A política monetária da diferença

Para compreender como a política monetária se propaga na economia, também a heterogeneidade se revela um fator relevante. Desigualdade importa e importa muito: tanto no lado das famílias quanto no das empresas. Um ensaio de João Ricardo Costa Filho sobre a política monetária da diferença.

por João Ricardo Costa Filho

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Como a política monetária se propaga na economia? Quando estudamos esse assunto, é usual que, inicialmente, sejamos expostos a arcabouços que consideram os chamados ‘efeitos diretos’, aos quais os agentes respondem diretamente com alterações nas suas escolhas. É pressuposto que os impactos desse tipo de política não durem muito e se manifestem pelo lado da demanda.[1] Acredito que vale a pena revisitar alguns exemplos desses canais.

Nos modelos mais tradicionais, há um grande foco nas variáveis agregadas (o PIB, a inflação, a taxa de desemprego etc). Sob certas circunstâncias, poderíamos — com esse foco no agregado — perguntar como um agente que representa o comportamento médio responde a movimentos nas taxas de juros controladas pelo banco central. Emergem diversos canais pelos quais podemos obter essa resposta. Juros menores podem fazer com que existam incentivos para trocar gastos no futuro por gastos presentes, uma vez que as famílias são incentivadas a consumir e as empresas a investir, já que deixar os recursos aplicados gera menos oportunidades de consumo/investimento no futuro (dado que as suas aplicações rendem menos).[2]

O aumento nos gastos é amplificado por um crédito mais barato e abundante, porque (i) as taxas de juros dos empréstimos por parte dos bancos tendem a diminuir (mesmo que com certa lentidão), o que (ii) leva a um aquecimento da economia, uma vez que possibilita mais gastos (especialmente com bens duráveis) e (iii) aumenta a procura por imóveis e estes são usualmente são utilizados como colateral (garantia em um empréstimo). Com a maior demanda por imóveis, temos um maior valor dessas garantias, o que estimula os bancos a emprestar ainda mais, reforçando o aumento dos gastos por parte de famílias e empresas, acelerando a economia. Sem contar que, como o ambiente financeiro se tornou mais propício para renegociações de dívidas, se pode abrir espaço nos balanços das empresas e das famílias para gastos adicionais.

Aos movimentos descritos anteriormente somam-se ainda (a) os efeitos nas bolsas de valores, uma vez que há tanto uma realocação de portfólio, já que a renda fixa possui uma rentabilidade menor, como uma (re)avaliação mais positiva das empresas negociadas nas bolsas (sem contar que há uma relação positiva entre o valor das ações e os empréstimos por parte dos bancos, reforçando os pontos anteriores) e (b) os efeitos na taxa de câmbio, com alteração no fluxo esperado de capitais a taxa de câmbio pode se desvalorizar, aumento as exportações em relação às importações.

A combinação desses canais gera um aumento na chamada demanda agregada e do PIB. Ou seja, em média, gasta-se mais. Mas será que isso vale para todo mundo?

Há algumas décadas, no entanto, o estudo da macroeconomia vem incorporando estruturas mais complexas na sua análise e a heterogeneidade se mostrou um fator relevante. Agentes com características e/ou possibilidades de escolhas distintas levam a uma distribuição de resultados que é crucial para entender a atividade econômica. Desigualdade importa e importa muito. Tanto no lado das famílias quanto no das empresas. No primeiro caso, percebemos que os chamados ‘efeitos indiretos’ possuem um protagonismo fundamental, como identificado no artigo Monetary Policy According to HANK de Greg Kaplan, Benjamin Moll e Giovanni L. Violante. Nem todos os agentes podem antecipar ou postergar consumo como resposta a mudanças nas taxas de juros, uma vez que essa possibilidade está restrita àqueles com riqueza acumulada e/ou acesso a crédito, e assim não respondem diretamente aos movimentos nas taxas de juros. Os efeitos indiretos, como por exemplo a decisão das empresas de aumentar a produção e, com ela, a demanda por trabalho, aumenta a renda dos trabalhadores e, finalmente, o seu consumo.

Ainda nos efeitos indiretos, há também o “relaxamento” da restrição orçamentária do governo, que agora pode aumentar gastos e transferências já que o serviço da dívida é menor, na margem, e cujo dispêndio, em geral, impacta mais a vida justamente daqueles agentes com as chamadas restrições de liquidez, e acabam por depender mais de serviços públicos e transferências. Salta aos olhos, portanto, a importantíssima interação entre política monetária e fiscal, algo já bastante presente na literatura, mas nem sempre no debate mais amplo (ou mesmo na formulação de políticas econômicas).

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Greg Kaplan (Reprodução)

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É por isso, inclusive, que Kaplan, Moll e Violante utilizaram esse arcabouço no trabalho The Great Lockdown and the Big Stimulus: Tracing the Pandemic Possibility Frontier for the U.S. para entender como a economia responde ao choque da Covid-19, um choque nada trivial, uma vez que impactos na oferta agregada (na produção das empresas) possuem desdobramentos na demanda agregada. Em trabalho recente, Veronica Guerrieri, Guido Lorenzoni, Ludwig Straub e Iván Werning, Macroeconomic Implications of COVID-10: Can Negative Supply Shocks Cause Demand Shortages?, ajudam a compreender o problema. No artigo, eles consideram a possibilidade de que alguns setores sejam “desligados” durante a pandemia (por exemplo, em função de precauções de saúde pública). Essa abordagem expõe, inclusive, que existem certos limites para gerar um efeito multiplicador de gastos do governo durante uma pandemia.

