por José Augusto Filho
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A política externa dos EUA é tema de uma antiga polêmica. Desde o tempo dos founding fathers, ainda na segunda metade do século XVIII, tem oposto internacionalistas a isolacionistas. Os primeiros, impelidos pelo espírito do vanguardismo democrático, buscaram sempre exportar a liberdade, percebida como um anseio comum a todos os povos. Porém, levado ao limite, esse esforço pode converter-se em cruzada, num paradoxal liberalismo impositivo. Face a tal risco, os isolacionistas, por sua vez, preferiram a sóbria recomendação de George Washington, que proclamou em seu discurso de despedida como primeiro presidente dos EUA: “É nossa verdadeira política evitar alianças permanentes com qualquer parte do mundo estrangeiro”. Em um mundo crescentemente iliberal, contudo, tal estratégia pode se revelar tão ou mais temerária.
O dilema internacionalismo versus isolacionismo dá-se nesse novo contexto, que conjuga recessão democrática com a perda de poder relativo por parte dos EUA. E nele já notamos uma inflexão: depois do interregno Trump, que buscou afastar os EUA de diversos compromissos no estrangeiro, Biden parece disposto a retomar a política de projeção global, cultivada desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo o novo governo, voltar a liderar seria o melhor caminho “para manter os americanos seguros, prósperos e livres”.
O momento parecer propício para essa tentativa de retomada. O isolacionismo dos anos Trump pôs à prova a sustentabilidade da governança internacional criada pelos EUA e seus aliados, nos anos 1940. O fato de ela ter-se conservado de pé não apenas provou a solidez da sua base liberal; também evidenciou o excedente de poder dos EUA, seu principal criador e estimulador. Confiante, o novo governo busca agora retomar ao menos parte do antigo protagonismo norte-americano. Tal objetivo encontra-se explícito na Estratégia de Segurança Nacional “provisória”, divulgada por Washington na primeira semana de março.
O documento expõe as linhas gerais e a ideologia norteadora da política externa do governo Biden. Encabeçam a lista de prioridades: a defesa dos ideais e valores da ordem política doméstica; o apoio ao multilateralismo e a competição com a China, percebida por Washington como maior ameaça global aos EUA. Mas transformar tal estratégia em políticas não deverá ser fácil. Para reclamar para a América o centro do palco internacional, Biden terá de enfrentar desafios novos e antigos, dentro e fora de casa.
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O crepúsculo da democracia
Algo paradoxalmente, a retomada da projeção internacional dos EUA precisará começar no seu âmbito doméstico, pela revitalização do ideal democrático junto à sua própria população. É que a onda global de nacional-populismo não poupou o país. De tão violentos, os protestos contra o seu processo democrático chegaram mesmo à invasão ao Capitólio. A pacificação de uma sociedade polarizada entre os ganhadores e os perdedores da globalização parece ser, de longe, o primeiro e o maior desafio do novo governo.
É certo que foi por não se sentir representada por uma elite política distante,que uma parcela expressiva do eleitorado votou em Trump. Mas não foi apenas por isso. Trump soube explorar um sentimento difuso por boa parte da população americana: aquele segundo o qual a América teria negligenciado a promoção da prosperidade do seu povo, a fim de priorizar seu papel de guardiã da ordem internacional. Eis a reivindicação sintetizada no bordão “America First”.
Parte considerável dos norte-americanos está desencantada com o ideal do american way of life. A classe média do país encolhe há mais de quatro décadas. De acordo com dados da Pew Research Center, de 2015, “adultos mais jovens, de 18 a 29 anos, estão entre os perdedores notáveis, com um aumento significativo em sua participação nas camadas de renda mais baixa”. Estatísticas antes associadas à realidade de países subdesenvolvidos, agora exemplificam a crescente pobreza e desigualdade de renda nos EUA. As patologias do tecido social da América são profundas e evidentes nos dados sobre crime, uso de drogas e famílias monoparentais referidos por Robert Putnam, em seus estudos sobre o declínio do capital humano na América desde o início dos anos 2000.
Em tal quadro de desilusão com os ideais americanos, o combate ao apelo do “America First”, passa pela redescoberta da correlação positiva entre a ordem internacional liberal e o bem-estar doméstico. Por isso, a Estratégia de Segurança Nacional “provisória” acerta ao estabelecer que o “comércio e as políticas econômicas internacionais devem servir todos os americanos, não apenas alguns poucos privilegiados”.
A incapacidade da democracia norte-americana em gerar paz, liberdade e prosperidade para a sua população desvaloriza o capital político da América. O encolhimento da influência mundial dos EUA permite às potências adversárias atuarem de forma cada mais desinibida. A quase aliança entre Rússia e China tem o claro objetivo de enfraquecer a democracia liberal, modelo que consideram ser o maior obstáculo aos seus objetivos geopolíticos. Nesse sentido, a Rússia adota práticas da antiga KGB a fim de debilitar as instituições democráticas ocidentais, fomentando a discórdia entre aliados dos EUA, disseminando a corrupção e promovendo campanhas de desinformação para interferir em eleições.
Tradicionalmente mais discreta e até recentemente a grande beneficiada pela globalização promovida pelo Ocidente, a partir de 2016, a China passou a buscar maior protagonismo na arena internacional. Nos últimos anos, seu governo pautou-se por uma estratégia mais agressiva de moldar as relações internacionais segundo os interesses do Partido Comunista Chinês. Na medida em que fragilizam a ordem liberal, as políticas externas da Rússia e da China servem para fortalecer o apelo do capitalismo autoritário chinês, apresentado como modelo superior à democracia ocidental.
