Um clássico do bacharelismo liberal

Por Christian Lynch, um ensaio sobre o texto mais popular de toda a imensa produção intelectual de Rui Barbosa: a Oração aos Moços, sua profissão de fé como jurista, um clássico do bacharelismo liberal.

por Christian Edward Cyril Lynch

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1. O texto mais popular de toda a imensa produção intelectual de Rui Barbosa continua sendo sua profissão de fé como jurista, a Oração aos Moços. Sua origem é prosaica. A turma de bacharéis que colava grau no ano de 1920 na Faculdade de Direito de São Paulo convidou o então senador pela Bahia para seu paraninfo. Tratava-se de uma homenagem ao ex-aluno, que completava 50 anos de formado. Assim nasceu a Oração: como discurso de paraninfo. Alegando idade avançada e moléstia, Rui não se deslocou a São Paulo para comparecer à cerimônia, que teve lugar a 29 de março de 1921. O texto acabou lido pelo catedrático de direito romano, Reinaldo Porchat, que viria a ser o primeiro reitor da Universidade de São Paulo. O texto tornou-se instantaneamente um clássico. Diversas de suas passagens se tornaram bordões no ambiente forense. Até hoje é comum encontrar, reproduzidas em sentenças, petições, sustentações orais, ou mesmo estampada em escritórios de advocacia ou gabinetes de juízes, frases como: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”? Ou ainda: “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”? Ou esta: “Se o povo é analfabeto, só ignorantes estarão em termos de o governar”? Como explicar a popularidade desse discurso, que há quase um século permanece no panteão de verdadeiro evangelho dos estudantes de direito?

2. Como em todas as obras clássicas, pesaram diversas causas, entre as quais o contexto de sua produção, a excelência de seu conteúdo e sua fortuna crítica. Em 1920, aos setenta anos de idade, Rui Barbosa era uma personalidade consagrada. Senador da República, advogado, jornalista, ex-ministro de Estado, ele era considerado pela opinião pública o “maior brasileiro vivo”. Iniciado treze anos antes, por ocasião de sua participação como representante do Brasil na Segunda Conferência da Paz na Haia, seu processo de consagração atingira seu apogeu em agosto de 1918, quando o próprio regime republicano, de que Rui era virulento crítico, celebrou oficialmente seu “jubileu cívico”, isto é, seus cinquenta anos de atividade política. Foram três dias de festividades, um dos quais decretado feriado nacional.

3. Mas, para entender o sucesso da Oração, é preciso considerar também o estilo literário particular em que foi redigido. Não era a primeira vez que Rui se dirigia à mocidade. Em 1903 ele escrevera Palavras à juventude aos meninos de um colégio de Nova Friburgo, que ele visitara. Não obstante, salta aos olhos a diferença de estilo. Desde a Campanha Civilista, quando passara a se dirigir pessoalmente a audiências mais amplas, Rui percebera a familiaridade do público com o estilo oratório dos sermões e adotara o estilo evangelizador de um padre Vieira, que cruzava o registro do pregador e do pedagogo. Na Oração aos Moços, ele não era só o pedagogo; ele era o velho pai ou padrinho que, em tom de intimidade confessional, oferecia conselhos aos moços a partir da sua própria experiência. Falava da importância de ouvir o próprio coração e de estar preparado para uma vida dedicada ao amor, ao sacrifício, à justiça, à caridade; recomendava a oração e o trabalho; e pedia aos jovens que não trocassem o dia pela noite, continuando sempre a estudar. Enaltecia a profissão de juiz e enunciava regras de conduta para os magistrados: não contribuir para a morosidade processual; receber o advogados das partes; evitar o governismo; tratar igualmente o rico e o pobre; evitar o excesso de rigor; e, principalmente, duas regras de grande atualidade: não se meter em política e não ir atrás de popularidade.

4. Quanto ao conteúdo propriamente político, a Oração era atravessada por um intenso idealismo liberal democrático. Os moços deviam lutar sempre pela verdade do governo da lei: verdade eleitoral, verdade constitucional, verdade republicana, sempre incompatíveis com regimes autoritários e oligárquicos. Mas Rui também advertia contra o comunismo, lembrando que a igualdade não era dar a todos indistintamente (“filosofia da miséria”), mas a cada um na proporção de seus méritos. O patriotismo era a última lição: o bacharel em direito deveria zelar pela sorte do Brasil, ameaçado pelos imperialismos de todo o tipo. No seu entender, o Brasil só poderia ser salvo de sua corrupta oligarquia política pela ação de uma elite jurídica orientada por um espírito liberal e republicano na defesa da Constituição. Era esse o principal recado deixado por Rui, que explica em larga parte a popularidade do texto nos meios jurídicos até o dia de hoje, em que a ideologia do bacharelismo judiciarista atingiu seu apogeu entre nós.

5. De fato, o sucesso do texto se deveu igualmente à sua fortuna crítica. A oração foi instantaneamente interpretada pelos liberais como uma espécie de testamento do velho Rui às futuras gerações de bacharéis. O senador baiano lograra consolidar-se na imaginação dos liberais como um modelo de atuação para a mocidade: um jurista idealista, culto, destemido, solitário, incumbido pelo destino de defender a Justiça identificada com o Estado de direito democrático contra a corrupção identificada com politiqueiros conservadores, autoritários e oligárquicos. Para tanto, o bacharel liberal deveria travar uma luta sem trégua com a Constituição debaixo do braço, pela tribuna jornalística, forense e parlamentar. No idealismo cosmopolita de Rui beberiam as principais lideranças liberais e socialistas de tendência ideológica cosmopolita da Terceira República. Pensemos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com advogados como Levi Carneiro, Sobral Pinto e Raimundo Faoro; na União Democrática Nacional (UDN) de Aliomar Baleeiro, Afonso Arinos de Mello Franco, Bilac Pinto e Prado Kelly – mas também de Carlos Lacerda que, sem ser jurista, seria o principal êmulo de seu estilo combativo. Mas na herança de Rui beberiam socialistas críticos do personalismo do trabalhismo de origem getulista. Pensemos no Partido Socialista Brasileiro de João Mangabeira, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, mas também na ala do Partido Trabalhista Brasileiro de Alberto Pasqualini e Santiago Dantas. Todos eles se reconheceriam profundamente devedores do exemplo de Rui Barbosa. Nas décadas de 1970-1980, a pregação antiautoritária de Ulysses Guimarães, em ocasiões como a da apresentação de sua anticandidatura a presidente da República ou do encerramento da Constituinte de 1988, nada mais fariam do que emular a fórmula ruiana de combate aos regimes autocráticos.

6. Não admira, portanto, que o busto de Rui Barbosa goze solitariamente do direito de figurar solitariamente no edifício do Senado Federal, atrás da cadeira do presidente, como um anjo tutelar da democracia brasileira. Enquanto houver ideal liberal democrata nas escolas de direito e nos bancos parlamentares, haverá lugar para a Oração aos Moços, esse clássico do pensamento político e jurídico brasileiro.

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Rui Barbosa em sua biblioteca (Reprodução: Arquivo Nacional)

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