por Renata Velloso
Uma parceria com o Terraço Econômico
A sexta-feira de 7 de outubro de 2016 começou agitada nos EUA com a chegada do furacão Matthew na costa da Flórida. A então candidata Hillary Clinton começara naquela manhã a se preparar para o segundo debate presidencial que aconteceria no domingo à noite, enquanto Donald Trump usava sua conta no Twitter para acusar o presidente Obama de proteger imigrantes com fins eleitorais – “estão deixando gente pobre entrar no país só para poderem votar”, twitou.
Ninguém esperava, porém, que num intervalo de pouco mais de 90 minutos, a política americana fosse devastada por uma verdadeira tempestade. Primeiro o governo Obama anunciou ter motivos para acreditar que o governo russo estava por trás de uma ataque de hackers ao comitê nacional dos democratas no início do ano; logo depois o Washington Post divulgou a famosa fita “Access Hollywood”, uma gravação na qual Trump aparece se gabando dos assédios sexuais que cometia contra mulheres – “quando você é uma estrela, você pode fazer qualquer coisa, eu pego elas pela b***” – dizia na parte mais chocante da conversa; e por fim o wikileaks vazou uma série de emails hackeados do partido democrata contendo conversas entre Hillary e John Podesta, seu chefe de campanha.
Esses três eventos resumem bem o que foi a campanha presidencial nos EUA em 2016, uma corrida eleitoral marcada por suspeitas de intervenção russa, por um candidato agressivo que personifica o discurso contra o “politicamente correto” e por uma candidata que apesar de experiente e bem preparada não conseguiu inspirar um número suficiente de pessoas para a sua candidatura, e nem mesmo explicar o uso indevido que fez das suas mensagens eletrônicas.
No livro What Happened (“O que aconteceu”, ainda sem tradução para o português), lançado em setembro de 2017, Hillary comenta esse episódio e o debate dois dias depois:
“(…) nós deveríamos debater sobre as questões que importam na vida das pessoas, mas Trump usou o momento para voltar à sua zona de conforto. Ele ama humilhar as mulheres, ama falar sobre o quão repugnantes nós somos”.
Quem espera encontrar no livro a explicação para a inesperada vitória republicana nas últimas eleições presidenciais dos EUA irá se frustrar (para isso sugiro outros dois livros excelentes que ajudam a entender as forças sociais e culturais que prevaleceram nesta eleição: Fantasyland: How America Went Haywire: A 500-Year History de Kurt Andersen e Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis de J. D. Vance, este último lançado também em português com o título “Era uma vez um sonho”)
Logo na primeira página do livro Hillary admite que não é sua intenção explicar tudo o que aconteceu na campanha “eu não teria nem o distanciamento, nem a isenção que seriam necessárias para dar todas as respostas”, justificou; mas “ao invés disso irei contar a minha história”.
Ressentimento. Se Hillary Clinton pudesse resumir em uma palavra o que causou sua derrota para Donald Trump nas eleições de 2016 é provável que escolhesse essa: ressentimento. Normalmente tão contida, a ponto de muitos acharem que ela não é real, Hillary Clinton finalmente baixou a guarda da conveniência política no seu livro e disparou contra todos aqueles que, de uma forma ou de outra, a seu ver contribuíram para sua derrota. Sobrou para todo mundo: Bernie Sanders (“seus ataques causaram danos duradouros, fizeram com que fosse mais difícil unificar progressistas nas eleições gerais e abriu caminho para a campanha ‘Crooked Hillary’ de Trump. Não sei se isso incomodou o Bernie ou não”), Vladimir Putin (“não respeita as mulheres e despreza todas as pessoas que lhe façam frente, portanto, eu sou um problema duplo”), James Comey (“sem a intervenção espetacular do diretor do FBI teríamos ganho a Casa Branca”), e também para a imprensa, para a população americana que votou em Trump, ou que não foi votar nela, e até para Barack Obama, seu principal aliado político na campanha. Não poupa nem ela mesma. Todos aparecem no livro como culpados pelo fato de a melhor, mais bem intencionada e mais bem preparada candidata à presidência que os Estados Unidos já tiveram (pelo menos na visão da própria) ter perdido as eleições para Donald Trump, que ela considera o oposto de tudo isso.
