por David Magalhães
“Se existe um Deus, o cardeal Richelieu terá muitas contas a prestar”, teria comentado o Papa Urbano VIII sobre o primeiro-ministro da França (1624-1642). O que teria levado o Sumo Pontífice a ter uma visão tão negativa de Richelieu?
Além de cardeal da Igreja, Richelieu foi o encarregado de Luis XIII para cuidar das grandes questões de política externa do então unificado Estado francês. Henry Kissinger, em sua obra Diplomacia, defende que o cardeal criou o conceito de raison d’État que substituiu a diplomacia medieval baseada em valores morais universais. Antes do sistema de Estados soberanos que emergiu na Europa após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), havia por parte da Igreja e do Sacro Império Romano a pretensão à universalidade e o mundo era visto como espelho dos céus.
Durante a Guerra dos Trinta Anos, Richelieu percebeu que o expansionismo do Sacro Imperador Romano poderia colocar em risco a sobrevivência da França. Contra o projeto hegemônico da dinastia Habsburgo, Richelieu construiu uma aliança com Estados protestantes no período em que a Igreja e o Imperador estavam empenhados na contra-reforma. Mais tarde, Richelieu, para horror da ortodoxia católica, se aliou aos muçulmanos do Império Otomano.
Como cardeal da Igreja, Richelieu poderia ter aceitado confortavelmente o projeto de restauração católica do Sacro Imperador. Richelieu, entretanto, interpretou a fé de Fernando II como uma ameaça à França. Reservando a religião a questões de foro íntimo, o Cardeal tomou suas obrigações como ministro em termos exclusivamente seculares. Ele acreditava que, sendo a alma imortal, sua salvação poderia ficar pra depois. Como Ministro de Estado, trabalhou friamente para impedir que o cerco Habsburgo ameaçasse a existência da França como Estado independente.
Ao criar a raison d’État Richelieu atacou a tradição canônica baseada na supremacia da lei moral e propôs, inspirado nos ensinamentos de Maquiavel, que a política externa não deveria ser influenciada por imperativos universalistas. O bem do Estado, como reza o pragmatismo, deveria ser o valor supremo. Após a vitória francesa, raison d’État tornou-se o fundamento lógico da diplomacia moderna.
Devemos lembrar, contudo, que as novidades introduzidas por Richelieu no campo da diplomacia resultaram das profundas transformações que já ocorriam na paisagem política e social europeia há pelo menos quatro séculos. Aproximadamente cem anos antes de Richelieu inventar a raison d’État, o pintor alemão Hans Holbein, o jovem (1497-1543), retratou em “Os Embaixadores” as mudanças que anunciariam o nascimento da diplomacia moderna.
O bem do Estado, como reza o pragmatismo, deveria ser o valor supremo. Após a vitória francesa, raison d’État tornou-se o fundamento lógico da diplomacia moderna
O clérigo e o sacro
Um ano após ter chegado em Londres para tornar-se uma espécie de pintor oficial da corte de Henrique VIII, Holbein produziu, em 1533, uma das obras mais enigmáticas da história da arte. A pintura retrata dois embaixadores franceses que estavam em missão diplomática na Inglaterra. A identidade desses embaixadores foi descoberta apenas em 1900 pela historiadora Mary Hervey, que publicou sua pesquisa no livro Holbein’s Ambassadors: The Picture and the Men.
Os trajes dos embaixadores não deixam dúvidas: à direita vemos um diplomata do clero, vestindo uma batina de seda damasco marrom, e à esquerda um diplomata secular, que ostenta um extravagante casaco de peles. Hervey revelou que os embaixadores eram, da direita para a esquerda, Georges de Selve e Jean de Dinteville, ambos em missão diplomática em defesa dos interesses do rei François I.
A propósito, observar o retrato da direita para a esquerda nos permite compreender parte das transformações que ocorriam na vida política europeia no momento em que Holbein pintava “Os Embaixadores”. O processo de centralização política que levou à ascensão do moderno sistema de estados veio acompanhado de uma mudança significativa no quadro de funcionários dos governos europeus. Em razão da disseminação do humanismo secular, a partir do século XV, os leigos cada vez mais obtinham formação tão boa quanto o clero. E com o tempo essa mudança acabou com a situação na qual os governantes dependiam de clérigos para trabalhar no Estado. Além disso, a proliferação de universidades na segunda metade do século XVI proveu funcionários instruídos à administração pública dos Estados em formação.
Na pintura de Holbein, Georges de Selve representa a velha ordem feudal que estava se decompondo. Além de diplomata, Selve era o Bispo de Lavaur, comuna localizada no sul da França. Holbein nos revela a idade de 23 anos de Selve na lateral do livro em que o diplomata apoia seu cotovelo. Apesar de jovem, ele já havia servido como embaixador no Papado e na Áustria. Como um clérigo e diplomata, defendia a supremacia católica em uma Europa que se secularizava rapidamente ao mesmo tempo em que a reforma protestante dividia a cristandade europeia.
