por Sergio Duarte
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Transformarão suas espadas em arados,
e suas lanças em foices; nenhuma nação
se erguerá contra outras, e não mais
aprenderão as artes da guerra.
Isaías 2:3 — 4.
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Introdução – O despertar do multilateralismo
A história da humanidade registra inúmeros episódios de dissensões e disputas entre povos em diferentes regiões do mundo que muitas vezes causaram conflitos prolongados e sangrentos. Mesmo assim, encontram-se na Antiguidade alguns exemplos de ensinamentos voltados para a solução pacífica de controvérsias, como na epígrafe deste artigo. Apesar do tom otimista das palavras do profeta Isaías, no século VIII A.C.,[1] a ideia de paz e conciliação de interesses divergentes por meio de negociação tardou a ganhar vigência. A partir de meados da Idade Média, porém, com o surgimento e posterior consolidação dos estados nacionais no Ocidente, aos poucos se generalizou a prática de buscar acordos regionais ou multilaterais para estabelecimento de instituições e normas de convivência aceitas por todos e capazes de trazer paz e segurança, ainda que nem sempre respeitadas ou duradouras.
No oeste da Europa, uma série intermitente de guerras religiosas e dinásticas entre 1337 e 1453, conhecida em seu conjunto como a “Guerra dos Cem Anos” foi seguida pela eclosão de novas e prolongadas hostilidades, principalmente no interior do Sacro Império Romano Germânico[2] e suas dependências, que logo alcançaram outras partes da Europa e nações em formação como a França, a Holanda, a Suíça e a Espanha. Os tratados que constituem a Paz da Vestfália[3], de 1648, puseram termo a esses conflitos e lançaram as bases dos modernos Estados-nação. Na mesma época, conquistadores e bandeirantes consolidavam brutalmente o domínio da metade setentrional do recém-descoberto continente americano e enquanto pioneiros apoiados por forças armadas dizimavam no norte as populações indígenas em seu caminho até o oceano Pacífico. Na Europa, como nas Américas, a organização militar e a superioridade das armas determinaram a vitória nos campos de batalha e a ocupação do território, posteriormente regulamentada por normas adotadas por negociação ou impostas aos vencidos.
As novas nações-estado europeias foram gradualmente aperfeiçoando a regulamentação das cada vez mais complexas relações entre si. O direito internacional ia sendo continuamente formulado e adaptado a fim de levar em conta as mudanças das realidades estratégicas e as percepções cambiantes de segurança. Estadistas e diplomatas tratavam de estabelecer instrumentos destinados a preservar a paz e o novo status quo.
Em 1761 o Abade St. Pierre lançou um “projeto para a paz perpétua na Europa” e Jean-Jacques Rousseau igualmente se ocupou do assunto em suas obras inovadoras. Immanuel Kant, em 1795,[4] propôs as bases filosóficas de um conjunto de medidas para assegurar a manutenção da paz. Em sua opinião, a humanidade tem o dever de perseguir o ideal de uma comunidade universal de seres humanos sob o império da lei. Esses autores compartilhavam a convicção de que a paz e segurança seriam obtidas e mantidas mediante o entendimento entre os governantes para evitar a guerra e organizar a defesa contra inimigos extracontinentais comuns. Os governantes da época nem sempre seguiram à risca as propostas desses filósofos, mas a ideia de segurança coletiva por meio do equilíbrio de poder e definição de padrões aceitáveis de conduta ganhava apoio crescente.
A paz duradoura, porém, continuou esquiva. No continente americano, guerras de independência resultaram na emancipação das antigas colônias e na sujeição das populações autóctones. A busca de expansão territorial e riquezas por parte dos monarcas europeus deflagrou a conquista armada e a colonização de vastas áreas da África e partes do Oriente
Entre 1803 e 1815 os exércitos de Napoleão redesenharam o mapa da Europa e após sua derrota em Waterloo o Congresso de Viena[5] reorganizou a estrutura política do continente, substituindo o Sacro Império por uma confederação dominada pela Prússia e apoiada pela Áustria-Hungria. Inevitavelmente, novo conflito europeu eclodiu em 1870-71, desta vez entre a Alemanha prestes a unificar-se[6] e a França pós-napoleônica.