Hillary Rodham Clinton (ela faz questão de manter o nome de solteira em letras garrafais e maiores do que o título na capa do livro) é de fato uma mulher admirável. Foi a primeira ex-primeira dama a ser eleita Senadora nos EUA, foi secretária de Estado (responsável pela política externa do governo Obama de onde saiu aprovada por 69% da população) e a primeira mulher a ser indicada por um grande partido para concorrer à presidência da república. Sua carreira política, sempre ligada ao partido democrata, esteve focada em medidas voltadas a ampliar o acesso dos cidadãos à saúde e a expandir os direitos civis das mulheres, negros, imigrantes, LGBTQs e outras minorias.
Sua primeira aparição para o público nos EUA aconteceu em 1969. Naquela ocasião fora oradora das formandas da Wellesley, uma tradicional universidade só para moças. Seu discurso “viralizou” na época e foi parar nos principais jornais do país. Ironicamente no discurso Hillary confrontava os políticos da época: “dizem que a política é a arte do possível, o desafio agora é transformar a política na arte de transformar o impossível em possível”. Talvez a Hillary de 2016 devesse ter dado mais ouvidos à Hillary de 69. Depois disso, foi estudar direito na prestigiada Universidade de Yale, onde conheceria seu futuro marido, o ex-presidente Bill Clinton. A trajetória de Hillary demonstra a ascensão das mulheres na vida profissional e política dos EUA, país que ainda é referência para o resto do Ocidente.
Em 1975, quando se casou, decidiu manter o nome de solteira. Esse ato, considerado uma rebeldia na época, aliado à sua imagem que não condizia com o que era esperado de uma primeira dama do Arkansas foram apontados como causas da derrota de Bill Clinton na reeleição para governador em 1980. Na época ela chegou a declarar, indignada, “eu deveria ficar em casa fazendo biscoitos e tomando chás, mas o que eu decidi fazer foi seguir a minha profissão, que eu já exercia mesmo antes do meu marido entrar para a vida pública.” O comentário foi recebido como uma ofensa às mães e donas de casa e acabou prejudicando a campanha de Bill.
Disposta a tudo para apoiar a carreira do marido, Hillary então abriu mão do seu nome de solteira e adicionou Clinton ao sobrenome; da sua aparência (trocou os óculos “fundo de garrafa” por lentes de contato, cortou e tingiu o cabelo e mudou seu guarda-roupa) e passou a exercer a sua profissão da forma mais discreta possível.
Mais tarde, abriria mão também da sua dignidade, quando o envolvimento do seu marido com uma estagiária da Casa Branca veio à tona e por pouco não resultou em impeachment. Dias antes do affair ter ficado provado através de um famoso vestido azul que continha sêmen presidencial, Hillary havia dado uma entrevista colocando a mão no fogo por Bill. No fim, deu a mão queimada ao marido e continuam casados e parceiros políticos até hoje. No livro, Hillary é só elogios ao companheiro para quem ela telefonava todas as noites durante a campanha para trocar opinião e dizer boa noite.
Em resumo, Hillary abriu mão de tanta coisa, para ser aceita pelo establishment da política norte-americana que não é de se espantar que muitos agora desconfiem da sua autenticidade. No livro, ela se declara frustrada com esse tipo de crítica que considera injusta e se defende dizendo que sempre foi a mesma pessoa: realista e pragmática.
O pragmatismo pode ter ajudado a fazer com que ela fosse a segunda pessoa a conseguir mais votos na história das eleições presidenciais dos EUA (atrás apenas de Barack Obama) mas o realismo talvez tenha impedido que ela ganhasse a eleição. Ela diz ter sido acusada de vários defeitos “dizem que sou muito interessada em detalhes das políticas públicas (entediante!), muito prática (não é inspiradora!), muito disposta a negociar (vendida!), muito focada em pequenos passos possíveis e não disposta a fazer grandes mudanças mesmo sabendo que seriam impossíveis de implementar (candidata do establishment!)”. Para Hillary todas essas cobranças são injustas e decorrem do fato de ela ser mulher.
