Eixos democráticos no combate à corrupção

A corrupção é inconciliável com a construção de um Brasil moderno. Mas e se houver distorções no combate à corrupção? Quem vigia os vigilantes?

por Davi Lago

A corrupção é a destruição da res publica, da coisa pública, do espírito público que deve nortear um Estado democrático. Corrupção ativa e passiva, e seus correlatos, são crimes contra a Administração Pública que, entre outras violações, privatizam sorrateiramente o que é de todos. A corrupção é inconciliável com a construção de um Brasil moderno. Mas e se houver distorções no combate à corrupção? Quem vigia os vigilantes? Quem lava a Lava Jato? Quem governa os governantes? A resposta da Constituição Federal de 1988 é clara: o povo brasileiro.

À luz do trintenário de nossa Constituição Federal e da reflexão jusfilosófica este artigo abordará três eixos que viabilizam a luta efetiva contra a corrupção: (1) a importância do Estado constitucional democrático e sua transparência – em oposição ao Estado autocrático e arbitrário –; (2) o estabelecimento, manutenção e aprimoramento de instituições e mecanismos de controle; e (3) a ampliação da cidadania e da prestação de contas dos poderes públicos – accountability.

Estado democrático e transparência: bases na luta contra a corrupção

Em primeiro lugar, a Constituição Federal de 1988 é uma afirmação do Estado Democrático de Direito (art. 1º) em contraposição ao Estado discricionário, arbitrário, autocrata. O Estado democrático transcorre na esfera de poder visível, e não de poder invisível, que é o modelo ideal do Estado autocrático. Na lição de Norberto Bobbio (1909-2004) quem comanda é mais temível quanto mais está escondido, e quem deve obedecer é mais dócil quanto mais é perscrutável e perscrutado. O poder tende a esconder-se, pois é mais potente quanto menos se deixa ver. Quanto maior a possibilidade de se tomar decisões arbitrárias, maior a possibilidade de corrupção. Quanto mais os corruptos se sentem protegidos dos olhares, mais se sentem seguros para cumprir atos ilícitos. No Estado despótico, o soberano vê sem ser visto, controla o povo sem ser por ele controlado. Em regimes autoritários, a corrupção pode ser regra, ou seja: mal se distingue do andamento normal das coisas.

O Estado autocrático é, assim, o oposto da democracia e algo bem diferente do Estado constitucional, forma de governo na qual o poder deve ser público e exercido em público. Na democracia o poder é público em dois sentidos: primeiro, é público porque não é privado, particular, nem beneficia interesses particulares; em segundo, o poder também é público pois deve ser exercido em público, ou seja, de modo visível, às claras, não em segredo. O segredo deve limitar-se no tempo e ser empregado com grande moderação pois o princípio fundamental da democracia é hostil ao secreto.

Desse modo, o estabelecimento de uma Constituição democrática no Brasil em 1988 estabelece outro patamar para o combate à corrupção. Em regimes autoritários o rei ou ditador vê no tesouro público a continuação de seu patrimônio pessoal. Para falar em corrupção é necessário ter a perspectiva de um regime em que o público e o privado estejam separados. Esse regime não é o absolutismo, a tirania, a ditadura. É a república. Nas monarquias constitucionais começou a existir a separação entre o patrimônio da família real – com a criação da “lista civil”, a alínea orçamentária em que ficam os gastos com a família real.  Mas é na república constitucional que a separação é total, e a corrupção passa a ser um problema sério. Como afirma Renato Janine Ribeiro

não que nos muitos tons de despotismo não haja corrupção – só que não se chama corrupção. Somente se corrompe o que na sua natureza é decente, é limpo, é íntegro. Quando o próprio regime significa a apropriação sistemática por alguns do que deveria ser de todos, o problema não está em sua degradação. Está em sua natureza. (A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.121)

Por visibilidade e transparência o exercício do poder é verificável e controlável – sendo exercido e fiscalizado segundo normas conhecidas e sancionadas por lei. O pagamento de um contrato regular deve ocorrer sob a luz do sol; o dinheiro dado ao corrupto é dado nas sombras. O contrato juridicamente legal é público; a relação de corrupção é secreta. Ou ainda como pontuaram Donatella della Porta e Alberto Vannucci no ápice da operação Mãos Limpas na Itália:

a transparência é de fato um elemento fundamental para o funcionamento da democracia: ela permite o controle por parte dos cidadãos sobre as atividades dos governantes, que funda e legitima a democracia representativa. A delegação de poder por parte dos cidadãos aos seus representantes pressupõe de fato a possibilidade de conhecer, avaliar e eventualmente sancionar o seu desempenho. (Um paese anormale: come la classe politica ha perso l’occasione di Mani Pulite, Laterza: Roma, 1999, p.91)

Mecanismos de controle e aprimoramento institucional

Em segundo lugar, além da lógica democrática, a Constituição de 1988 reafirma o balanceamento do poder com sua estruturação política equilibrada por um sistema de pesos e contrapesos, e a possibilidade de desenvolvimento e fortalecimento de mecanismos de controle. Como afirmou John Emerich Edward Dalberg-Acton (1848-1902): “o poder tem a tendência a se corromper e o absoluto poder a se corromper absolutamente”. O poder perturba, atrai, seduz, altera os ânimos de seus detentores e cobiçadores. Vale retomar a conotação filosófica do termo corrupção que emana da teologia cristã. A expressão foi empregada por Agostinho de Hipona (354-430) numa troca de cartas com Jerônimo, e tem sua etimologia explicada: corrupção é ter um coração (cor) rompido (ruptus) e pervertido. Cita o Gênesis: “a tendência do coração é desviante desde a mais tenra idade” (Gn 8.2). Ou seja, há uma força destrutiva no ser humano que o incita ao desvio, que é a corrupção. Contudo, esse desvio de conduta não é fatal, pode ser dominado e superado.