As duas Conferências da Haia, em 1899 e 1907,[7] procuraram fortalecer a segurança internacional por meio do estabelecimento de certo número de tratados e convenções sobre diversos aspectos do direito dos conflitos, inclusive a proteção a combatentes e vítimas civis. Embora não tenha sido possível chegar a acordos sobre limitação e redução geral de armamentos, essas conferências consolidaram o princípio da igualdade soberana das nações, eloquentemente defendido por Ruy Barbosa e acolheram princípios humanitários expressos em diversos acordos. Apesar desses avanços, a maioria dos historiadores parece concordar que o crescimento do militarismo, a exacerbação do nacionalismo e de rivalidades na Europa ocidental foram fatores preponderantes da Primeira Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918.
Ao término desse sangrento conflito,[8] no qual pereceram mais de 30 milhões de pessoas, entre militares e civis e que gerou grandes massas de populações deslocadas, a comunidade internacional esboçou a primeira tentativa de estabelecer um organismo internacional permanente dedicado à manutenção da paz e segurança: a Liga das Nações.[9]
A nova e pioneira organização não conseguiu cumprir suas elevadas finalidades. Os ressentimentos e feridas decorrentes da guerra não estavam suficientemente curados e em breve o mundo se viu envolvido em nova e mais ampla conflagração, que outra vez devastou a Europa e atingiu grande parte do restante do mundo com armas mais poderosas, como submarinos, bombardeios aéreos de cidades e a introdução dos primeiros foguetes transportando explosivos. O custo em vidas humanas foi ainda maior: estima-se que morreram cerca de 75 milhões de pessoas, dois terços dos quais civis, tanto em consequência direta das hostilidades quanto por genocídio, enfermidades ou privações.
O conflito se iniciou em 1939 e terminou em 1945 com a vitória das tropas aliadas contra a Alemanha nazista na Europa e contra o império japonês no Oriente. Das cinzas da Segunda Guerra Mundial surgiu nova tentativa de estabelecer normas de conduta internacional e evitar a repetição dos sangrentos confrontos militares: a Organização das Nações Unidas, que dura até os dias de hoje.
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A Carta das Nações Unidas
No dia 26 de junho de 1945, logo após o final da Segunda Guerra Mundial na Europa, a Carta das Nações Unidas foi assinada na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, pelos representantes de 50 países, dos quais 20 latino-americanos, inclusive o Brasil[10] e entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo ano.[11] Ao longo dos 77 anos de sua vigência, a Carta foi assinada e ratificada por todos os países que compõem a comunidade internacional.[12] Todos os países do mundo, no total de 193, são hoje membros da ONU. Santa Sé (Vaticano) e Palestina são reconhecidas como observadoras.
Esse documento permanece relevante e atual no mundo de hoje. É importante recordar aqui suas premissas básicas, registradas no Preâmbulo: a decisão dos “povos das Nações Unidas” de poupar as gerações seguintes do flagelo da guerra, de reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, de estabelecer condições nas quais a justiça e o respeito às obrigações contraídas em tratados e outras fontes de direito internacional sejam mantidas, e de promover o progresso e melhores padrões de vida em um ambiente de ampla liberdade. A fim de tornar realidade esses objetivos, os governos ali representados, assim como os que vieram posteriormente a unir-se aos 51[13] signatários originais, se comprometem a praticar a tolerância e viver em paz uns com os outros, juntar seus esforços para manter a paz e segurança internacionais, assegurar que a força armada não será usada, exceto no interesse comum, e utilizar os mecanismos internacionais para a promoção do progresso econômico e social de todos.
A Carta prossegue enumerando os propósitos e princípios da organização das Nações Unidas (ONU. Entre esses propósitos estão a manutenção da paz e segurança mediante a prevenção e eliminação de atos de agressão e ameaças à paz, o desenvolvimento de relações amistosas baseadas no princípio de direitos iguais e de autodeterminação dos povos, a cooperação para a solução do problemas internacionais de cunho econômico, social, cultural e humanitário, a promoção dos direitos humanos e liberdades fundamentais sem discriminações e a aspiração de tornar-se o centro para harmonizar a ação das nações em busca desses objetivos comuns.