Por outro lado, ela admite alguns, poucos, erros seus: afirma que não deveria ter mantido e-mails pessoais durante o tempo que estava prestando serviço público e que não deveria ter aceitado dar palestras remuneradas a portas fechadas para grandes empresas financeiras de Wall Street. Hillary porém tenta minimizar esse dois incidentes, diz que não fez nada de criminoso mas que não basta ser, é preciso também parecer honesta
“Só porque muitos ex-governantes receberam muito dinheiro para fazerem palestras e discursos, eu não devia ter assumido que não teria problemas por fazer o mesmo. Especialmente após a crise financeira de 2008-09, eu devia ter percebido que essa seria uma má jogada e ter-me mantido longe de tudo o que estivesse relacionado com Wall Street. Não o fiz. A culpa é minha”.
Mas os principais responsáveis pela sua derrota, segundo Hillary, foram a interferência Russa que ela chama de guerrilha, a intervenção sem precedentes do FBI no pleito, a imprensa que considerou seus emails pessoais como a principal história a ser contada durante a campanha eleitoral e, como mencionado no início deste artigo, o ressentimento e a raiva daqueles que não votaram nela, tanto aqueles que votaram em Trump, quanto os que, entristecidos pela saída de Bernie Sanders da disputa, não foram votar na candidata democrata.
Não faltam, aliás, críticas pesadas ao seu concorrente nas prévias do partido democrata. Para Hillary, Sanders iludiu o eleitorado com propostas irrealistas e nunca conseguiu demonstrar de onde conseguiria tirar dinheiro para as suas propostas “socialistas”, muito menos como obteria o apoio da maioria republicana no legislativo para implementá-las.
Para Barack Obama, Hillary joga a culpa por não ter sido mais incisivo em trazer a público o que o governo sabia sobre as tentativas de interferência Russa nas eleições norte-americanas. Ela afirma entender o dilema do então presidente, que poderia ser acusado de favorecê-la, mas em retrospectiva acredita que o povo dos EUA tinha o direito de saber o que estava acontecendo e tirar suas próprias conclusões. Hillary afirma também que sofreu com o peso de ser a candidata da situação durante um período em que o mundo todo, não apenas os EUA, clamava por mudanças e renovação na política.
Em cima de tudo isso, claro, há também a cultura machista. No livro, Hillary dedica um capítulo inteiro para falar das dificuldades de ser mulher na política. Ela conta desde coisas simples, por exemplo o tempo que ela tem que gastar para aparecer maquiada e com o cabelo arrumado em público (caso contrário a notícia será sua aparência e não sua fala); até a dificuldade de ser uma mulher de sucesso e continuar querida.
“Pode ser aflitivo, humilhante. No momento em que uma mulher avança e diz: Vou candidatar-me, começa: a análise da sua cara, do seu corpo, da sua voz, do seu comportamento; a diminuição da sua estatura, das suas ideias, dos seus feitos, da sua integridade”.
Para provar que seu gênero foi determinante na disputa, ela trás inclusive uma pesquisa realizada em 2014 pela Pew Research Center que fez a seguinte pergunta “seria bom ter uma mulher (qualquer mulher) na presidência da república?” Os resultados foram deprimentes: 69% das mulheres e 46% dos homens eleitores que se identificam com o partido democrata disseram que sim, já entre os eleitores republicanos apenas 20% das mulheres e 16% dos homens responderam que gostariam de ver algum dia uma mulher na presidência.
Numa eleição tão disputada, em que ocorreu inclusive uma discrepância entre o vencedor no voto popular (Hillary) e o vencedor no colégio eleitoral (Trump) é difícil apontar o que mais pesou na balança. Pode-se culpar inclusive o regulamento: o sistema de colégio eleitoral tende a deixar o processo democrático cada vez mais distorcido com o aumento da concentração da população nos grandes centros urbanos. Foram os Russos? Foram os nacionalistas brancos de extrema direita? Foram as notícias falsas disseminadas nas redes sociais? Foram os jovens desiludidos com a derrota de Bernie Sanders que não se empolgaram a ir votar? Foi o fato da candidata ser mulher? Tudo isso deve ter contribuído, mas depois do fato consumado não adianta chorar. Assim, o que ficou faltando no livro da Hillary é uma reflexão sobre o que fazer daqui em diante para que a democracia americana continue saudável frente ao que ela chama de “perigo real e iminente” representado pelo atual governo. Criticar, reclamar, apontar os erros é importante, mas mais importante ainda é pensar em soluções.