Contudo, o propósito primordial de russos e chineses não é ideológico. Por certo, a combinação de peso político-econômico e alta capacidade militar tende a atrair às órbitas de Rússia e China governos autoritários bem como democracias em dificuldades. Mas antes de exportar seus modelos de regime, o que o time sino-russo pretende é minar a democracia liberal. Pois, na medida em que encoraja o respeito ao Estado de Direito, à democracia e aos direitos humanos, cria um senso de civismo global que une os países comprometidos com a liberdade e isola os recalcitrantes. O fato é que, desenvolvida sob os valores de sua ordem política doméstica, a cooperação entre as democracias liberais tende a ultrapassar a dimensão utilitária de alianças e tratados. O que definitivamente não é prioridade de regimes autoritários que se movimentam orientados por pressupostos do poder.
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O retorno ao multilateralismo
Com a Estratégia de Segurança Nacional “provisória”, os EUA acenam com a renovação dos compromissos com seus aliados históricos, e a promessa de reconstrução da ordem multilateral das democracias liberais do pós-Guerra. Foi a Europa o principal aliado da América na estruturação da cooperação que permitiu ao Ocidente conter o comunismo soviético. E se a falta de capacidade militar e disposição para usar a força tornou a Europa dependente dos EUA em matéria de segurança e defesa, ao ameaçar abandonar a OTAN, Trump alertou os europeus para a necessidade de contribuir mais efetivamente para a Aliança Atlântica.
A Europa é imprescindível ao esforço norte-americano de manter sua primazia mundial face à ascensão da China. A histórica presença europeia na Ásia-Pacífico, teatro que promete albergar as mais intensas disputas geopolíticas do século, é fundamental para a formação de uma frente de democracias na região. Os principais parceiros e aliados de Washington, incluindo Índia, Japão (novo líder da ordem liberal na Ásia), Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia devem compor estruturas de cooperação que compartilham responsabilidades e resultados equitativamente.
Na falta de uma união das democracias, os EUA dificilmente terão meios de conter o avanço da China. O insaciável apetite chinês para ampliar sua influência global ficou demonstrado no fim de 2020, quando Beijing consolidou o tratado Parceria Regional Econômica Abrangente (RCEP). Maior pacto comercial do mundo, reúne 15 países da Ásia-Pacífico, abarca 1/3 da economia global e confere centralidade à China na região mais vibrante em desenvolvimento. Por isso, urge aos EUA rever o regime de comércio internacional, largado à própria sorte por Trump, que deixou a Organização Mundial do Comércio (OMC) sem diretor-geral e paralisou os painéis de julgamento ao bloquear a nomeação de juízes.
Retomar a liderança de organizações multilaterais é outra das metas listadas na Estratégia de Segurança Nacional “provisória”. Embora estigmatizada por alegadamente servir aos propósitos dos EUA e seus aliados, atualmente, a ONU tem sido o principal locus onde Estados autoritários reclamam razões de soberania para violar direitos humanos em seus territórios. Membros permanentes do Conselho de Segurança, Rússia e China usam de suas prerrogativas para vetar medidas que ameacem seus interesses estratégicos.
Dentre os desafios que o governo Biden deverá enfrentar para fortalecer a ONU, remediar sua captura por regimes autoritários e reverter a sua crescente irrelevância, destacam-se: (1) uma reforma da instituição, condizente com a atual distribuição global do poder, e a criação de organizações preparadas para responder aos desafios deste século; e (2) aqueles enumerados na Estratégia de Segurança Nacional “provisória”, nomeadamente, o enfrentamento à pandemia de Covid-19 e seus efeitos, as mudanças climáticas, o deslocamento forçado, a migração, o autoritarismo digital e a governança tecnológica. Tratam-se, todos esses, de desafios que poderão ser enfrentados apenas multilateralmente.
A Estratégia de Segurança Nacional “provisória” parece ter sido feita sob encomenda para agradar aos internacionalistas liberais. No atual contexto de pandemia, em que o multilateralismo pode encontrar sua redenção — ou aprofundar seu descrédito —, o governo Biden aposta nos valores compartilhados de democracia e liberdade para unir o Ocidente contra uma China cada vez mais assertiva. O isolacionismo e o unilateralismo de Trump provaram-se ineficientes em conter o autoritarismo de recalcitrantes. Antes, parecem ter revigorado aqueles que atuam para erodir as instituições democráticas ocidentais.
Contudo, os Estados desafiantes ainda estão longe de equiparar o poder dos EUA. Tal poder, baseado, como aponta Biden, na “diversidade, economia vibrante, sociedade civil dinâmica e base tecnológica inovadora, valores democráticos duradouros, rede ampla e profunda de parcerias e alianças e os militares mais poderosos do mundo”, permanece sem rival à altura. Assim, a reassunção da liderança do mundo pelos EUA parece depender menos da oposição de recalcitantes do que do interesse da América em retomar o fardo da provisão de bens públicos globais. Contudo, se lograsse fortalecer a sua democracia interna e reestabelecer as alianças que caracterizam a comunidade das democracias liberais, já seria um grande feito. Em um contexto internacional desafiador de competição entre as grandes potências, as dificuldades apenas mostram aos americanos que o tempo é de resiliência.
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