A degradação do debate público piora a democracia

"Numa democracia liberal, a mídia cumpre o fundamental papel de intermediação dos diferentes setores da sociedade. A imprensa é nossa ágora moderna. Como tal, demanda exigências mínimas de decoro." Para Mano Ferreira, "a declaração pública do colunista Helio Schwartsman, na Folha de S. Paulo, de que torce pela morte do presidente Jair Bolsonaro, cruzou uma nova fronteira na degradação do debate brasileiro" — e essa degradação, em última análise, piora a democracia.

por Mano Ferreira

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A declaração pública do colunista Helio Schwartsman, na Folha de S. Paulo, de que torce pela morte do presidente Jair Bolsonaro, cruzou uma nova fronteira na degradação do debate brasileiro. Em tempos normais, iria direto ao assunto. Hoje é imperioso afirmar que, mesmo sendo impertinente e contraprodutiva, a coluna tem direito de ser publicada. Se é verdade que certos usos da liberdade de expressão degradam o diálogo, é ainda mais verdadeiro que a liberdade de expressão é, antes disso, a premissa inegociável para que o diálogo público possa existir e, em consequência, consolide o ambiente democrático. Em outras palavras, toda argumentação deve ser permitida, mas nem toda argumentação convém.

De toda forma, não devemos tratar do assunto apontando dedos, mas refletindo de forma aberta sobre os rumos da nossa conversa pública. Em meio a uma pandemia com dezenas de milhares de vítimas, sob a desastrosa liderança de um chefe de Estado que construiu sua imagem em torno do culto a armas de fogo, a morte virou personagem assídua do vocabulário político. É fato que Bolsonaro tem sido um péssimo presidente. É fato que ele tem sido irresponsável na condução do enfrentamento à pandemia. É fato que essa irresponsabilidade leva à morte de milhares de pessoas. E também é fato que sua postura na presidência corrói nossas instituições e piora a qualidade da nossa democracia. Quando o luto pela perda de entes queridos não pode ser elaborado em paz, e diante de tantos fatos, é natural que aflorem sentimentos de revolta, frustração e ressentimento. Precisamos lidar com eles de forma adulta. Certamente o caminho para isso não é simplesmente fingir que não existam esses instintos perturbadores, mas talvez eles fossem expressos mais adequadamente por meio da arte.

Cemitério Parque Taruma, em Manaus (Michael Dantas/AFP)

A tarefa do jornalismo profissional é outra. Numa democracia liberal, a mídia cumpre o fundamental papel de intermediação dos diferentes setores da sociedade. A promoção do diálogo entre a diversidade é elemento essencial sem o qual a convivência em sociedade se inviabiliza. Através da imprensa, ampliamos para toda a sociedade o debate de políticas públicas sediado no Congresso. Mas para que o diálogo de qualidade seja realmente possível, há uma premissa essencial: os interlocutores devem ser tratados de forma igualmente digna. Em outras palavras, há um dever cidadão, para a participação política, de que sejamos capazes de filtrar nossos instintos primitivos na construção de conversas sobre nosso espaço comum. A imprensa é nossa ágora moderna. Como tal, demanda exigências mínimas de decoro. Por isso, mesmo que você deseje ver o fim do governo Jair Bolsonaro, como eu desejo, faço o apelo por uma reflexão.

Há quem trate a moderação de nossos instintos como uma espécie de hipocrisia. Não me incomodo com a acusação. Não sou candidato a Madre Teresa. Eu sei que a alma humana também guarda em si os instintos mais primitivos, pra citar um dos mais proeminentes neoaliados do bolsonarismo. No subsolo de nossa alma humana, todos nós temos raiva, ódio, rancor. Se você acha que o decoro para o diálogo é hipócrita, eu posso defender abertamente que nós precisamos mesmo de algumas doses de hipocrisia para que a vida em sociedade seja viável.

A questão realmente fundamental é: o que devemos fazer com tudo isso que nos habita, nos entregar à natureza vil ou cultivar virtudes que nos enobrecem? Em estado de crueza primitiva, produzimos guerras civis, e todas as mazelas que elas significam. Mas através da cultura — no mais nobre sentido de autodesenvolvimento das nossas habilidades — fomos capazes de construir democracias liberais, sociedades abertas e economias prósperas. Ironicamente, o Bolsonaro que o colunista deseja ver morto tem representado justamente, na política brasileira, a vocalização do culto aos nossos piores sentimentos, o chamado da tribo que nos leva ao conflito, à imposição, ao uso da força, ao desejo de eliminação de tudo que não gostamos.

Vargas Llosa, autor de ‘O Chamado da Tribo’ (Reprodução)

Mas vamos pensar juntos. Se o horror da pandemia é sobretudo a morte de milhares de brasileiros, faz sentido lidar com ela dando vazão racionalizada a ainda mais desejo por morte? Se você repudia os danos causados por Bolsonaro à nossa democracia, faz algum sentido achar que esses danos podem ser revertidos alimentando, repito, um desejo por morte?

Diria que uma resposta positiva a essas questões parte de um diagnóstico errado sobre como chegamos no fosso em que estamos. Como se Jair Bolsonaro fosse a encarnação de todos os nossos problemas e o próprio fosso em que caímos. Antes fosse. Seria mais fácil. Mas a verdade é que nós todos cavamos esse fosso, pouco a pouco, juntos. Tomado por uma polarização tribal, o debate público brasileiro já não vinha em sua melhor forma antes da eleição de 2018. Bolsonaro não foi um raio, que caiu de repente, mas um processo. A moralização da divergência de ideias, há tempos alocada no campo da diferença de caráter, é sintoma de que o narcisismo e a demanda por pertencimento a tribos há muito tem falado mais alto do que o desejo de reflexão e construção coletiva das soluções para os problemas que compartilhamos como povo.

Para a nossa democracia, mais importante do que o indivíduo Jair Bolsonaro é o fenômeno do bolsonarismo. O presidente foi eleito democraticamente. Isso significa que ele representa, sim, uma parcela expressiva da nossa comunidade política. Parcela que não pode simplesmente ser eliminada, e com a qual teremos de continuar convivendo. Não adianta torcer por sua morte. Isso só inviabiliza aquilo que mais precisamos: encontrar meios de construir os diálogos possíveis e, a partir disso, recuperar o peso de valores mais elevados que podem, sim, ser cultivados até pelo mais fanático bolsonarista, igualmente humano como todos nós.

Antes de ser mal interpretado, esclareço: representar uma parcela do povo não concede passe livre a ninguém no exercício do poder. A essência da democracia liberal repousa nas limitações impostas pelo sistema de freios e contrapesos. Há mecanismos institucionais para lidar com os abusos. Precisamos usá-los e, quando preciso, aperfeiçoá-los. Aplicar o devido processo legal na punição do criminoso, mas jamais cair na máxima do “bandido bom é bandido morto”.

Como escreveu Albert Camus, em passagem oportunamente destacada pelo amigo Gilberto Morbach: “Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo: é a de combatê-los, em nós mesmos e nos outros”.

O espírito da liberdade, da democracia e do pluralismo não cultiva a morte, mas a tolerância, a convivência, o amor à liberdade alheia.

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Albert Camus

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