Politicamente correto, interesse científico e reacionarismo: o problema do consentimento

Eis a importância do debate científico: permitir a evolução intelectual da espécie humana através do enfrentamento às intimidações atróficas reacionárias e às proposições metastáticas do politicamente correto.
O presidente americano Donald Trump. (FOTO: Chip Somodevilla/Getty Images/AFP)

por Tiago Pavinatto

Donald Trump tuitou que seu país (seu, posto que tomou para si da mesma maneira que um menino mimado agarra seu brinquedo) não permitirá e nem aceitará qualquer pessoa transgênera no serviço militar. Gritaria do lado esquerdo e de parte do lado direito. Aquele, politicamente correto, brada em protesto; este, reacionário, urra de prazer. Os que ainda pensmé e que são capazes de ultrapassar a barreira do primeiro grau de uma equação, estes param para pensar.

Parando para pensar, inescapável a conclusão segundo a qual, para que exista vida em sociedade, para que se imponha uma civilização por mais incivilizado que seja o elenco, imperioso que tudo tenha limite… até deus. E, com um pouco de boa vontade, essa limitação divina é de fácil compreensão, sendo desnecessário percorrer as tortuosas e inquietantes reflexões sobre o paradoxo da onipotência (deus poderia criar uma pedra que nem ele pudesse carregar?) de J.L. Cowan, C.S. Lewis, Peter Geach ou mesmo de são Tomás de Aquino.

Por qualquer ângulo que se analise, deuses e asseclas, sob qualquer rubrica, devem ter limites para que haja civilização. Não há espaço para sacrifícios de Isaac, para atos fundamentalistas que promovam decapitações e suicídios homicidas, nem para crimes de trabalho forçado, agressões físicas e verbais, tudo em nome de deus.

O politicamente correto, tradução dos termos econômicos marxistas para os culturais a fim de arruinar a cultura ocidental (e, hoje, estamos cercados pelos frutos daquilo que começou a ser efetivamente plantado pelo ambiente acadêmico em meados do século anterior), precisa de limites, posto que vem afiançando, ao longo do tempo, fundamentalismos religiosos, incentivando a falta de limites não só daquilo que se faz em nome de deus, mas mas também de diabos ou de um único satã, seja o tinhoso, como afirma Henry Ansgar Kelly, “um funcionário do Governo Divino, encarregado de testar e disciplinar a humanidade”, “que suspeita de todos, inclusive de Jesus”, ou seja, um “Promotor Público” como Janot ou Dallagnol, seja ele a personificação do mal, o “Anjo de Javé” visto de pé com sua espada na mão apenas pela jumenta de Balaão e por ninguém mais.

Muito citado e nada lido, Hobbes observa que, para nos livrarmos da condição de guerra de todos contra todos, fundamental que não façamos aos outros aquilo que não desejamos para nós mesmos, bem como haja concordância na resignação ao direito sobre todas as coisas e contentamento com a mesma liberdade que se permite aos demais. Portanto, a composição de vontades não lesivas, o que chamaremos simplesmente de consentimento (interesse legítimo fenomenizado pelo Direito), é a tônica civilizatória no qual residem os limites.

É pela falta de limites, de compromisso com o contrato social, que o politicamente correto deve ser policiado no campo das identidades de gênero, crescentes em progressão geométrica, e da orientação sexual que, de igual forma, encontra-se na iminência de uma expansão. Já o reacionarismo é daninho pelo excesso de limites, muitos deles ilegítimos.

Posto que a evolução da espécie humana não parou em Darwin e dado que Psiquiatria e Neurologia são ciências novas que têm muito a revelar, entendemos que somente as pessoas cruéis e xucras não se comovam, por exemplo, com o drama das pessoas transexuais. Partindo para outras identidades de gênero, é compreensível, por simples exercício de empatia, que as pessoas queiram e lutem pelo reconhecimento daquilo que sentem e, portanto, queiram entrar na dança da taxonomia do Universo. Todavia, para que o debate seja válido e contribua socialmente frente a um fato antes ignorado ou novo, importante se observem dois fatores: a natureza e o consentimento.

O politicamente correto pode até abarcar, para que crie a divisão social almejada, os aspectos naturais do fato, podendo restar circunscrito a eles ou, de maneira artificial (dado que é um desvirtuamento do debate científico), superá-los, mas buscará romper o consentimento. O reacionarismo, por sua vez, poderá, dependendo do caso, negar a própria natureza que se descortina para manter um consentimento que, pela evolução, tornou-se ilegítimo. Já o debate científico, mesmo reconhecendo um fato como natural, poderá propor meios de compensação ou contenção caso decorra dano ao consentimento ferindo de morte interesses legítimos.

Eis a importância do debate científico: permitir a evolução intelectual da espécie humana através do enfrentamento às intimidações atróficas reacionárias e às proposições metastáticas do politicamente correto. A pedofilia é um caso paradigmático neste debate: a Associação Americana de Psiquiatria (APA na sigla em inglês), publicou, nos idos de 2013, a quinta edição do seu Manual de Diagnóstico e Estatística das Desordens Mentais (DSM-V) e, na sua primeira impressão, apontou a pedofilia como orientação sexual.

Tal qual a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade, o pedófilo não tem escolha e nenhum controle sobre a atração sexual que sente (e a única política que se vislumbra para o caso é a castração química). Seria hipócrita ou cretino negar um silogismo tão evidente, mas isso não quer dizer que os pedófilos deverão ser aceitos e poderão exercer livremente a sua sexualidade só porque se cogita que a relação pedofílica seja uma orientação sexual

As relações homossexuais, heterossexuais e bissexuais não merecem nenhum tipo de repúdio ou aresta quando consensuais – e todas elas podem ocorrer de forma não consensual (estupro). Já a relação pedofílica nunca é consensual; o menor é incapaz e, portanto, sempre vítima.

O debate científico, assim, não defende a aceitação social da pedofilia, posto que reclamar qualquer reconhecimento redentor nessa seara arruinaria o contrato social. Já o politicamente correto, dado seu compromisso com a ruptura da civilização, é capaz de “repensar” a pedofilia. O reacionarismo, por sua vez, condena até mesmo o interesse científico pelo tópico.

Retirando tal munição do politicamente correto e também ou tão-somente querendo evitar a gritaria raivosa dos conservadores que têm real dificuldade para diferenciar o “relativismo moral” progressista da sua própria “intelectualidade relativizada”, a APA voltou atrás e alegou que cometera um erro, trocando a expressão primeiramente publicada por “interesse sexual” e reafirmando que a desordem pedofílica é uma parafilia, um distúrbio psíquico (uma doença). Na essência, nada muda.

A atração sexual que se manifesta nos pedófilos, da mesma forma que a fé mais sincera e profunda no fanático religioso, deve ser limitada em nome da civilização que se sustenta no consentimento. É essa limitação que diferencia o debate científico das artimanhas do politicamente correto e das certezas dos reacionários.

Somos a jumenta a avistar o politicamente correto e o reacionarismo e a desviar deles… mesmo correndo o risco de espancamento.

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