Ambos os embaixadores chegaram para sua missão diplomática na Inglaterra no início de 1533, em um momento particularmente turbulento da história britânica: Henrique VIII encontrava-se em processo de ruptura com a Igreja católica. O rei tentava anular seu casamento com a Catarina de Aragão para casar-se com Ana Bolena. Era mais um capítulo do esforço que as monarquias empreendiam para afirmarem sua soberania diante das pretensões universalistas da Igreja. Hervey especula que o propósito da missão diplomática francesa seria mediar a crise entre Henrique VIII e o Papa Clemente VII. Para alguém como George Selve, cujo o projeto de ordem internacional se traduzia na construção res Publica Christiana, uma espécie de Commonwealth católica, a ruptura de Henrique VIII com a Igreja era um passo na direção contrária, aprofundando o cisma entre os cristãos da Europa.
Se o embaixador George Selve representa a velha diplomacia medieval, Jean de Dinteville, ao seu lado, simboliza a emergência da diplomacia moderna. Quando foi retratado por Holbein, Dinteville tinha 29 anos, como consta no detalhe pintado por Holbein no punhal dourado que o diplomata segura. Dinteville era um humanista cristão formado por uma educação erudita em um período no qual o conhecimento já não estava apenas confinado na Igreja. Sabe-se pelas suas cartas que Dinteville estava em Londres a contragosto: queria voltar pra França para acompanhar a reforma do seu château na Borgonha, se queixava frequentemente do clima chuvoso londrino e vivia gripado. Mas a tendência da diplomacia era a sedentarização.
Em seu Renaissance Diplomacy, Garrett Mattingly afirma que a diplomacia moderna foi uma das criações da Itália renascentista. Durante o século XV, a península itálica foi palco de um sistema de equilíbrio de poder entre cinco cidades-estados: o ducado de Milão, a República de Florença, o Reino de Nápoles, os Estados papais e a República de Veneza. Esses estados competiam entre si por poder, território e pela própria sobrevivência. Ou seja, a Itália do quatroccento era uma miniatura do que iria se transformar a Europa ocidental um século depois. Diante deste contexto de competição secular pelo poder, uma das mais importantes mudanças na diplomacia foi o estabelecimento do embaixador residente.
Quando a ordem feudal começou a ruir na Europa, a maquinaria diplomática inventada na Itália renascentista cruzou os Alpes e foi incorporada pelas monarquias que afirmavam seu poder central. Surgiu uma rede de contatos diplomáticos organizados que ligavam de maneira contínua os governos europeus. Muitos diplomatas, como Jean Dinteville, permaneciam no posto na corte de algum governo no exterior, fazendo negócios e transacionando informações por um período de meses ou até anos.
Em seu Renaissance Diplomacy, Garrett Mattingly afirma que a diplomacia moderna foi uma das criações da Itália renascentista
O celestial e o terreno
Os objetos que Holbein distribuiu nas duas partes da prateleira em que os embaixadores se apoiam agregam mais camadas de simbolismo à divisão entre o universo religioso e secular. No livro The Ambassador’s Secret, John North defende que os instrumentos localizados na parte superior da prateleira foram concebidos para refletir os céus enquanto que os objetos dispostos na parte inferior representam a vida mundana.
Na parte de cima da prateleira estão dispostos objetos construídos por Nicolas Kratzer, astrônomo da Casa Tudor que se tornou amigo de Hans Holbein. No ensino clássico, que floresceu na Idade Média e no renascimento, a astronomia era parte das liberal arts, junto com a aritmética, música, geometria (quadvirium), gramática, dialética e retórica (trivium). O astrônomo no século XVI era talhado nas artes liberais e na filosofia metafísica para explicar o movimento dos corpos celestes.
E as respostas eram geralmente baseadas no ensinamento de Aristóteles, que defendia que as esferas dos corpos celestes moviam-se uma com as outras, cada uma movendo e sendo movida. Para Aristóteles, no entanto, o movimento deveria ter um início, não poderia ser infinito. Haveria então um Primeiro Motor (primum mobile), um ser incorpóreo, indivisível, ilimitado, imutável, perfeito e eterno. Os ensinamentos da metafísica aristotélica foram facilmente adaptados por filósofos escolásticos a uma visão de mundo judaico-cristã. O Nada que estava fora do céu, logo tornou-se o próprio céu em si, isto é, a morada de Deus.
