#ELE deve ser tolerado?

Deve-se tolerar os intolerantes?
Jair Bolsonaro. Foto: Dida Sampaio/Estadão

por Tiago Pavinatto

“Tudo fica tão confuso quando todos não param de dizer ‘Você-Sabe-Quem’. Nunca vi nenhuma razão para ter medo de dizer o nome de Voldemort.” O trecho da afortunada ficção Harry Potter e a pedra filosofal, de J. K. Rowling, ilustra com alguma graça o momento em que vivemos neste nosso desafortunado Brasil: sem mencionar o nome do destinatário, os autointitulados iluminados deste país que não é Nação aderem à campanha do #EleNao.

Talvez estejam a render homenagem aos ditames do politicamente correto, que insiste em afastar das coisas o nome que elas têm, talvez estejam procurando eufemismos tolos tal qual o caipira quando diz “doença ruim”. Não importa. A ordem é não tolerar determinado candidato, nem mesmo seu nome, e, mais ainda, o voto nele. O grito abomina tanto o Voldemort tropical quanto seus asseclas, seus eleitores, dementadores transformados em dementes.

A decisão da galera do bem faz sentido em Hogwarts quando “Aquele-que-não-deve-ser-nomeado” tenta obter o poder político de chofre em chofre.

Mas ainda faria sentido tal postura intolerante se, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, ele, até então um vilão, estivesse arrependido ou silente daquilo que outrora pregava e buscasse o mesmo poder em estrita observância dos ditames legais?

A pergunta é oportuna, pois, caso queiramos enxergar luz no espelho e acreditar que corre em nossas veias a democracia, não podemos deixar de observar o dever de tolerar, dever inafastável, indelével, especialmente quando o fenômeno do multiculturalismo é realidade irreversível a reclamar das instituições e de todo o povo o mesmo modelo de conduta identificado por Voltaire nos antigos mercados de Amsterdã e Londres, nos quais budistas, hindus, judeus, chineses, brâmanes, cristãos gregos, romanos e protestantes negociam juntos sem levantar o punhal para o outro visando ganhar uma alma.

A tolerância, apesar da ambiguidade apontada nas análises sobre a origem do vocábulo (sua raiz indo-europeia – tol, tal,tla– e os derivados latinos tolleree tollerare, onde tolleresignifica “levantar”, “deixar” ou, às vezes, “destruir”, e tollerare, por sua vez, remete para “levantar”, “suportar” e “combater”) e dado que palavras velhas podem conotar ideias novas, é via única e insubstituível para que se seja tolerado.

Ela não é, como é o respeito, um sentimento, algo que floresce na alma da pessoa que, sem esperar nenhuma contrapartida, carrega-a como um instinto e a observa como uma lei da física. A tolerância é ação e, se algum sentimento existe, é o de sacrifício, porque, antes de agir de maneira tolerante existe uma escolha, a escolha de negar um elemento da própria vontade após o cálculo da recompensa: não se quer tolerar e nem se cogitaria em tolerar não houvesse uma recompensa; havendo, se essa recompensa, isto é, o fato de ser tolerado, resultar em efeitos socialmente mais benéficos do que agir externando a vontade verdadeira, tolera-se.

A tolerância é, em sua essência, um fingimento. O eficiente fingimento do respeito. É e sempre será, necessariamente, um fingimento, pois, quando deixar de ser, só poderá se consubstanciar em respeito… ou intolerância.

E qualquer sujeito plenamente capaz pode escolher tolerar.

Mesma exigência, por extensão, é feita ao partido político, uma vez que os partidos moldam a paisagem política de um país democrático. O partido político, algo exótico e sofisticado, reclama, assim, por um disciplinamento legal que o ajuste ao mundo contemporâneo e à expectativa democrática, depurando os vícios e evitando a corrosão da própria democracia.

A Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, já em seu artigo 1º, coloca (i) o interesse do regime democrático, (ii) a autenticidade do sistema representativo e (iii) a defesa dos direitos fundamentais definidos na Constituição Federal como elementos que devem, necessariamente, ser assegurados pela destinação do partido político. No artigo seguinte, estipula que o programa partidário deve respeitar “a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana”. Tais disposições nada mais fazem do que repetir o comando do artigo 17 da Constituição brasileira.

