por Cristiano Cabrita
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No século XVI, a Europa foi palco de intensas lutas religiosas entre as potências católicas e os defensores da Reforma Protestante. É nesta época que as Américas, em particular a Nova Inglaterra, são colonizadas por uma facção radical defensora da Reforma, os Puritanos. Este protestantismo inglês desenvolveu a noção de que a Inglaterra estava «espacial» e «espiritualmente» separada do continente europeu. Neste sentido, o território era considerado como o bastião da verdadeira religião, isto é, um lugar que havia sido abençoado pela divindade para desenvolver missões superiores na Terra. Os separatistas que atravessariam o Atlântico fariam parte desta tradição. Aos seus olhos a Velha Inglaterra não tinha alcançado o sucesso na sua «missão», como tal, os propósitos divinos teriam que ser alcançados noutro lado, necessariamente virgem e incorrupto. Daí que tivessem surgido as primeiras convicções de que o território colonial era uma «terra prometida» onde aqueles propósitos podiam ser alcançados.
Neste contexto, em 1630, o Governador de Massachusetts, John Winthrop, dirigiu-se aos passageiros do navio Arabella perto do porto de Boston e afirmou, «temos que considerar que seremos como uma cidade no cimo de uma colina (city upon a hill), os olhos de todos estão sobre nós». Esta seria uma das primeiras manifestações públicas da componente religiosa associada ao conceito de «excepcionalismo Americano». E, é importante porque Joe Biden procura agora recuperar esta concepção para formular a sua ideia de uma América “liderante”
Ou seja, apesar do ruído de fundo — diria descalabro total — que está associado a este processo de transição presidencial, é importante sublinhar que a visão de política externa enunciada por Biden não se desviará de uma linha de continuidade característica da nação norte-americana. Tal como não havia sucedido com Trump (apesar dos erros cometidos e das inevitáveis percepções), com Reagan, Bush, Obama ou Clinton. Porquê? Porque os EUA, independentemente do presidente em exercício de funções tem, deste 1776, vincado aquele enquadramento ideológico “excepcionalista”.
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Em termos político-ideológicos quais são os pontos fundamentais desta ideia de excepcionalismo?
Para Trevor B. McCrisken, o termo excepcionalismo americano é essencialmente empregue para «descrever a convicção de que os Estados Unidos são uma nação extraordinária com um papel especial a desempenhar na História da humanidade; uma nação que não é somente única mas também superior a todas as outras». A grande questão parece ser como e porquê é que surge este ponto de vista.
Antes de mais, o conceito tem que ser enquadrado em dois contextos. Um relativo ao período de colonização, e um outro relativo ao período que norteia a Declaração de Independência. Comecemos por este último. O desejo manifestado pelas colónias britânicas em traçar um futuro independente da Grã-Bretanha ocorre em pleno período do Iluminismo. Período onde proliferavam, entre outras, ideias que defendiam que os melhores momentos para a raça humana estavam a aproximar-se — servindo, por isso, de encaixe perfeito para a ideia de que seria a jovem nação a indicar o caminho para tão elevado propósito.
O segundo contexto em que o conceito de excepcionalismo se enquadra centra-se no período de colonização. Aqui é a dimensão religiosa, referida anteriormente, que é particularmente evidente. Mas então qual é o elemento aglutinador destes dois contextos? A resposta é a necessidade de construir uma identidade colectiva praticamente do zero. A rejeição dos comportamentos degenerativos existentes na Europa e o «sentimento único» de nascer no Novo Mundo pautado pelo liberalismo político, eram das poucas experiências que podiam servir para construir a memória colectiva da nova nação.
Com efeito, este traço singular da civilização Americana foi, pela primeira vez, estudado por um aristocrata francês entre 1835 e 1840. Com o propósito de analisar transversalmente a vida política, económica, social, religiosa e cultural desta nova nação, Alexis de Tocqueville deu profundidade ao entendimento sobre esta questão específica. Ao longo da sua obra, Da Democracia na América, Tocqueville exulta com a combinação maravilhosa entre o «espírito de religião» e o «espírito de liberdade» que atravessam os habitantes Americanos. A América é vista como a «terra da democracia» onde impera a devoção pela religião e moral conjuntamente com um respeito singular por princípios patrióticos:
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«Quando a América lutava pela mais justa das causas, a de um povo escapando ao jugo do outro, quando se tratava de inscrever uma nova nação no mapa do Mundo, todos se elevavam para estarem à altura da finalidade dos seus esforços. Nessa excitação geral, os grandes homens corriam diante do povo e este, adoptando-os, deixava-os dirigi-lo».
