por Celina Alcântara Brod
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Esta é uma história trágica, triste e brutalmente real. Esta história tampouco é velha o suficiente para mitigar as vivacidades que a fazem contígua ao presente. Na verdade, o que vem a seguir é um relato sobre a trajetória de um contágio que corrompe a imaginação, uma espécie de vírus que se alastra sorrateiramente: o rótulo. Esta história começa tola e termina com a única possibilidade que faz justiça a sua brutalidade: um nó preso à garganta. Os fatos que compõem esta tragédia extrapolam os limites da compreensão e desafiam nosso próprio senso de humanidade. Nada do que ficou registrado foi inventado, tampouco aumentado.
O início desta História de h maiúsculo, pelo menos o início que será dado aqui, é tolo porque começa com uma palavra de três sílabas: ba-ra-ta. Quando? 1994. Onde? O pequeno país africano Ruanda, cenário de um ódio fabricado, em que as percepções comuns e os sentimentos morais foram completamente envenenados, neste caso por uma palavra: “inyenzi”; barata.
Foi com esta palavra que a tolerância e o respeito mútuo, já precário entre os povos tutsis e hutus, foi cruelmente dilacerado.
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Diferente do clássico conto de Kafka, A Metamorfose, em que o caixeiro viajante Gregório se descobre uma barata completa ao acordar, a metamorfose dos tutsis, a transformação de homens, mulheres e crianças inocentes em baratas, ocorreu gradativa e meticulosamente. As abstrações desumanizadoras, transmitidas pelo rádio, foram ganhando forma, cor e vida em mentes ressentidas. Insultos repetidos até a exaustão fabricaram nos ruandeses hutus uma imaginação hostil, um medo público e uma paranoia compartilhada de que seus vizinhos, colegas de trabalho, alunos e amigos tutsis eram, na verdade, seres indesejáveis e uma constante ameaça.
Sam Keen, autor da obra Faces of the Enemy, insiste que, antes de pegarmos em armas e iniciarmos qualquer guerra, algum mal é idealizado e criado em nossas mentes — o que ele chama de metáfora do inimigo. Aranhas, ratos, porcos ou rostos demoníacos concorrem a tarefa de alimentar uma vil intencionada fantasia. Em Ruanda, a repugnante barata foi a imagem e a palavra escolhida.
Através de consecutivas propagandas e declarações na popular rádio RTLM (Radio-Télévision Libre des Milles Collines), junto com o jornal extremista Kangura — ambas mídias financiadas por facções extremistas Hutu — a face do inimigo foi maquiavelicamente forjada. A imaginação da maioria hutus, já entrincheirada em um passado de servidão durante a colonização belga de domínio político tutsi, aliada à sua aborígene identificação de clã, passou a conceber a minoria tutsis como insetos a serem eliminados. Uma tragédia que foi corajosamente reconstituída na impactante obra do jornalista Philip Gourevitch, Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias.
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Tutsis e hutus, dois povos que muito embora possuíssem diferenças fenotípicas e um ontem repleto de desigualdades sociais e econômicas, haviam aprendido a ressignificar memórias e a se reconhecerem habitantes de um mesmo mundo. Mas cada frase vociferada no rádio, motivada por poder e rancor recalcado, convencia hutus de que seus vizinhos tutsis, as repulsivas baratas, um dia iriam atacá-los. A cada dia, o inseto na imaginação dos hutus tornava-se mais nítido, mais perigoso, mais inimigo. No dia 6 de abril de 1994, um avião com o Presidente Juvénal Habyarimana e membros do governo hutu foi abatido. O atentado serviu de estopim para um dos massacres mais violentos e selvagens da história. Com o ódio implementado e a metamorfose completa, a mensagem das mídias após o atentado foi implacável: tutsis eram culpados, tutsis eram inimigos de Ruanda.
Milícias do “Hutu Power” junto com civis hutus assassinaram brutalmente seus conterrâneos tutsis, bem como os hutus moderados, aqueles que haviam concordado com o acordo de paz Arusha assinando em 1993. As propagandas virulentas no rádio foram o combustível para o genocídio. Mortes brutais com facões, uma violência sexual sem precedentes, lares invadidos, nem as crianças foram poupadas. Foram aproximadamente 800,000,00 mortes, quase 70% da população tutsi dizimada. Em um frenesi dionisíaco, hutus esqueceram não somente os laços comunitários como também os familiares, pois assassinaram até mesmo integrantes da mesma família. Se existe uma definição para carnificina, ela reside no passado recente de Ruanda.
Foi por ondas de rádio que a retórica do ódio se alastrou pela capital e vilarejos. Com a maioria dos ruandeses sem saber ler ou escrever, o rádio servia como principal veículo de comunicação. A mídia do ódio foi uma peça chave na incitação da matança, o rádio foi usado como arma de amplo alcance. Para Roméo Allain Dallaire, o comandante canadense da Força de Paz das Nações Unidas, encarregado da missão de pacificar os embates, “a imagem aterrorizante dos assassinos com um facão em uma mão e um rádio na outra nunca o deixa”. Se por um lado a mídia doméstica proporcionou a matança, por outro, a falta de interesse da mídia internacional não ajudou a estancá-la.
Agora, o que explica que pessoas que nunca haviam feito mal a ninguém assassinassem seus vizinhos? Como é possível que tantos tenham sido capazes de agir de forma desumana e ainda sim conviverem consigo mesmos? Como alguém pode violar seus próprios princípios morais sem perder o autorrespeito? Parte da resposta para este preocupante paradoxo está na força do rótulo.