Em suma, é restrito, na democracia, o ideário do partido político. Ele deve ser tolerante e, ainda, deve assegurar, entre outros, o regime democrático e a observância dos direitos humanos fundamentais.

Assim, muito embora o Legislador não tenha discorrido sobre o conteúdo dos estatutos, é de claridade solar que as linhas constitucionais repetidas pelo Legislador infraconstitucional devem ser observadas para a aceitação do registro do partido. O partido político antidemocrático não poderá sequer nascer e, nascido democrático, eventual transformação ideológica contra a democracia ou os direitos humanos fundamentais deve ser coibida.

Tomar tais princípios como cláusulas de barreira para o registro do partido político é essencial, pois nenhuma Constituição preservará a democracia num país cujas condições sejam altamente desfavoráveis.

Parece sedimentada em nosso ordenamento jurídico, portanto, a tolerância repressiva de Herbert Marcuse, para quem a verdadeira pacificação requer a retirada da tolerância antes da ação, na fase de comunicação verbal da intolerância, por impressões e imagens. Mas, convém destacar, essa suspensão extrema do direito à liberdade de expressão e de reunião só é justificada se toda a sociedade estiver em perigo extremo.

A ideia não é nova. Vem de Locke, em sua Carta acerca da tolerância, o entendimento de que não cabe qualquer direito a serem tolerados os homens que, a pretexto da Religião, reivindicarem em assuntos civis qualquer privilégio ou poder acima dos outros mortais que não pertencem à sua comunidade eclesiástica.

Interessante destacar, todavia, a crítica de Norberto Bobbio à tolerância repressiva em seu A era dos direitos. Para ele, Marcuse pode permitir-se essa expressão contraditória porque distingue as ideias em boas (as progressistas) e más (as reacionárias), afirmando que boa tolerância é a que tolera apenas as ideias boas, o que seria inaceitável. “Quem distingue entre as boas e as más ideias?”, pergunta-se Bobbio antes de concluir que a tolerância só é tal se forem toleradas também as más ideias.

Voltando, então, aos destinatários da exigência de tolerar, assegurando o regime democrático e a observância dos direitos fundamentais, é um tanto óbvio que esse dever se faz presente aos indivíduos que compõem os partidos políticos, especialmente os candidatos.

E, finalmente, reencontramos o nosso candidato inominado e não tolerado.

Em que pesem, no seu passado (distante ou recente, tanto faz), posicionamentos machistas, homofóbicos, misóginos e racistas, posicionamentos claramente antidemocráticos e desafiadores dos direitos humanos fundamentais, que poderiam barrar sua candidatura e permitir a intolerância contra ele, estes não aparecem no discurso, no programa e nas respostas atuais.

Mais ainda: fôssemos cristãos, ainda poderíamos discorrer sobre o perdão. Não sendo, a ideia de que uma pessoa má é sempre má, sem possibilidade de mudança, é lombrosiana demais.

Logo, respeitado o jogo democrático moderno, resta o dever de tolerar o intolerante arrependido, ainda que oportunamente. Se temos civismo e discernimento, basta não votar nele.

Por outro lado, em que pese o pensamento de Bobbio ser indissociável à nossa formação e o fato de discordarmos de Marcuse em tudo mais além da tolerância repressiva, não parece demais concluir que a intolerância ao intolerante convertido ou disfarçado também deve ser tolerada enquanto pensamento e palavra, escrita ou só falada, ou outra forma de representação gráfica.

Por fim, se a intolerância do #EleNao parece não ter passagem nem mesmo dentro da estrutura marcusiana, cumpre notar que ela revela que as Eleições Democráticas e o Inferno têm a mesmíssima composição: os outros (e não diremos que o nosso pensamento partiu de Sartre, pois nos chamarão de vermelhos; logo nós).

Caso o leitor abomine tal comparação, pedimos que finja melhor.

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