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Os “20%” de uma corte suprema e o sistema de freios e contrapesos
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por José Eduardo Faria
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Com o comportamento falastrão que o caracteriza, o presidente Jair Bolsonaro saudou de um modo peculiar a aprovação do segundo nome que indicou para o Supremo Tribunal Federal. Ele afirmou que ambos os seus designados agora representarão “20% dos interesses do Executivo”, podendo assim interferir no que “nós gostaríamos que fosse decidido e votado dentro da corte”.
Apesar de curta, a frase desmoralizou o novo indicado antes mesmo da posse, deixando claro que não foi escolhido por sua sabedoria jurídica e reputação ilibada, como exige a Constituição, mas por algo mais simples e temerário — aulicismo e subserviência. Que isenção, imparcialidade e neutralidade será possível esperar desse magistrado? O que ocorreu com o segundo reproduz o que aconteceu com o primeiro indicado. Como a imprensa noticiou, este, um opaco operador do direito, foi descrito por Bolsonaro como alguém que aceitou a condição de, após sua posse, sentar-se semanalmente com ele para “tomar tubaína” e ouvir orientações sobre como votar nos casos de interesse do governo.
Com a afirmação de que agora já tem 20% da mais alta corte do país, podendo “interferir” em suas decisões, Bolsonaro mais uma vez mostrou sua dificuldade de entender que o papel dos ministros do STF País não é de se curvar aos interesses do Executivo, mas de atuar como integrantes de um Poder autônomo, capaz de conter os abusos dos demais Poderes de modo que se equilibrem. Também evidenciou sua dificuldade de compreender que uma corte suprema tem a atribuição de promover o controle da constitucionalidade das leis, o que é decisivo para o bom funcionamento do regime democrático.
Em outras palavras, o presidente deixou clara sua incapacidade de assimilar o funcionamento do sistema de freios e contrapesos consagrado por Montesquieu (1689-1755), sob inspiração do pensamento liberal de John Locke (1632-1704), e que acabou influenciando os pensadores americanos na declaração de independência de seu país, em 1776, e na Constituição de 1787. De modo sintético, nesse sistema as normas gerais, abstratas e impessoais são editadas com exclusividade pelo Poder Legislativo e limitam o Poder Executivo. Este, por seu lado, somente pode agir por meio de atos especiais baseados nas normas gerais. Para impedir que Legislativo e Executivo exorbitem de suas competências e de seus limites, há o instituto da ação de controle da constitucionalidade das leis, cujo julgamento é atribuição do Poder Judiciário, que adquire assim uma função garantidora dos direitos fundamentais do Estado de Direito.
Na visão sempre estreita, desinformada e enviesada do presidente da República, a euforia com que afirmou que a partir de agora “tem 20% do STF” traz um subtexto tão perturbador quão perigoso. O que quis dizer, de fato, é que ele já aparelhou um quinto do mais importante tribunal brasileiro. Em termos práticos, isso significa que já estaria neutralizando a principal instituição judicial de controle da constitucionalidade e da legalidade do país.
Esse é o problema. Desde sua posse, o presidente vem corroendo lentamente a autonomia de órgãos de Estado encarregados de fiscalização e controle. Das dezenas de nomeações para cargos de chefia da Polícia Federal à indicação do chefe da Procuradoria-Geral da República, passando pela transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central, cada uma dessas inciativas e decisões tem base legal. Encaradas sistemicamente, porém, elas revelam uma progressiva erosão do sistema de freios e contrapesos. É o que alguns cientistas políticos chamam de autoritarismo furtivo ou de populismo iliberal — isto é, o efeito cumulativo de determinadas decisões tomadas com base na ordem legal que abrem caminho para a banalização do esvaziamento de garantias fundamentais, para a aprovação de medidas antidemocráticas, para o desrespeito às minorias e para a neutralização dos órgãos de controle.
Além disso, esse autoritarismo furtivo ou esse populismo iliberal vem abrindo caminho para dois outros problemas convergentes, porém não menos graves. O primeiro problema tem sido cada vez mais visto nos níveis intermediários das instituições judiciais e das Procuradorias de Justiça, em cujo âmbito proliferaram operadores jurídicos arrivistas que não se envergonham de rastejar em busca da atenção de um presidente autocrata, tentando a qualquer preço ascender à cúpula do Judiciário. O segundo problema está no risco de captura de um Poder institucional em decorrência da mobilização das bancadas parlamentares religiosas. Não é de hoje que elas descobriram a importância de uma corte suprema para tentar impor seus princípios de fé numa sociedade pluralista, por um lado, e assegurar proteção jurídica para seus interesses mais terrenos do que espirituais, por outro.
Ao defenderem o segundo nome indicado para o Supremo por Bolsonaro, alguns pastores chegaram a afirmar que, por ser “terrivelmente evangélico”, ele é tão importante para suas igrejas como entre 1995-2002 e 2003-2010 foram os nomes indicados pelos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, que eram alinhados ideologicamente aos seus respectivos partidos. Contudo, esses pastores fazem vistas grossas para o fato de que, segundo a Constituição, o Estado é laico. Também confundem naturais divergências programáticas em torno de políticas públicas, o que é absolutamente natural na democracia, com dogmas religiosos e fé, que são atributos privados e em cujo âmbito não há diálogo, mas crença, pontificação e monólogo, bem como ameaça de fogo eterno aos descrentes.
No momento atual, o debate político gira em torno da capacidade que o populismo iliberal ou o autoritarismo furtivo tem para levar a democracia à morte, por um lado, e da capacidade de resiliência dos regimes democráticos, por outro. Dos dois lados, há argumentos consistentes. Mas meu objetivo, neste artigo, não é avaliá-los. É apenas lembrar que no caso do STF os dois ministros indicados por Bolsonaro são jovens — e mesmo que o presidente não se reeleja, ambos ficarão no cargo durante décadas, o que, evidentemente, terá um preço. De que modo se comportarão? De que maneira, por meio de seus votos, impactarão as instituições?
Como a interpretação e a aplicação do direito envolve disputas interpretativas sobre conceitos jurídicos, que sempre são condicionadas por forças políticas, econômicas e sociais à procura de reconhecimento e de apoio jurídico para seus interesses, esse preço poderá resultar em insegurança e desordem jurídica. Entre outros motivos, porque uma corte com ministros despreparados tende a afetar negativamente a qualidade de debates doutrinários. A comprometer a efetividade de determinadas decisões judiciais numa sociedade complexa. E a dificultar a atualização de súmulas e jurisprudência constitucional.
Quem vive o mundo do direito, consciente de que ele não é lógico, mas um experimento contínuo, como dizia Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935), professor de Harvard e juiz da Suprema Corte, sabe que, quando há regressão democrática, sempre há o risco de retrocessos interpretativos da Constituição, das leis e dos princípios normativos.
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