiça liberal, democrático e igualitário. Ser governado por um regime político que não assume o dever de justificar os usos coercitivos do poder estatal em termos que possam ser entendidos e avaliados pelos cidadãos e cidadãs é estar sujeito a um poder opressor; independentemente de se tratar de um regime político orientado pela concepção de justiça dos liberalismos de Kant, Mill ou Rawls (antes do Liberalismo Político).
Para Rawls, o fato da opressão, isto é, a desatenção ao fato da importância de justificar o uso do poder do estado a todos os cidadãos e cidadãs, em termos que eles e elas possam entender, avaliar e aceitar, também acontece em regimes tecnocráticos — pois as decisões são feitas por especialistas (técnicos) que não precisam explicar e justificar suas medidas para o povo — e em regimes paternalistas — pois as decisões são feitas por pessoas que ‘sabem’ qual é o bem para os governados melhor do que os governados mesmos podem saber. Tecnocracias e paternalismos não levam a sério o pluralismo epistêmico que caracteriza as democracias constitucionais porque não oferecem justificações do uso do poder político que possam ser entendidas e avaliadas por todos os cidadãos e cidadãs. Uma vez considerado que nas sociedades democráticas atuais o pluralismo epistêmico é iniludível, não podemos evitar pensar que uma proposta não só pode ser justa, ela também deve ser legítima: cidadãos e cidadãs devem poder ser capazes de se verem como co-legisladores ou co-executores do poder coercitivo do estado. Essa é parte constitutiva do governo democrático.
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IV.
Está em curso um processo de retrocesso democrático nas Américas, assim como em várias outras partes do mundo. Nos Estados Unidos, a democracia vigente mais antiga do mundo, aconteceu algo que muitos consideravam absolutamente improvável: a transição do mandato presidencial não foi pacífica. Muitos temem um cenário similar, ou pior, no Brasil. O prognóstico da democracia peruana é reservado. Na Colômbia, os protestos contrários ao governo são reprimidos com violência inclemente e cada vez é mais comum o discurso, nem sempre pacífico, que divide a população entre ‘bons’ e ‘maus’. Décadas de difícil e lenta consolidação democrática correm hoje o risco de se perder na região. É importante não perder de vista que esse enfraquecimento traz consigo a erosão de valores liberais: o autoritarismo é inerentemente anti-pluralista. Ele é contrário à diversidade de opiniões políticas, aos distintos modos de vida, à diferença religiosa, cultural e étnica. Ele pode tolerar a diferença, mas sob a condição de subordinação, sob a condição de aceitar a divisão entre ‘Série A’ e ‘Série B’ entre os grupos que compõem a população. O liberalismo contemporâneo rejeita essas ideias, pois ele está firmemente comprometido com a promoção de uma sociedade que garante, em condições de igualdade, a possibilidade de cada um viver de acordo com o seu próprio critério de vida boa. Devemos, numa sociedade liberal, ser capazes de resolver nossos desacordos reconhecendo que a diversidade de opiniões a respeito de como conduzir nossas sociedades são em boa parte produto de desacordos razoáveis, reconhecendo que ninguém chegou a este mundo com autoridade para impor o seu ponto de vista.
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Referências
Biglieri, Paula; Cadahia, Luciana. Seven Essays on Populism: For a Renewed Theoretical Perspective. Cambridge: Polity Press, 2021.
Kymlicka, Will. Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights. New York: Oxford University Press, 1995.
Mccormick, John. P. Democracia Maquiaveliana: Controlando as Elites com um Populismo Feroz. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 12, p. 253—298, 2013.
Müller, Jan-Werner. What is populism? Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016.
Nussbaum, Martha. Political Emotions. Cambridge: Harvard University Press, 2013.
Rawls, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Rawls, John. O Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
Vergara, Camila. Populism as Plebeian Politics: Inequality, Domination, and Popular Empowerment. Journal of Political Philosophy, v. 28, n. 2, p. 222—246, 2020.
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