Uma linguagem desumanizadora pode infectar o corpo, a mente e transformar qualquer vestígio de sentimento empático em hospedeiro do ódio. Atribuir uma metáfora simbólica ameaçadora, peçonhenta ou depreciativa é o que alicia cognitivamente e emocionalmente as pessoas a excluírem outras do círculo de moralidade. O rótulo é capaz de aniquilar a humanidade do outro, inibir nossa imaginação de antecipar as reais consequências de nossos atos, esvanecer nossas auto sanções, assim como quaisquer vestígios de culpa e remorso.
É justamente estas linhas inimigas imaginárias, criadas pela combinação entre retórica e imagem, que podem mais tarde puxar o gatilho irreversível do mal brutal. Isso porque o rótulo desumanizador, a metáfora do inimigo, cria uma realidade duplicada — isto é, uma imaginação fendida que reduz determinado grupo a uma categoria de sub-humanos, encarnações do mal, que então passam a ser vistos como merecedores de castigo, punição e repulsa.
No genocídio de Ruanda, grande parte dos assassinos não eram indivíduos que nunca haviam aderido a princípios morais, mas indivíduos que desvincularam a moralidade de suas atitudes violentas, conseguindo contornar os mecanismos que os levariam a sentir remorso pela crueldade que estavam cometendo. É nesta parte que entra a contribuição venenosa do rótulo. Uma das manobras psicológicas que possibilita a transgressão, sem que o sujeito sofra as autossanções, que naturalmente sofreria pelos princípios morais adotados ao longo da vida, está na forma como ele concebe este “outro”. Se este “outro” representa um mal ontológico, logo, aquele que o detém sentirá orgulho, não remorso. No caso de Ruanda, os hutus não assassinavam friamente seres humanos, estavam todos engajados no extermínio necessário de “baratas”.
Albert Bandura, psicólogo canadense, denominou tal fenômeno de desengajamento moral. Bandura mostra que a violação do certo e errado, sem a perda do autorrespeito, pode ser alcançada através de um desligamento moral seletivo. Isso significa que o mesmo ruandês hutu que brutalmente assassinou tutsis pode ser um pai amoroso. Bandura relata o exemplo do comandante nazista Amon Goeth que, enquanto escrevia uma carta ao pai, cheia de compaixão e carinho, assassinava friamente judeus nos campos nazistas. É justamente porque a moralidade é nestes casos suspensa que indivíduos conseguem cometer atrocidades e ainda conviverem consigo mesmos.
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Os mecanismos para driblar a autocondenação vão desde santificar a ação por nobres propósitos ideológicos, políticos e sociais a eufemismos: uma linguagem que produz uma névoa semântica para esterilizar os atos violentos e contornar a culpabilidade. Também entram como higienização da culpa a difusão e deslocamento da responsabilidade, comparar a ação violenta com um mal maior, minimização das consequências e demonização das vítimas. Aqueles que praticam o mal se veem como vítimas que foram forçadas a agir e culpam as vítimas reais por trazerem a desgraça sob si mesmas.
Para a plena efetivação do desengajamento moral, a força do rótulo na imaginação das pessoas serve de respaldo, na medida em que elas seletivamente despem a moralidade de suas ações cruéis quando se trata dos indivíduos estereotipados. A linguagem, portanto, distancia o agressor de suas vítimas, tornando-as meras coisas. Todos estes são mecanismos de autoconvencimento de que fomos guiados por nossas próprias decisões e que possuímos razões suficientes para tal.
A triste e ainda recente história de Ruanda mostra a força da interferência que os meios de comunicação possuem para manipular tanto os sentimentos como a imaginação ao massificarem uma linguagem desumanizadora. Dizer isso não absolve a culpa dos que praticam a violência pois, embora a externalidade exerça sua força, não somos apenas os efeitos de causas — somos também a causa de inúmeros efeitos. Assim como reagimos ao mundo a nossa volta, a imaginação é livre para criar e influenciar o mundo.
Por isso, estar inserido no universo simbólico das redes sociais, onde nossa agência transcende fronteiras e podemos difundir informações e visões morais para além da proximidade física, é preciso pensar: estamos agindo a serviço do desengajamento moral ou denunciando sua corrosiva prática? Será que a linguagem e imagem que espelhamos produz indesejáveis? Do que adianta progrediremos moralmente “no papel” se nessa vida simbólica e cibernética estivermos ecoando o ódio e compartilhando mentiras? Nosso mal-estar da política, está, e não é de hoje, nessa constante fabricação de um inimigo sem rosto.
Não sabemos até que ponto a linguagem afeta o pensamento, mas sabemos o suficiente para saber que a linguagem aliada a determinadas paixões e circunstâncias influenciam ações. As palavras são apenas os signos de nossas motivações virtuosas ou viciosas; onde está a moralidade, se não na motivação daqueles que as proferem? Não é a palavra “barata” que tem culpa, e sim a motivação e propósito de quem a usa.
Clarice Lispector, em uma de suas obras mais impactantes — Paixão segundo G.H — enxergou em uma barata esmagada na porta de um armário toda nossa existência humana, e ali, projetada na barata, a imagem de humanidade que a escritora fornecia não fazia distinção acidental entre etnia, cor, classe ou religião. A personagem, após matar e degustar o líquido branco da barata encontrou epifanicamente o denominador comum da multiplicidade: nossa vasta e irremediável consciência diante da incomensurabilidade da existência.
Enquanto Clarice encontrou o mundo inteiro em uma barata, extremistas hutus encontraram no mesmo inseto um meio de assassinar meio mundo.
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