Ditaduras não são melhores do que democracias em lidar com crises
por Pedro Vicente de Castro
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Se podemos acreditar nas estatísticas oficiais, o governo chinês parece ter contido a proliferação do coronavírus em seu território. O número de infectados parece ter se estabilizado e as autoridades já começaram a relaxar as medidas tomadas em Wuhan, o epicentro da pandemia. Essa aparente conquista é o resultado da adoção de medidas enérgicas: além de decretar quarentena em Wuhan, o governo chinês fechou as fronteiras da província de Hubei e restringiu viagens dentro do território chinês, bem como a entrada de estrangeiros no país.
Criticado por sua resposta inicial ao surto, o governo chinês não tem desperdiçado a oportunidade de exibir seus resultados como uma prova da superioridade de sua estratégia de combate ao vírus e do seu sistema político. As medidas necessárias só puderem ser adotadas, argumenta um jornal ligado ao Partido Comunista chinês, porque as autoridades puderam ignorar as consequências econômicas de curto prazo de suas medidas e a reação das bolsas de valores, passar por cima de direitos e liberdades individuais e se concentrar em salvar vidas – diferentemente dos líderes políticos de países democráticos.[1]
Esse argumento parece ainda mais plausível diante do contraste entre a conduta do governo chinês e a hesitação, ou mesmo aberta recusa, de governantes de países democráticos em adotarem medidas similares. A conduta de líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que contrariam as recomendações de especialistas e minimizam a seriedade da pandemia, parece ser motivada por considerações eleitorais e pela dispersão da responsabilidade política entre diferentes cargos, típica de países com separação de poderes e federalismo. Ambos fatores que não se aplicam às autoridades chinesas.
Diante disso, é tentador acreditar na narrativa de que democracias, muito embora tenham um histórico superior de proteção de direitos humanos e liberdades individuais, estejam em desvantagem quando se trata de lidar com crises como a atual pandemia. O alto grau de concentração de poder apresentado por ditaduras lhes daria maior capacidade de arregimentar os recursos da sociedade e adotar medidas enérgicas para responder a emergências agudas.
Essa narrativa, contudo, é enganosa. Isso porque desconsidera dois fatores cruciais: a disposição das autoridades em responder a emergências e o que conta como uma resposta aceitável.
Ditaduras podem até ser capazes de adotar medidas enérgicas, mas não contam com nenhum mecanismo institucional que as motivem a fazê-lo. Em países com eleições periódicas e competitivas, a população pode punir as autoridades eleitas que não responderem de maneira apropriada a uma emergência se recusando a reelegê-las. Isso, por sua vez, as motiva a adotarem estratégias de resposta que acreditam que serão bem-sucedidas e, logo, bem avaliadas pela população. Nada semelhante se aplica a ditadores.
Isso não significa que líderes democráticos sempre vão apresentar um desempenho superior ao de ditadores. Quem é o presidente ou o primeiro-ministro faz diferença e há líderes mais ou menos competentes para essas funções. Também não significa que a população sempre vai punir eleitoralmente autoridades que apresentem um desempenho insatisfatório. Mas eleições democráticas garantem a possibilidade de que isso aconteça. Em ditaduras essa possibilidade é vedada.
Isso permite que ditadores exibam um alto grau de desprezo pela vida e pelo bem-estar de seus cidadãos. Líderes democráticos podem exibir a mesma atitude. Mas, se agirem com base nela, correm o risco de sofrer as consequências eleitorais. Há uma frase famosa do economista Amartya Sen que cabe aqui: democracias não deixam seus cidadãos morrerem de fome em massa. O ponto não é que ninguém morre de fome em democracias ou de que não haja episódios de fome em massa nesses países. Mas que autoridades eleitas que não fazem nada durante esse tipo de emergência estão sujeitas às consequências eleitorais da sua negligência.
Além disso, mesmo que uma ditadura seja forçada a responder a uma emergência, nada garante que escolha fazer isso de uma maneira aceitável para nosso senso de humanidade. Quando a crise pode ser contida no território doméstico, ditaduras podem muito bem responder apenas intensificando a repressão para que informações sobre a situação real não cheguem ao conhecimento do público.
