por Mano Ferreira
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Junho de 2021. Quase 500 mil mortos pela pandemia da Covid-19. Milhões de desempregados. Uma geração inteira de jovens estudantes com mais de 1 ano letivo de defasagem educacional. Estes são alguns dos desafios reais e bastante concretos colocados ao país. Mas não são a pauta da conversa pública.
Faltando mais de 15 meses para as eleições presidenciais, as redes sociais debatem alucinadamente um segundo turno hipotético. Como se fosse amanhã. De um lado, o autoritário do desastre presente. Do outro, o líder do processo político de degradação que nos trouxe até onde estamos.
Releia esta frase quantas vezes achar necessário: não tratarei aqui do debate sobre (falsas) equivalências. Atenção: interpretar o oposto do que eu disse, conjecturando alguma razão oculta, não é sinal de agudeza superior, mas exatamente um sintoma da armadilha em que estamos metidos.
Provável em caso de inércia, o quadro deste segundo turno se torna profecia autorrealizável caso consiga monopolizar as atenções e dispersar debates substantivos sobre os imensos desafios do futuro. Esse é o esforço ativo dos polos opostos desse jogo, que se retroalimentam.
Na dinâmica que domina as redes, o desvio milimétrico da cartilha militante transforma o interlocutor em inimigo máximo da nação. Não deixa de ser curioso ver militantes políticos sistematicamente hostilizando eleitores. Ignoram que, numa democracia, voto não se condena: voto se conquista.
Por que, então, insistem nessa dinâmica violenta, sufocante para qualquer não militante que ousa dar uma opinião política? Porque, em função da maioria provisória capaz de levá-los ao segundo turno, não desejam conquistar votos, mas reféns. Não se trata, portanto, de um erro de leitura da realidade. É, sobretudo, um desserviço à construção democrática. E como sabemos, construir alternativas democráticas é cada vez mais urgente no Brasil.
Na contramão da necessidade, contudo, assistimos a cada vez mais radicalização. Atacam-se as condições para o diálogo entre quem pensa diferente. E sem diálogo entre quem discorda simplesmente não existe democracia. Nem política. Só resta guerra.
A democracia liberal é uma aposta em favor da razão contra uma persistente pulsão irracionalista que invade a esfera política. É assim desde o seu surgimento, sob inspiração do iluminismo, contra a teoria do poder divino dos reis.
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Com a consolidação da sociedade de massas e a disrupção tecnológica das redes sociais, os desafios de contenção do irracionalismo mudaram de contorno, mas não deixaram de existir. Da mamadeira de piroca ao fantasma da elite neoliberal globalista, as tonalidades de conspiracionismo se multiplicam.
Para se consolidar, teorias conspiratórias são alimentadas profissionalmente em prol de uma narrativa, geralmente com fins políticos partidários e interesses eleitorais. Nesse processo, se utilizam de pulsões irracionalistas para multiplicarem o seu alcance. Os usuários compartilham narrativas falsas sem verificação crítica quanto à validade do conteúdo, basicamente para reafirmarem o seu pertencimento a uma tribo.
A lógica da tribalização é impulsionada com a criação de um inimigo comum, depositário do ódio, que aumenta o engajamento. Formadas as tribos, a divergência política deixa de ser baseada em argumentos e passa a apelar puramente à lógica binária do pertencimento: ou você pertence à minha tribo ou é meu inimigo e deve ser exterminado. O sistema é mau, mas minha turma é legal.
Nessa radicalização, a clivagem política passa a transbordar da esfera pública, interferindo nos espaços de privacidade. Afinal, como namorar um fascista? Como manter amizade com o inimigo? Como acolher um comunista que deseja destruir a família?
Essa redução da subjetividade a uma posição política é também um ataque às bases filosóficas da democracia liberal. Na origem dessa concepção, a própria noção de esfera pública sujeita à deliberação coletiva mediada pela razão se constitui em oposição à esfera privada de autonomia pluralista, onde as diferentes preferências individuais por valores humanos convivem em tolerância.
Por outro lado, o embate entre tribos é próprio de um sistema de sociedade fechada, inconciliável com a lógica do diálogo democrático de sociedades abertas. Como decorrência dessa dinâmica, as tribos são hierarquizadas em castas da virtude. Minha tribo é pura, intocável e perfeita. O inferno são os outros.
Nesse caso, não importa o mérito do seu argumento, mas a que tribo você pertence. Articula-se, então, uma estratégia de contaminação pela proximidade. Se, segundo os meus próprios olhos, a sua tribo apresenta algum mínimo sinal de proximidade com uma outra que considero inimiga, você se torna automaticamente contaminado pelos pecados alheios.
Tal enquadramento coletivista sabota a própria noção de indivíduo, sem a qual simplesmente não há democracia liberal. Afinal, se você acha que um mínimo contato distante com algum personagem que você não gosta deve invalidar a presença de alguém no debate público, no fundo, o que você está defendendo é que nem todos podem ter voz, porque alguns tipos de pessoas são a encarnação do mal e não devem ter o direito de participar da esfera pública.
Nesse caso, você não defende a igualdade radical de condição humana trazida à modernidade através do conceito liberal de indivíduo, cujo projeto político de concretização é a própria democracia liberal. Você acha, pelo contrário, que alguns são mais humanos que outros – e direitos humanos, sabe como é, “só valem para humanos direitos”.
A demonização do adversário funciona como um apelo ao tribalismo divino, essencialmente antidemocrático. O alerta vale tanto para o antipetismo como para o antibolsonarismo. Quando você deixa de contrapor argumentos para reproduzir a lógica de ataques tribais contra grupos, você não apenas não defende a democracia como está atacando os seus fundamentos básicos.
Afinal, se a crítica a projetos antidemocráticos incorpora práticas antidemocráticas, o produto é uma contradição performativa que alimenta o adversário que desejava combater. Não é isso o que precisamos. O debate compromissado com o avanço democrático não pode abrir mão da razão, do argumento e do olhar voltado para os desafios reais que nos atravessam.
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