por Pedro Vicente de Castro
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A principal linha de análise da ciência política sobre a relação entre um chefe de governo e seus ministros aborda esse tema pelo ângulo da dinâmica de formação de coalizões. Em um sistema multipartidário, o partido de um presidente ou primeiro-ministro dificilmente contará sozinho com uma maioria no legislativo, necessária para aprovar projetos de leis e outras medidas. Diante disso, um chefe de governo vai geralmente convidar outros partidos para participarem do governo, distribuindo a chefia dos ministérios entre políticos indicados pelos líderes desses partidos.
Isso significa que um ministro tem, ordinariamente, dois “patrões”: o presidente e o partido que o indicou. Essa situação gera uma série de questões sobre como se desenrola a cooperação e, eventualmente, o conflito entre chefe de governo, ministros e partidos aliados. Essas questões são objeto de uma vasta e sofisticada literatura na ciência política.
Mas a dinâmica de formação de coalizões não esgota a relação entre chefes de governo e seus ministros. Por isso, é interessante considerar o que a teoria política sobre regimes não democráticos e sua experiência histórica pode nos sugerir. A escolha de conselheiros ou ministros é uma questão central em regimes não democráticos. Isso acontece porque nenhum autocrata governa sozinho. Na prática, todos dependem de seus conselheiros para obterem informações e implementarem suas decisões.
Ao escolher seus conselheiros, um governante precisa equilibrar dois objetivos que não são plenamente compatíveis: a lealdade pessoal do candidato e seu talento ou habilidade. Talento e habilidade aqui não têm nada a ver com expertise técnica, aquela atestada por diplomas ou qualquer coisa que o valha. Pelo contrário, refere-se a um certo juízo afinado, uma certa perspicácia em interpretar a realidade e concluir qual a decisão politicamente mais acertada diante deles. É o que o teórico político florentino Nicolau Maquiavel chama de virtude.
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A sobrevivência política e até física de autocratas depende, em maior ou menor medida, do exercício desse tipo de habilidade. A imagem do monarca como um sujeito que recebe seu poder de mão beijada com a morte do seu antecessor e o exerce até a sua própria é historicamente imprecisa. Ela é tanto mais acurada quanto menor o poder do monarca.
As regras para a sucessão da coroa britânica estavam praticamente todas estabelecidas ao final do século XVIII. Foi nesse mesmo século que se sedimentou a prática de que o monarca britânico não governa. Quem governa é o parlamento. As regras para a sucessão da coroa russa, por seu lado, nunca foram estabelecidas e a figura do tsar deteve poder absoluto por quase 300 anos.
Não por acaso, cada sucessão ao trono russo oferecia uma oportunidade para conspirações palacianas e golpes de Estado. A situação da maioria dos monarcas durante a maior parte da história esteva entre a do rei britânico e a do tsar. Tomar decisões politicamente acertadas era importante para que se mantivessem no poder. Uma série de escolhas desastradas poderia lhes custar o trono e até a cabeça. Contar com conselheiros habilidosos ajudava a evitar esse risco. Essa também é a situação de ditadores modernos.
O problema, do ponto de vista do autocrata, é que políticos habilidosos tendem a ser também ambiciosos. Eles podem cobiçar o lugar do chefe e se envolver em conspirações palacianas para tirá-lo do poder. Ou apenas se preocuparem mais com sua própria sobrevivência política do que com aquela do autocrata, o que significa que podem abandonar o barco em situações críticas.
Diante desses riscos, um autocrata vai buscar conselheiros não apenas habilidosos, mas leais à sua pessoa. Só que esse é um equilíbrio difícil de alcançar. A melhor estratégia para garantir lealdade pessoal dos conselheiros é escolher candidatos cuja sobrevivência política dependa totalmente da sua vontade. Esses conselheiros permanecem politicamente relevantes apenas enquanto o autocrata quiser e são relegados à insignificância se o desagradarem.
Essa estratégia, contudo, tem tanto mais sucesso quanto mais politicamente incompetentes forem os conselheiros. Conselheiros habilidosos terão bases próprias para seu poder ou serão capazes de criá-las, tornando sua demissão politicamente custosa e, dessa forma, adquirirão algum grau de independência em relação ao autocrata.