A história oferece exemplos de emergências em que a resposta de ditaduras foi exatamente essa. Em 1932, uma fome em massa irrompeu na Ucrânia e em diversas províncias russas da União Soviética. A resposta oficial foi negar a existência da crise. Essa resposta tomou uma forma especialmente brutal na Ucrânia, por motivos puramente políticos: o governo soviético viu na fome uma oportunidade de quebrar o espírito do nacionalismo ucraniano de uma vez.
As fronteiras ucranianas foram fechadas para que notícias sobre a fome não chegassem ao resto do país. Proibidas de deixar o território ucraniano em busca de comida, milhares de pessoas foram abandonas à morte nas estradas. Jornalistas foram proibidos de reportar a situação real. Quando, ainda assim, relatos chegaram à imprensa estrangeira, Moscou arregimentou repórteres subservientes ao regime para desmenti-los. Receoso das consequências que o vazamento de notícias sobre a crise poderia ter para sua política externa, em um tempo em que buscava a normalização das suas relações com os Estados Unidos, o governo soviético se recusou a aceitar auxílio estrangeiro.
O custo em vidas humanas dessa reposta foi assombroso. A fome foi cinco vezes mais letal na Ucrânia no que nas províncias russas vizinhas, onde medidas diferentes foram adotadas. Estima-se que cerca de quatro milhões de pessoas morreram durante o chamado Holodomor. Depois da catástrofe, o governo soviético embarcou em uma operação de acobertamento e passou décadas patrocinando estudos fraudulentos para desmentir e caluniar intelectuais e sobreviventes que apontavam a verdade.[2]
O histórico soviético com epidemias não é melhor. Durante o século XX, a União Soviética experimentou vários surtos localizados de cólera e peste. Contudo, em 1938 o governo anunciara ao mundo que tinha erradicado essas doenças do território soviético. Informações sobre surtos posteriores a essa data, por consequência, eram tratadas como segredo de Estado. Profissionais de saúde eram mantidos sob a ilusão de que tais enfermidades não existiam no país, o que os deixava completamente despreparados para combatê-las quando se deparavam com a verdade. Isso contribuiu para a prevalência e letalidade de tais doenças.[3]
Alguns aspectos da resposta do governo chinês à pandemia ecoam essas experiências históricas. Como é sabido, as autoridades chinesas inicialmente tentaram impedir que notícias sobre o surto chegassem ao conhecimento do público, perseguindo médicos, acadêmicos e jornalistas independentes. Não por acaso, ainda há dúvidas sobre a veracidade das estatísticas oficiais chinesas.[4] Depois que a crise se tornou global, as mesmas autoridades alimentaram a teoria da conspiração de que o vírus se originou nos Estados Unidos, com a intenção de desviar a atenção sobre a inadequação da resposta inicial do governo chinês ao surto.[5]
Esses paralelos não são uma coincidência. O traço comum a todas essas respostas é a natureza autoritária do regime político que as adotou. Ditaduras não contam com mecanismos institucionais que as motive a responder a emergências domésticas – e a fazê-lo para salvar vidas humanas, não para proteger a imagem do regime.
Podemos especular sobre as razões por que o governo chinês está aparentemente respondendo de maneira tão enérgica à crise do coronavírus. No topo da lista possivelmente estará o fato de que a pandemia, por ter começado no território chinês e adquirido escala global, pode comprometer os objetivos de política externa da ditadura. A vida e o bem-estar dos chineses comuns provavelmente estarão bem mais abaixo.
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Notas:
[1] Como exemplo, matéria do Global Times, jornal chinês em língua inglesa.
[2] Anne Applebaum, Red Famine: Stalin’s War on Ukraine, Edição: 01 (New York: Doubleday, 2017).
[3] Sonia Ben Ouagrham-Gormley, “Growth of the Anti-Plague System during the Soviet Period”, Critical Reviews in Microbiology 32, no 1 (2006): 33–46, https://doi.org/10.1080/10408410500496839.
[4] Ver matéria do Guardian.
[5] Ver matéria do New York Times.