Encostado ao cotovelo de Dintiville encontramos um extraordinário globo celeste em que as estrelas mais brilhantes do céu estão agrupadas em constelações e onde se pode ver Cygnus (cisne) e Pegasus (cavalo-alado). Ao lado do globo celeste há um cilindro de madeira que funcionava como relógio de sol e cuja sombra projetada revela o dia em que a obra foi pintada, 11 de abril de 1533. Os outros instrumentos astronômicos colocados na parte superior da prateleira, como torquetum, quadrante, marcador poliédrico, completam a alegoria: é um apelo às leis eternas, à metafísica, ao sublime e, claro, à Deus.
Na parte de baixo, no lugar de um globo celeste vemos um globo terrestre. Abaixo do céu, a terra. Holbein pintou o mapa com tanto esmero que podemos identificar no globo países e regiões, especialmente a França, local de origem dos embaixadores. Dentre os objetos mundanos dispostos na parte de baixo da prateleira, encontramos um alaúde, um livro de partituras e outro de contabilidade. Olhando com atenção, notamos que o alaúde está com uma corda quebrada e abaixo dele há um livro aberto onde se vê a partitura de um hino composto por Martinho Lutero. Para North, Holbein quis mostrar a desarmonia introduzida na Europa pela reforma protestante.
Essa interpretação é reforçada por outro objeto colocado logo abaixo do globo terrestre. Trata-se de um livro de contabilidade comercial do conhecido humanista alemão Petrus Aspianus, que na pintura encontra-se aberto justamente na página dedicada às operações de divisão. A divisão, a propósito, parece ser o leitmotiv desta obra de Holbein. O mundo que o pintor renascentista retratou estava separando a Igreja do Estado, o universo mundano se afastava dos céus e a cristandade se dividia.
Para não deixar dúvidas, a temática reaparece novamente no crucifixo que Holbein esconde por trás da espessa cortina verde no canto superior esquerdo do quadro. O eclipse do cristianismo na vida política europeia estava na ordem do dia: para triunfar sobre as velhas estruturas feudais, os monarcas absolutos, como o Henrique VIII, confiscaram propriedades da Igreja e atacaram privilégios políticos e econômicos do clero.
Ajudou também a corroer os alicerces ideológicos da Igreja a disseminação do humanismo secular, inspirado na tradição greco-romana e que defendia a possibilidade de se chegar a uma civilização organizada sem os benefícios da fé cristã. O próprio Hans Holbein, pelos retratos que pintou de Erasmo de Roterdã e Thomas More, ainda é lembrado como o “pintor da face humanista”.
Não podemos nos esquecer do intrigante crânio distorcido que aparece no chão da sala em que os embaixadores são retratados. Muito comum entre artistas do início do renascimento, o crânio é referência ao memento mori, a lembrança de que todos somos mortais e que, no fim, somos iguais na morte. A técnica para deformar imagens, conhecida como anamorfose, é um expediente de ilusão de ótica em que o observador consegue enxergar as imagens apenas de determinados ângulos. No caso do crânio pintado por Holbein, ele pode ser visto olhando-se de um ponto à direita da tela ou de frente, através de um copo com água.
A diplomacia Pré-moderna de Ernesto
Uma obra só merece a pecha de clássica se ela fornece chaves interpretativas para entender o presente. Nesse sentido, não resta dúvida de que a obra-prima de Holbein é um clássico e que nos ajuda inclusive a entender o Brasil.
Em um artigo escrito para a revista conservadora New Criterion, Ernesto Araújo, chanceler do governo Bolsonaro, proclamou: “Deus está de volta”. Para Ernesto Araújo o Brasil deve apoiar decididamente a política externa de Donald Trump, já que o presidente norte-americano está comprometido a salvar a civilização ocidental dos seus inimigos. Mas a ideia de ocidente concebida por Trump, observa Araújo, não está baseada na combinação de capitalismo e democracia liberal. Em seu centro encontra-se o “anseio por Deus, o Deus que age na história”.
No retrato de Holbein, Ernesto seria George de Selves. Por tudo o que defende o chefe do Itamaraty, sua visão de ordem internacional está ancorada na diplomacia medieval, na defesa intransigente de uma res publica Christiana. Enquanto o mundo moderno tratou de tirar Deus da política e, logo, da diplomacia, Ernesto Araújo quer trazê-Lo de volta.
Como discípulo de Olavo de Carvalho, Ernesto também quer resgatar a metafísica, abraçando o globo celeste de Holbein contra a filosofia moderna de Descartes e Kant. Sendo impraticável aplicar essas ideias para o campo prático da política externa, Ernesto Araújo faz o que pode no currículo do Instituto Rio Branco, introduzindo disciplinas que exigem dos diplomatas a leitura dos “Clássicos”, espécie de Liberal Arts do Itamaraty.
Enquanto Ernesto brinca de guerra cultural dentro do Itamaraty, o vice-presidente Mourão, apoiado pelo generalato ao seu entorno, faz política externa nos moldes de Richelieu, conduzindo a diplomacia brasileira com o pragmatismo de quem tem como horizonte apenas a raison d’État.