Os princípios essenciais segundo os quais os membros das Nações Unidas concordam em agir são: a observância de boa-fé das obrigações contidas na Carta, a solução das controvérsias por meios pacíficos; e a abstenção do uso ou ameaça de uso da força contra a integridade e a independência política de outros países.
Os órgãos principais são a Assembleia Geral, composta por todos os membros da organização; o Conselho de Segurança, principal órgão encarregado da manutenção da paz e segurança internacionais, que possui 15 membros, dos quais cinco são permanentes e os demais renováveis a intervalos de dois anos; o Conselho de Tutela, criado para supervisionar o processo de descolonização ocorrido principalmente nas décadas de 1960 a 1980; o Conselho Econômico e Social, composto por 54 membros com mandato de três anos; a Corte Internacional de Justiça, que tem 15 membros eleitos pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança; e o Secretariado, chefiado pelo Secretário Geral, com mandato de cinco anos renovável por mais cinco, além de órgãos subsidiários e agências especializadas para o tratamento de temas específicos.[14]
Embora nem sempre de maneira satisfatória para todos, pode-se afirmar que ao longo de sua existência as Nações Unidas têm sido razoavelmente bem-sucedidas no cumprimento dos objetivos propostos, especialmente no que se refere à manutenção da paz e segurança internacionais e à promoção do progresso econômico, social e cultural da humanidade, além de proporcionar assistência humanitária em emergências.
As despesas regulares da ONU são alimentadas pelas contribuições dos estados-membros segundo uma escala periodicamente acordada entre eles. Para 2021 o total do orçamento regular aprovado foi de 3,231 bilhões de dólares. Grande parte das atividades da organização é financiada por contribuições específicas para programas escolhidos pelos doadores, inclusive as operações de paz, auxílio humanitário e muitas outras. As agências especializadas e outros órgãos têm seus próprios orçamentos.
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A Guerra Fria e as Nações Unidas
O período entre o fim da Segunda Guerra e a dissolução da União Soviética em 1989 ficou conhecido com “Guerra Fria” — um enfrentamento que dividiu o mundo. De um lado, a ideologia comunista baseada na primazia do estado sobre os indivíduos, adotada pela URSS e alguns países da Europa oriental sob sua influência e direção, e de outro o ideário democrático de livre iniciativa e liberdade individual defendido pelos Estados Unidos e países europeus ocidentais.
O antagonismo entre essas duas vertentes ideológicas nas Nações Unidas resultou em graves dificuldades para a construção de acordos que permitissem à organização levar adiante os ideais que haviam presidido sua fundação. Ainda assim, não ocorreram conflagrações armadas entre as potências que emergiram da Segunda Guerra Mundial, especialmente os membros permanentes do Conselho de Segurança (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia), que haviam sido os principais vencedores da guerra. Os dois blocos militares rivais — a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia, respectivamente sob a égide norte-americana e soviética — atravessaram todo o período sem que houvesse enfrentamento armado direto entre si. No entanto, inúmeros conflitos eclodiram em várias partes do mundo, frequentemente com participação e às vezes por instigação dessas potências, especialmente entre países em desenvolvimento, onde aquelas buscam estabelecer e/ou consolidar sua influência política e econômica.
Durante o período da Guerra Fria o funcionamento do foro mundial de debates e de busca de conciliação entre adversários potenciais proporcionado pela existência das Nações Unidas foi fundamental para evitar a eclosão de um novo conflito. No Conselho de Segurança, onde os cinco membros permanentes dispõem de poder de veto[15], assim como na Assembleia Geral, cujas recomendações, tomadas por maioria de votos, não são vinculantes, as acusações e recriminações mútuas entre as duas principais potências alimentavam um instável equilíbrio, situação que guardadas as devidas proporções ainda se observa nos dias de hoje, ainda que com menor intensidade. Embora em grande parte não tenham sido capazes de realizar progressos substanciais no sentido de uma paz construtiva e de relações mais equânimes entre os países, pode-se afirmar que o Conselho e a Assembleia Geral pelo menos têm contribuído efetivamente para aplainar divergências e evitar uma nova guerra entre os dois campos rivais.