Autocratas (ou projetos de autocratas) que desejem perseguir essa estratégia buscarão eliminar politicamente e até fisicamente todos os políticos habilidosos que possam colocar em risco seu poder. A ascensão de Josef Stálin ao poder absoluto na União Soviética se enquadra nessa lógica: primeiro ele se alia à “direita” para eliminar seus adversários à “esquerda” e depois dá uma guinada à “esquerda” para eliminar a “direita”.
Quando essa estratégia é bem sucedida, o que resta são políticos cuja sobrevivência depende totalmente dos caprichos do autocrata. Para garanti-la, eles vão louvar as qualidades do líder em público e defendê-lo desavergonhadamente de toda e qualquer crítica. Eles jamais vão contrariar o líder, mesmo que isso signifique omitir informações que podem desagradá-lo. Em suma, serão um bando de bajuladores. É assim que os teóricos antimonarquistas ingleses do século XVII descrevem os cortesãos de seu tempo.[1]
Lealdade conquistada dessa forma tem seu custo. Cercado de bajuladores que louvam suas qualidades e escondem fatos desagradáveis, o autocrata corre o risco de se tornar cada vez mais alheio à realidade e, portanto, mais vulnerável a ser pego de surpresa por crises que poderiam ter sido antecipadas. Uma estratégia para lidar com isso é suspeitar de todos ao seu redor o tempo inteiro e atacá-los ao menor indício de deslealdade. Não por acaso, paranoia é um traço notório de vários ditadores.
Conselheiros não são importantes para um autocrata apenas porque o ajudam a tomar decisões politicamente acertadas. Eles também podem assumir a responsabilidade por ações impopulares, permitindo que as pessoas alimentem a ideia de que o autocrata, na verdade, discorda delas – ou discordaria se soubesse do que está acontecendo.
A história britânica, de novo, oferece exemplos. No início dos embates entre rei e parlamento que culminaram em guerra civil no século XVII, essa era uma maneira de políticos insatisfeitos reclamarem da política real sem criticarem a pessoa do monarca: “o rei é bom e justo, mas está cercado de conselheiros corruptos e oportunistas.”
Da mesma forma, no final do século XVIII, colonos americanos descontentes com a política perseguida pela metrópole escreviam diretamente ao rei para reclamar das injustiças cometidas pelo parlamento. O tom das cartas era de denúncia: a política metropolitana era um projeto de um parlamento tirânico, que mantinha o rei na ignorância. Os colonos estavam alertando-o sobre o que estava realmente acontecendo.[2]
Em ambos os casos, o faz-de-conta eventualmente acabou e o rei perdeu a cabeça, em um caso, e suas colônias americanas, em outro. Outro exemplo vem, de novo, da União Soviética. Relatos de sobreviventes da repressão contam que havia prisioneiros acreditavam que Stálin não sabia o que estava acontecendo. Tudo seria obra dos seus ministros, que agiam pelas suas costas.[3]
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A ciência política não costuma dar muita atenção a questões desse tipo quando analisa a relação entre o chefe de um governo eleito e seus ministros. É possível que isso se deva ao fato de que os aspectos para os quais elas apontam – lealdade, habilidade, etc. – são difíceis de serem observados e medidos. Cientistas políticos preferem analisar a dinâmica aparentemente mais transparente de formação de coalizões.
Mas as intuições que a teoria e a história de regimes não democráticos nos dão podem ajudar a entender o desenrolar dos acontecimentos envolvendo governantes eleitos e seus ministros. Especialmente quando eles não parecem seguir a lógica de formação de coalizões, como tem sido o caso no Brasil desde o ano passado.
Os paralelos com a política brasileira recente são vários. O leitor mais atento certamente ligará os pontos por conta própria.
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Notas:
[1] Quentin Skinner, Liberty Before Liberalism (Cambridge University Press, 2012).
[2] Edmund S. Morgan, Inventing the People: The Rise of Popular Sovereignty in England and America, Edição: Revised ed. (New York, NY: W. W. Norton & Company, 1989).
[3] Aleksandr I. Solzhenitsyn, The Gulag Archipelago 1918-1956: An Experiment in Literary Investigation, Edição: Reissue, 3 vols. (New York: Harper Perennial, 2007).