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Com efeito, o excepcionalismo está associado ao próprio crescimento cultural e nacionalista do país. Num cômputo geral, para Bradford Perkins, «os americanos consideravam-se uma sociedade modelo destinada a transformar o mundo. Este sentimento advinha da própria culturalidade Americana da época. Imbuídos nas linhas ideológicas do republicanismo, o povo Americano via na revolta contra o apelo monárquico a possibilidade de eles próprios modificarem politicamente o mundo. Neste sentido, o pressuposto de um elevado sentido de moralidade e excepcionalidade evoluiu de um modo contínuo com a História dos EUA. De facto, aqui é necessário fazer um parêntesis para afirmar que a questão dos valores morais é importante para entender a política externa dos EUA porquanto contextualiza a discussão em torno da formação da identidade nacional norte-americana, permitindo entender as subsequentes opções em política externa, a maior parte delas condicionadas por pressupostos morais.
O país, como de resto acontece com a maior parte dos Estados, tem uma maneira própria de definir a sua abordagem externa. Esta situação é perfeitamente natural se levarmos em linha de conta que cada Estado exibe características intrínsecas ao nível da herança histórico-cultural e também no que se refere às crenças nacionais e à própria identidade nacional. Neste contexto, estes desígnios tendem a projectar-se directa ou indirectamente na condução da política exterior. Para o saudoso Embaixador José Calvet de Magalhães, cada nação organizada politicamente desenvolvia um conjunto de «decisões e acções» no seu «domínio externo», visando salvaguardar a especificidade dos seus interesses, sejam eles económicos, estratégicos, políticos, burocráticos, externos ou internos. Sendo certo que os EUA também o fazem, a diferença para os demais reside na ênfase posta no excepcionalismo enquanto núcleo fulcral da identidade nacional Americana. Existindo, portanto, uma ligação linear entre os princípios do conceito e o «enquadramento intelectual e cultural» que elabora e conduz a política externa dos EUA.
Desde já podemos apresentar duas correntes da visão excepcionalista que ao longo da História dos EUA exerceriam uma influência directa no modo como o país perseguiu os seus interesses externos. A primeira, na linha do sermão de John Winthrop, retrata os EUA como uma nação exemplar expressa em ideias como «cidade no cimo da colina» (city upon the hill), «isolacionismo» ou «anti-imperialismo». A segunda visão, com uma tendência mais dominante, considera que os EUA têm um zelo missionário com o mundo e encontra-se frequentemente representada em ideias como «destino manifesto» (manifest destiny), «líder do mundo livre» ou «internacionalismo». Apesar de existirem duas correntes interpretativas do conceito, três pontos centrais mantiveram-se consistentes ao longo da História norte-americana.
O primeiro ponto centra-se em torno da ideia de que os EUA são uma nação especial com um papel específico a desempenhar na História humana. São inúmeros os episódios que retratam os EUA como a terra prometida e o seu povo como o escolhido para levar a cabo uma ordenação divina. Este «síndrome excepcionalista», como David Ryan lhe chama, vai até aos primórdios da colonização. O Novo Mundo, como referido anteriormente, é visto como a terra virgem proporcionando a possibilidade de criar uma sociedade perfeita a nível político, social e religioso. Subjacente a estes princípios estaria sempre a mão invisível de Deus, que os conduziria sobre os perigos da corrupção e tentação até à almejada pureza espiritual.
O segundo ponto, que também foi mencionado anteriormente, destaca a separação do Novo Mundo dos perigos existentes na Ordem europeia. Para os Americanos, as monarquias europeias tinham um carácter explorativo procurando, essencialmente, satisfazer os seus interesses expansionistas. Como tal, os sistemas políticos eram invariavelmente corruptos, elaborados somente com o intuito de garantir o estatuto das elites tradicionais. Em contraste, o Novo Mundo revelava um comprometimento com a moralidade e igualdade na sua viagem para melhorar a Humanidade.