Para frustração dos que confiam nas soluções multilaterais, graves problemas internacionais, como a desigualdade social e econômica, a proteção do meio ambiente, o terrorismo sectário, a competição armamentista, entre outros, ainda não são atendidos de maneira adequada pelas instituições existentes. Apesar de importantes avanços em diversos campos, o aumento do nacionalismo mal orientado, a tendência ao isolacionismo e a excessiva dependência no poderio militar trazem o risco de que a definição e prática do direito internacional se venham a se tornar cada vez mais dependentes das decisões dos poderosos na busca de segurança para si próprios.
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O advento da arma nuclear
Em 6 e 9 de agosto de 1945 uma nova e temível arma foi usada para bombardear as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, matando instantaneamente mais de 120 mil homens, mulheres e crianças e muitas mais nos meses e anos seguintes devido aos efeitos da radiação atômica. A guerra na Europa já havia chegado ao fim em maio e o conflito na Ásia terminou em 2 de setembro com a rendição do Japão.[16]
A Carta das Nações Unidas não menciona o armamento nuclear, cujo advento somente foi conhecido pelo mundo em 26 de julho de 1945 com o ensaio denominado Trinity, realizado pelos Estados Unidos em uma região deserta do estado do Novo México. Conforme mencionado acima, a Carta foi adotada cerca de três semanas antes. A primeira Sessão da Assembleia Geral da ONU, reunida em janeiro de 1946, dedicou-se ao assunto em caráter de urgência. A Resolução número 1, adotada por unanimidade, criou um comissão para “tratar dos problemas decorrentes da descoberta da energia atômica”, a qual deveria fazer “propostas específicas” para a eliminação dessas armas.
Lamentavelmente, a animosidade, desconfiança e profundo desacordo entre os Estados Unidos e a União Soviética, assim como as ambições de outras potências, impediram qualquer progresso nessa direção. A URSS adquiriu a arma nuclear em 1949, o Reino Unido em 1952, a França em 1960 e a China em 1964. O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que entrou em vigor em 1970, reconhece essas cinco potências como possuidoras de armamento nuclear e proíbe todos os demais signatários de vir a obtê-las. Posteriormente, outros quatro países não membros do TNP igualmente se dotaram de armas nucleares: a Índia (1974), o Paquistão (1998) e a Coreia do Norte (2006), além de Israel.[17] O Artigo VI do TNP registra o compromisso de todos os membros do Tratado de “levar adiante negociações sobre a cessação da corrida armamentista nuclear e desarmamento nuclear”, mas até hoje, 52 anos após a adoção do TNP, os possuidores dessas armas não demonstram disposição para vir a desfazer-se delas.
Por esse motivo, um grupo de países, entre o quais o Brasil, promoveu em 2015 a negociação, no âmbito das Nações Unidas, de um tratado para proibir e eliminar as armas nucleares. O Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) foi adotado por 122 países em julho de 2017. Até o momento 86 estados o assinaram e 55 o ratificaram. Apesar da intensa campanha movida pelos possuidores contra o instrumento, o TPAN entrou em vigor em janeiro de 2021.
No panorama de competição em busca de superioridade militar, indefinição e instabilidade que caracterizou a Guerra Fria e ainda perdura nos tempos correntes, o mundo se viu várias vezes diante da possibilidade de uma catástrofe nuclear.[18] O ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos, William Perry, narra em seu livro My Journey at the Nuclear Brink a experiência de lidar com a confrontação nuclear entre as duas principais potências e chega à conclusão de que essas armas colocam em perigo a segurança mundial, em vez de reforçá-la.[19]
Não obstante, é preciso assinalar, como pontos positivos, a negociação e adoção de vários tratados e outros instrumentos no campo do desarmamento e principalmente no de controle de armamentos. Merecem menção, entre outros, a criação de cinco zonas livres de armas nucleares que abarcam 114 países, inclusive toda a América Latina e Caribe (1967); a proibição de colocação de armas nucleares em órbita terrestre e na Lua e corpos celestes (1967); O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (1970); as Convenções de Proibição e Destruição de armas bacteriológicas (1972) e de armas químicas (1996); o Tratado de Proibição de Ensaios Nucleares em todos os ambientes (1996) e o Tratado de Proibição de Armas Nucleares (2017) acima mencionado, assim como diversos acordos entre as duas principais potências.