E o lado das empresas? Em trabalho recente, intitulado The Supply-Side Effects of Monetary Policy, David Baqaee, Emmanuel Farhi e Kunal Sangani propõem um novo canal: a produtividade. Em geral, a chamada “produtividade total dos fatores” (PTF) é tratada como exógena em relação às escolhas de política monetária (e fiscal), mas isso pode não ser o caso (veja a primeira nota do texto). Ao considerarmos, no entanto, que as empresas possuem respostas distintas a choques monetários, a realocação de recursos na economia pode gerar, endogenamente, mudanças na PTF.

Por simplicidade, dividamos as empresas de cada setor em dois grupos: as que possuem altos markups e as que possuem baixos markups. Geralmente, definimos um markup nas ciências econômicas como um fator que faz com que o preço de um produto esteja acima do seu valor socialmente eficiente. Algumas empresas se distanciam muito do nível eficiente (markups altos) e outras, um poucos menos (markups baixos), em função do seu poder de mercado.

Agora, imaginemos o mesmo choque monetário: queda nas taxas de juros. Além dos canais discutidos anteriormente, a maneira como as empresas respondem a essa mudança gera impactos na PTF. Muitas vezes (e não necessariamente isso é intuitivo), os markups possuem um comportamento contra-cíclico, isto é, vão na direção contrária do ciclo econômico (isso não vale para todos os setores simultaneamente, mas como um comportamento médio, e dependem, fundamentalmente, da origem do choque). Quando o PIB sobe, eles diminuem; quando o PIB diminui, eles aumentam. Há vários motivos para isso, como comportamentos estratégicos oligopolistas, rigidez nominal de preços, fricções nos mercados financeiros, mudanças nos markups desejados, fricções no mercado de crédito, a formação de hábitos por parte dos consumidores, dentre outros. Para o leitor interessado (e já bem iniciado no estudo da economia), há a revisão feita por Rotemberg e Woodford em 1999, The Cyclical Behavior of Prices and Costs.

Retornemos à expansão monetária. Aqueles impactos iniciais levam a aumentos dos custos (marginais) com insumos, trabalho e aquisição de capital. Como os markups são contra-cíclicos, eles diminuem nesse momento, o que significa que os preços, se subirem, o fazem de maneira menos do que proporcionalmente aos custos.

A queda nos markups acontece para os dois tipos de empresas que abordamos, mas o repasse é diferente entre elas. Para aquelas com níveis mais baixos, como elas já trabalham próximas ao seu nível de eficiência, não há muita margem para apertar e, portanto, o movimento dos preços é mais próximo ao aumento dos custos. Já para as empresas com níveis mais altos de markups, há a possibilidade dos seus produtos se tornarem mais competitivos ao manterem os preços constantes (ou aumentarem os preços em uma proporção menor do que a do aumento nos custos e do aumento dos preços dos concorrentes). Isso faz com que os markups diminuam (mais) nesse tipo de empresa, tornando os seus produtos mais atraentes. Com um maior direcionamento de recursos para essas empresas, a economia se aproxima do seu nível eficiente.

A produtividade total da economia pode aumentar após uma política monetária expansionista, o que é um resultado surpreendente. Os autores nos mostram, portanto, que as quedas nos juros geram efeitos que não estão restritos apenas à demanda, mas também abrangem a alocação de recursos e produtividade da economia como um todo, o que nós sabemos, possui efeitos importantes de longo prazo. Tenhamos cautela, no entanto. Isso não significa que a solução para os problemas de produtividade de uma economia seja imprimir moeda ou cortar os juros de maneira indiscriminada. Longe disso. Aqui há apenas a evidência de um novo canal a ser considerado como a realocação de recursos e a resposta de precificação das empresas intensifica os efeitos da política econômica.

No belíssimo texto de Charles Jones, Intermediate Goods and Weak Links in the Theory of Economic Development, compreendemos que, para a literatura de crescimento de longo prazo, as relações entre (e nas) cadeias produtivas amplificam distorções e impactam diretamente o comportamento da produtividade. Agora, percebemos também que mesmo no curto prazo, essas relações podem ter impactos na produtividade já no curto prazo, a qual gera desdobramentos mais longevos.

Em suma, é crucial que consideremos a diferença entre os agentes, seja nas suas características e/ou nas suas escolhas, para entendermos melhor como as políticas econômicas se propagam, como elas interagem e quais fatores aumentam ou diminuem a sua potência.

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(Bernard Herrmann, 1977)

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Notas:

[1] Ainda que exista evidência de causalidade entre taxas de juros — e quantidade de moeda — e produtividade total dos fatores, ao menos no que diz respeito à precedência temporal, como evidenciado no trabalho de Charles Evans, Productivity shocks and real business cycles.

[2] É verdade também que, se por um lado os juros menores criam um incentivo para gastar, eles também fazem com que o processo de capitalização das poupanças de famílias e empresas ao longo do tempo leve a montantes menores. A isso chamamos “efeito renda”, que gera um incentivo na contramão do efeito anterior. Em geral, o primeiro é mais forte do que o segundo e cortes nas taxas de juros estimulam a atividade econômica. Em casos menos frequentes, como os que chamamos de ineficiência econômica (junto a outras características), é o contrário, e juros menores podem criar incentivos na direção oposta, mas deixemos isso para um próximo texto.

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Agradeço o olhar atento e os comentários precisos de João Cortese, eximindo-o, obviamente, de quaisquer erros remanescentes no artigo.

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