Por fim, o terceiro e último ponto parte do princípio que os EUA, ao contrário de todas as nações, não está destinado a passar pelas circunstâncias que determinam a ascensão e queda das potências no sistema internacional. O povo Americano suplantará todos os obstáculos escapando deste modo à «lei da História». As leis que determinam a queda e o eventual declínio das grandes potências são minimizadas por uma sociedade que se considera líder do progresso internacional. Os EUA, nas palavras de Benedict Anderson, consideravam-se uma verdadeira «comunidade imaginada», assente na excepcionalidade e na partilha de valores e princípios comuns.
Se associarmos a estes três pontos a firmeza na luta pela democracia wilsoniana, pela defesa do liberalismo económico e da paz democrática kantiana, teremos consolidado os principais pilares da política externa-norte americana.
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Isto não quer dizer que cada Presidente dilua, em virtude das suas convicções, compromissos ou acontecimentos sistémicos, todos estes pilares numa orientação imediata de política externa. Não têm necessariamente que estar todos referidos nas principais linhas de acção. Mas, garantidamente, fazem parte desta visão mais global e estarão presentes num momento ou noutro. Naturalmente que o peso conferido a cada um deles determinará a linha de acção futura da respectiva Administração.
Neste contexto, Biden apresentou algumas das suas principais ideias em política externa num artigo publicado, em abril de 2020, na Foreign Affairs com o título Why America Must Lead Again: Rescuing U.S. Foreign Policy After Trump.
Recuperando o zelo missionário excepcionalista, Biden vislumbra uma nova “liderança” global democrática dos EUA, ao mesmo tempo que deseja construir plataformas de normalização das relações com os aliados do ponto de vista bilateral e multilateral, numa tentativa de, segundo ele, garantir o triunfo da democracia e do liberalismo sobre o fascismo e a autocracia.
Para tal, pretende acabar com grande parte das barreiras comerciais levantadas por Trump abrindo caminho à delineação de acordos com vários parceiros, nomeadamente a União Europeia. Este percurso far-se-á através de um amplo domínio das tecnologias de futuro (5G e inteligência artificial). Há uma outra abordagem que salta no programa do Democrata. Denota uma atenção particular aos novos desafios globais (alterações climáticas, migrações, tecnologia, doenças infecciosas, autoritarismos, nacionalismos) e à forma como se deve efectuar a gestão dos problemas com as minorias.
A grande inversão, contudo, está na forma como encarra as potências concorrentes dos EUA. Ao contrário de Trump, sublinhando até um certo realismo político, reconhece que a principal ameaça à segurança nacional dos EUA é a Rússia e que a China, no âmbito da sua grande estratégia é, no presente momento, o principal concorrente económico.
Aliás, é aqui que apresenta a sua “política externa para a classe média” direccionada à potência asiática. O Presidente eleito defende que os norte-americanos devem ter todos meios ao dispor para alcançar o sucesso na economia global com uma política que ganhe o futuro à China ou a qualquer outro adversário geopolítico. Ou seja, reiterando o papel de potência hegemónica benevolente, os EUA têm que aumentar a sua competitividade externa e “unir o poderio económico das democracias em todo o mundo para conter as práticas económicas abusivas”. Por outro, subliminarmente, recupera ideias do pacifismo comercial liberal, associando a segurança económica à segurança nacional.
A última reflexão tem mais significado. É um “regresso ao futuro” transportando-nos para o período da Guerra-Fria. Numa lógica de confronto político-ideológico considera que a Rússia é, novamente, a grande ameaça aos EUA, à democracia liberal e ao mundo livre.
Resumindo, o mundo de Biden, será um mundo mais multilateral; menos proteccionista; mais atlanticista; ciente das responsabilidades globais e da sua história democrática; mais cooperante e defensor das instituições internacionais; que identifica a importância dos novos desafios tecnológicos; que reconhece o posicionamento da Rússia e da China, num sistema internacional onde as dinâmicas de poder estão a mudar, bem como a imperatividade em trabalhar o consenso bipartidário.
Mas, mais importante, é um mundo marcado por uma visão excepcionalista, liberal, messiânica, moralista, de uma nação que se considera distinta de todas as outras e cujo papel é liderar as democracias de todo o mundo.
Fica a sensação de que, por momentos, o tempo parou e que o pensamento excepcionalista de John Winthrop está a ser verbalizado por Joe Biden. Na verdade, está mesmo. Resta saber qual é a dimensão que o Presidente eleito lhe dará. Aqui reside a verdadeira complexidade do pensamento politico-ideológico orientador da política externa dos EUA. Tudo o resto é espuma.
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