Durante e após a Guerra Fria, os Estados Unidos e a URSS (posteriormente a Rússia) negociaram e adotaram uma série de acordos bilaterais de controle de armamentos, o mais recente dos quais, assinado em 2009, estabeleceu limites para as ogivas nucleares e vetores de ambos os lados. Esse tratado, conhecido pela sigla Novo START, foi recentemente prorrogado por cinco anos, durante os quais se espera que ambas as potências concordem em reduzir ainda mais seus arsenais e eventualmente cheguem a eliminá-los. Embora negociados fora do âmbito da ONU, esses esforços se inserem na busca de equilíbrio estratégico em níveis decrescentes de armamento e no objetivo do desarmamento nuclear, preconizados em inúmeras resoluções e decisões das Nações Unidas. Em junho de 2021 os presidentes Vladimir Putin e Joseph Biden emitiram uma declaração conjunta de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deve ocorrer”, comprometendo-se a trabalhar em busca de novos acordos de redução de armamentos.
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As Nações Unidas e a segurança internacional
A configuração bipolar do mundo herdada da Segunda Guerra Mundial evoluiu aos poucos para um sistema internacional consideravelmente mais complexo. Centros e sub-centros regionais de poder emergiram, ao passo que as relações entre as principais potências experimentaram importantes modificações. Nesse novo e multifacetado panorama internacional, interesses conflitantes resultam em episódios localizados de violência, nos quais potências externas frequentemente intervêm, alimentando tensões e decorrentes de aspirações frustradas e aumento o perigo de escalada para fricções mais amplas.
Existe atualmente um descompasso entre os órgãos e instituições criados para estabelecer a ordem mundial após 1945 e a distribuição real de poder no mundo. Os estados-membros das Nações Unidas concordam na necessidade de reformas estruturais, especialmente a do Conselho de Segurança, a fim de refletir as relações atuais de poder, mas até o momento não tem sido possível avançar nesse particular. Contudo, alguns mecanismos inovadores têm sido instituídos para tratar de questões como as desigualdades econômicas e sociais e as discriminações de raça, gênero e crença, assim como de delitos transnacionais e mudança do clima. As Nações Unidas têm desempenhado também importante papel na definição, codificação e expansão da legislação internacional em vários campos, inclusive no que se refere ao direito do mar e do espaço exterior, comunicações, direitos humanos e outros domínios.
Todos os assuntos ventilados neste ensaio têm relação direta com a segurança de indivíduos e comunidades, tanto locais quanto nacionais. De fato, a conquista e manutenção de segurança para seus cidadãos contra ameaças externas é um dever primordial dos governos nacionais. No mundo globalizado do século 21, o conceito de segurança evoluiu para abarcar muitas novas dimensões além da guerra e da paz. A existência de armas nucleares e o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas resultaram em uma ameaça permanente à de segurança de todos os países, inclusive os atuais nove países militarmente nucleares, que relutam em desfazer-se de seus arsenais. Três conferências internacionais de cientistas e representantes de governos e da sociedade civil em 2013 e 2014 concluíram que as consequências ambientais e humanas de detonações nucleares serão de ampla escala e potencialmente irreversíveis, não se restringirão a fronteiras nacionais e poderão gerar danos globais. Além disso, nenhum país ou grupo de países terá condições de enfrentar adequadamente a emergência humanitária e as consequências de longo prazo de uma detonação nuclear em zona habitada. Por esse motivo, inúmeras organizações da sociedade civil em muitos países apoiam e cooperam com as Nações Unidas nos esforços de desarmamento.
A possibilidade concreta de uma confrontação com uso de armas nucleares é uma preocupante e permanente ameaça existencial para toda a humanidade. Ao longo do tempo, diversas crises políticas e humanitárias periódicas têm despertado ansiedade e temor no mundo, como o bloqueio de Berlim, genocídios na África, colocação de mísseis soviéticos em Cuba, disseminação de epidemias como a AIDS, graves desastres naturais, degradação ambiental, episódios de possível proliferação de armas nucleares, guerras em diversos pontos do globo, fome e privações em países de menor desenvolvimento, ataques terroristas e a pandemia da Covid 19, para citar somente algumas. As Nações Unidas têm buscado constantemente soluções ou alívio para essas e outras crises surgidas ao longo de sua existência, tanto por meio de debate e negociação de medidas eficazes quanto pela ação direta de suas agências especializadas. As numerosas operações de paz realizadas nas últimas décadas sob a égide da ONU visam não apenas a assistência às partes em conflito mas especialmente a criação de condições de paz duradoura.
