Ilusões multipolares e declínio do dólar americano

As decisões políticas que visam acelerar a decadência do dólar e determinar sua substituição têm alguma chance de dar certo? Paralelos entre a moeda e o uso da língua ajudam nesta reflexão.

Declínio do dólar americano?

O tema do “declínio” das civilizações tem uma longa história. Em geral, é um dos principais vetores das narrativas reacionárias. No que diz respeito ao dólar, também é uma narrativa muito antiga que está sendo revivida e amplificada depois da invasão russa da Ucrânia. Não há necessidade de olhar para Moscou, Pequim ou Brasília para esse tipo de análise. 

Se o declínio dos Estados Unidos pode estar se acelerando devido à degradação constante de sua política interna, o declínio do dólar está longe de ser um fato consumado. Em 1990, a economia norte-americana representava 25% do PIB global. Em 2022, continua pesando… 25%. Estimativas do início dos anos 1990 sugeriam que, a esta altura, um país asiático deveria ter ultrapassado os EUA como o novo centro hegemônico do mundo. Naquela época, os “declinistas” previam que seria a vez do Japão e do iene tomarem o lugar dos Estados Unidos e do dólar. Mas, entre 1990 e 2022, enquanto o PIB do Japão cresceu 25%, o PIB dos Estados Unidos aumentou 118% (e o da França, 60%). Se olharmos para o crescimento de trabalhadores adultos, os Estados Unidos continuam a liderar: o Japão aumentou em 45% e os Estados Unidos em 60%. Em termos de riqueza produzida por hora de trabalho, a América cresceu em 63%, o Japão em 42% (França em 40%). 88% do comércio internacional envolve a moeda americana (31% em euros e apenas 7% em yuans chineses)”.

A Moeda como Língua

Chegamos, assim, à questão de saber se as decisões políticas que visam acelerar a decadência do dólar e determinar sua substituição têm chance de dar certo. Recentemente (em abril de 2023), a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou um projeto de lei que proíbe o uso da linguagem neutra em termos de gênero nas escolas da cidade. Mesmo que a lei corra o risco de ser julgada inconstitucional, vamos supor que ela seja promulgada. A questão é: essa lei terá algum efeito? Muito provavelmente a lei não terá nenhum impacto porque não há nada contra o que lutar. Isso porque as línguas não funcionam com base em decretos: “A língua não muda de fora para dentro, nem de cima para baixo: ela muda porque nós mudamos”1. Por que estamos a falar de língua? Porque a moeda flui e funciona como uma língua, como um habitus

A referência para esse debate é um artigo clássico de Charles P. Kindleberger no qual ele discutiu a relação entre língua e moeda para rebater as críticas ao dólar emitidas pela esquerda radical (em um artigo na Monthly Review) e a França gaullista (pelo economista Jacques Rueff)2. O caso da França é particularmente interessante, pois envolve tanto o papel do dólar quanto o da língua francesa. Para Kindleberger, a tentativa de manter o francês como língua internacional respondia a uma lógica de prestígio e, por isso, era duplamente ineficaz: porque o padrão dólar já parecia ser o mais economicamente eficiente e porque a tentativa soberana de manter o francês como língua oficial em instituições internacionais não tinha chance de sucesso: para um anglo-saxão, aprender francês não era uma necessidade, enquanto para os franceses era necessário aprender inglês. Mais ainda, o autor argumentava que há uma analogia entre “o dólar na economia internacional e o uso da língua inglesa nas instituições internacionais”. O inglês, diz Kindleberger, é “a moeda da comunicação internacional”. Nesse sentido, é “de alto interesse para os americanos e britânicos saber francês, alemão, italiano, espanhol (…). Mas a eficiência global é percebida quando todos os países aprendem a mesma segunda língua”. A segunda língua que consegue ser comum não é imperialista nem nacionalista, mas eficiente. O mesmo raciocínio vale para a moeda. Isso não é resultado de nenhuma decisão centralizada: “O poder do dólar e o poder do inglês” – argumenta Kindleberger – “representam la force des choses e não la force des hommes”: uma multiplicidade de pequenas decisões tomadas todos os dias. O dólar é amplamente utilizado porque é amplamente utilizado. Isso torna uma língua ou uma moeda líquida: todos confiam que serão compreendidos e que poderão repassar a moeda que concordaram em receber.

É esse mecanismo de autorreforço que define a moeda e explica por que hoje ninguém quer o peso na Argentina: porque ninguém o quer. O que os argentinos mais gostam de comprar são dólares americanos: segundo estimativas do Banco Central da Argentina, famílias argentinas e empresas não financeiras mantêm algo como US$ 260 bilhões em moeda americana (a maioria em contas bancárias no exterior). Enquanto isso, em meados de agosto de 2023, as reservas em dólares do Banco Central Argentino não atingiram 24 bilhões. A confiança foi quebrada pela repetição dos corralitos (sequestros de poupanças) realizados por governos de todas as orientações políticas. Ninguém sabe como reconstruí-la.

O papel e a importância do dólar (e do inglês) não tornam impossível — lembra Paul Krugman — que a Europa use o Euro e que na França se continue falando francês (embora nas universidades francesas o inglês seja cada vez mais falado)3. Talvez um dia o Euro ocupe um espaço maior, ou as pessoas comecem a usar o mandarim como uma segunda língua comum no mundo. Mas isso ainda não aconteceu e não será resultado de uma decisão centralizada. 

Como sabemos, as moedas têm dois lados. Mais que procurar por outra, os países do Sul deveriam apoiar o lado radicalmente democrático do dólar, esse que apoia a resistência ucraniana contra a agressão imperialista russo-chinesa.

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Giuseppe Cocco possui graduação em Sciences Politiques – Université de Paris 8 (1984), graduação em Scienze Politiche – Università degli Studi di Padova (1981), mestrado em Science Technologie et Société – Conservatoire National des Arts et Métiers (1988), mestrado em História Social – Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1986) e doutorado em História Social – Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) (1993). Atualmente, é professor titular da UFRJ.

[Uma primeira versão desse artigo saiu no site Tocqueville21: Dollar Hegemony and Multipolar Illusions, AUP, 12 de março de 2024.]

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  1. https://oglobo.globo.com/opiniao/eduardo-affonso/coluna/2023/04/os-falantes-sao-os-donos-da-lingua.ghtm ↩︎
  2. Charles P. Kindlberger, “The Politics of International Money and World Language”, Essays in International Finance, n. 61, Princeton University Agosto de 1967. ↩︎
  3. “Wonking Out: International Money Madness Strikes Again, The New York Times, 14 de abril de 2023. ↩︎

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