O realismo e pragmatismo da filosofia política moderna tratou de repensar o fundamento do poder e os termos de seu controle. Na ruptura com os sistemas absolutistas, ocorre o engendramento no período iluminista de novos arcabouços jurídicos, desenhos institucionais e sistemas de governo que ganhariam vida e impulso com a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e a Revolução Francesa (1789). Dessas estruturas jurídico-políticas a Constituição de 1988 recepciona, por exemplo, a tripartição dos poderes (art. 2º). Mas é preciso ir além: o combate a corrupção envolve a capacidade das instituições de coibir o fenômeno e punir aqueles que insistem em praticá-lo. Por isso, há esforços no aprimoramento institucional brasileiro desde o início dos anos 1990 com a instauração e fortalecimento de organismos de controle e seu efeito na limitação da corrupção como o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal. O mesmo pode ser dito acerca do aprimoramento legislativo com leis emblemáticas como por exemplo: Lei Complementar de Responsabilidade Fiscal (2000), Lei da Transparência (2009), Lei Complementar da Ficha Limpa (2010), Lei Anticorrupção (2013).

Sem prejuízo dos avanços nos últimos trinta anos, a configuração institucional brasileira ainda tem falhas graves que precisam ser sanadas. Ainda possuímos um sistema político de representatividade desproporcional e burocracias em excesso. Um Estado inflado, marcado por um cipoal intransponível de leis, resoluções e regulações, favorece o tráfico de influência. Bruno Carazza adverte em seu estudo Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro ser inegável que a condenação de poderosos corruptos representa um marco num passado de impunidade:

mas estamos avançando muito pouco para tomarmos medidas concretas, institucionais, para lidar com o problema da corrupção de forma sistemática. Para tanto, precisamos encarar de maneira mais técnica e menos passional. (Companhias das Letras, 2018, p.279)

Para nosso horizonte imediato há saídas recorrentemente apontadas que envolvem: a melhor integração dos órgãos de controle, menos cargos em comissão, menos estatais, vedação a regimes tributários especiais, um sistema eleitoral que privilegie candidaturas mais baratas (distritos menores, com campanhas mais simples e limites de gastos baixos), partidos com estruturas mais transparentes e democráticas e fontes de financiamento pulverizadas (partidos e candidatos buscando dinheiro junto aos seus eleitores e não no Orçamento público ou em grandes empresas) e a eliminação da impunidade com regras de prescrição menos benéficas, forte restrição aos recursos protelatórios e punições maiores ao crime de caixa dois.

Cidadania e accountability

Em terceiro lugar, a Constituição de 1988 é uma Constituição cidadã. A garantia dos direitos do cidadão foi uma preocupação central em sua elaboração. As liberdades públicas – que incluem o acesso a informação, a liberdade de imprensa, a liberdade religiosa, a liberdade de expressão – são basilares no combate à corrupção. Como bem lembrou Raymundo Faoro:

singular é o dito de Rousseau: não é possível corromper o povo, mas pode-se enganá-lo. Fosse corruptível o eleitorado, no seu conjunto, a cidadania não seria exercida. (A república em transição: poder e direito no cotidiano da democratização brasileira 1982-1988. Rio de Janeiro: Record, 2018, p.183)

É necessária uma democracia não corrompida: uma democracia na qual os cidadãos tenham um mínimo de consciência civil, com coragem para controlar as decisões públicas e para criticá-las, denunciando abusos e ilegalidades. Assim, o combate a corrupção ocorre em um ambiente onde há cidadãos interessados em verificar a ordem das coisas – e que tenham meios de fazê-lo – mas também por autoridades que cumprem à risca seus deveres de prestação de contas – ou accountability.

Sobre a prestação de contas dos poderes, especialmente do Poder Judiciário, é importante ressaltar, que o modo como a doutrina jurídica compreende o balanço de poder sofre mudanças na contemporaneidade, após as experiências totalitárias do século 20. A crescente demanda ao Poder Judiciário acerca de questões que envolvem decidir sobre questões de princípio, colocam os juízes diante de problemas que são fundamentalmente políticos. Como Fernando Filgueiras afirma no ensaio Accountability e Justiça:

em sociedades democráticas, os juízes são delegados a exercer sua autoridade em favor de concepções razoáveis de justiça, o que demanda, por si só, processos de justificação pública que legitimem as posições individuais que os magistrados tomam em relação a casos concretos. O Judiciário, nesses termos, compõe, de acordo com Rawls, um fórum da razão pública, em que princípios de justiça são deliberados e publicamente validados à luz de valores com os quais os cidadãos possam concordar. (in: Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017)

Assim, se a autoridade, em uma democracia, reside na sociedade, e se o juiz faz escolhas representando a sociedade, é uma questão de justiça política que o Judiciário, assim como o Executivo e o Legislativo, cumpra o dever de prestar contas ao público. Um Judiciário democrático decide com base em uma Constituição criada e endossada pelo público. Foi na promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988 que Ulysses Guimarães afirmou: “A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam”. A advertência é atemporal. O combate à corrupção exige fundamentos constitucionais democráticos, transparência e uma mobilização permanente da sociedade – não basta uma cidadania de papel. Sobre alicerces democráticos é possível avançar no aprimoramento das instituições e mecanismos de controle da República brasileira.

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