Além da existência de armas nucleares, outra ameaça existencial tem sido objeto de atenção nas Nações Unidas: o agravamento da degradação do meio-ambiente causada pelo uso irracional e predatório dos recursos naturais do planeta. O Secretário-geral Antonio Guterres e seus antecessores têm liderado os esforços multilaterais em busca de soluções eficazes e duradouras. Todos os membros da comunidade internacional devem engajar-se resolutamente nessa tarefa.
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Conclusão
A despeito das inegáveis imperfeições e retrocessos as Nações Unidas constituem um patrimônio político, econômico e social de toda a humanidade. No panorama de instabilidade, imprevisibilidade e rápida inovação tecnológica que caracteriza o século 21, a construção de um paradigma de segurança para todos exige compreensão, moderação, comportamento racional por parte dos líderes e estímulo da sociedade civil em todo o mundo. A obra das Nações Unidas está longe de poder ser considerada terminada, mas há que reconhecer que a humanidade realizou importantes progressos em termos de conivência pacífica e na adoção de normas juridicamente vinculantes de conduta desde os tempos da Antiguidade e da Idade Média e principalmente a partir do final do século XIX. Esses progressos estão consubstanciados em diversas instituições internacionais, multilaterais, entre as quais a ONU ocupa sem dúvida um lugar de destaque.
E importante frisar que o multilateralismo praticado na ONU, tal como entendido no relacionamento internacional, significa a busca de soluções comuns para problemas comuns. Não se trata de reduzir ou limitar a soberania das nações por meio da imposição de uma instância supranacional, acima da vontade dos estados. As decisões das Nações Unidas são recomendações, tomadas livremente por voto de seus membros, estados soberanos da comunidade internacional, que podem acatá-las ou não. A única exceção é a contida no Capítulo VII da Carta, que permite ao Conselho de Segurança determinar medidas obrigatórias para todos os membros a fim de manter ou restaurar a paz e segurança, inclusive o uso da força, e ainda assim somente em casos graves e excepcionais de ameaça à paz, ruptura da paz ou atos de agressão. O Artigo 51, por sua vez, reconhece o direito de autodefesa individual ou coletiva inerente a todos os estados em caso de ataque armado.
Paz e segurança são bens públicos que pertencem a toda a humanidade. A experiência das relações internacionais ensinou importantes lições que precisam ser observadas. A paz e a segurança para todos não podem ser alcançadas por meio de práticas egocêntricas e isolacionistas que apenas buscam a satisfação de interesses paroquiais em detrimento dos interesses mais amplos da humanidade como um todo. Os governos são responsáveis perante os demais por seus atos, mas a opinião pública livremente expressada tem um papel vital a exercer nesse particular.
A contribuição das Nações Unidas em seus mais de sete decênios de existência tem sido extremamente relevante para a consolidação de relações internacionais produtivas e equânimes, mas a comunidade das nações ainda tem muito que fazer. Um sistema de segurança internacional baseado na posse e ameaça de uso de armas de destruição em massa por uns poucos não pode ser considerado universal nem tampouco justo e duradouro. Para que seja consistente, confiável, sólido e permanente terá que ser verdadeiramente não discriminatório e inclusivo.
As Nações Unidas são ainda o principal e mais idôneo instrumento para a realização das mais elevadas aspirações e objetivos da comunidade internacional.
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Notas:
[1] Essas palavras estão gravadas em um muro diante da sede da ONU, em Nova York..
[2] O “Sacro Império” era um conjunto de principados e outros domínios feudais na Europa central e ocidental, que durou aproximada mento do ano 800 a 1800 D.C.
[3] Essa expressão engloba os tratados de paz assinados nas cidades de Osnabrück e Münster entre maio e outubro de 1648.
[4] O “Projeto para a a Paz Perpétua” do Abada St. Pierre e o ensaio “Paz Perpétua: um esboço filosófico”, de Kant, podem ser considerados precursores do conceito de união europeia.
[5] O Congresso de Viena (1814-15) restaurou algumas das fronteiras pré-napoleônicas e produziu um período de relativa paz que durou até a eclosão da “Grande Guerra” em 1914.
[6] Sob a liderança da Prússia, o Império germânico foi proclamado em 1971, após a derrota da França. Wilhelm I tornou-se imperador (Kaiser) e reinou até o estabelecimento da República de Weimar em 1919.
[7] As Conferências da Haia, com representantes de países europeus, latino-americanos e africanos, produziu várias convenções e declarações pioneiras sobre o direito dos conflitos, direito humanitário e crimes de guerra, assim como sobre desarmamento e arbitragem internacional.
[8] O Tratado de Versalhes assinado em 28 de junho de 1919, pôs fim à Primeira Guerra Mundial. As condições impostas à Alemanha derrotada geraram um sentimento de revanche e exacerbação militarista, que contribuiu para a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939.
[9] A Liga das Nações visava o desarmamento, segurança coletiva, solução pacífica de controvérsias e melhora das condições de vida Incapaz de evitar a Segunda Guerra, foi oficialmente substituída pelas Nações Unidas em 1946.
[10] Assinou pelo Brasil o então Ministro das Relações Exteriores Leão Velloso.
[11] Vide a íntegra da Carta em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm
[12] A fundação das Nações Unidas foi consequência da aliança entre Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido, com participação da França e China nacionalista, para derrotar a Alemanha nazista e a Itália fascista.. A Carta começou a ser preparada ante do fim do conflito e reflete a preponderância política dos países vencedores do conflito, especialmente na composição assimétrica do Conselho de Segurança.
[13] A Polônia juntou-se aos 50 signatários dois meses depois e é considerada signatária original.
[14] Grande parte da ação internacional da ONU é realizada pelas agências especializados e programas específicos, que tratam de ciência e cultura (UNESCO), alimentação e agricultura (FAO), saúde (OMS), trabalho (OIT), meteorologia (OMM), comércio e desenvolvimento (UNCTAD), infância (UNICEF) meio ambiente (PNUMA), entre outras. Fazem ainda parte da “família” das Nações Unidas a AIEA (energia atômica), OMC (comércio internacional), o Banco Mundial, o FMI, o Tribunal Penal Internacional e outras instituições.
[15] Durante grande parte do período da Guerra Fria o uso do veto impediu acordos. Ainda hoje um ou outro membro permanente do Conselho recorre a essa faculdade para evitar decisões que considere desfavoráveis. O resultado é a busca de consenso em torno de decisões menos incisivas.
[16] Os historiadores divergem sobre as circunstâncias da rendição do Japão, devido à declaração de guerra contra o Japão pela União Soviética em 9 de agosto. Certamente, porém, os dois bombardeios atômicos e a ameaça de ataque semelhante contra Tóquio constituíram fatores decisivos.
[17] Israel não confirma nem desmente oficialmente a posse de armas nucleares. mas acredita-se que possua um arsenal obtido e desenvolvido a partir de 1966.
[18] Em uma entrevista publicada em 27 de maio de 2015, o general Lee Butler, ex-comandante do Comando Estratégico norte-americano, afirmou que o mundo se livrou de uma hecatombe nuclear “devido a uma combinação de competência, sorte e intervenção divina – esta última na maior proporção”. Essa análise continua válida nos dias de hoje.
[19] Em 27 de outubro de 1962 um submarino soviético sem comunicação com a base devido à profundidade em que se encontrava foi alvo de cargas explosivas convencionais. Acreditando que a guerra havia sido iniciada, o comandante do submersível decidiu lançar um torpedo nuclear contra os navios norte- americanos. O comandante da flotilha e o oficial político, que se encontravam a bordo objetaram, impedindo o lançamento. A guerra nuclear por pouco não ocorreu. Da mesma forma, em 26 de setembro de 1983 o coronel Stanislav Petrov, oficial do dia em uma estação soviética de radar, viu no computador sinais que indicavam a aproximação de um míssil norte-americano e pouco depois mais outros. O militar deduziu que teria havido um erro do sistema e optou por não alertar seus superiores. Novamente foi evitada uma guerra nuclear.
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