por Odilon Caldeira Neto
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Qual o papel da mentira entre expressões como “Mussolini tem sempre razão” ou, mais recentemente, “Conheceis a verdade, e a verdade vos libertará”? A relação entre a mentira e a política é algo que caracterizou as variadas expressões dos fascismos, embora essa relação não tenha sido propriedade absoluta de regimes e governos autoritários que tiveram (ou têm) traços mais ou menos fascistas.
É a partir de um rigoroso estudo sobre a história das mentiras fascistas que Federico Finchelstein, professor da The New School For Social Research e referência nos estudos sobre os fascismos e os populismos, apresenta Uma Breve História das Mentiras Fascistas — trazido ao público brasileiro pela Editora Vestígio —, uma análise sobre os impactos dos discursos fascistas e os usos das mitologias políticas criadas em seu entorno. Mas a análise de Finchelstein vai além de qualquer tentação de categorização das mentiras comuns aos líderes, movimentos e regimes fascistas que se desenvolveram em todos os continentes na primeira metade do século XX.
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Essas mentiras e seus argumentos, que se mantém tão atuais nas crises da democracia representativa no século XXI, auxiliaram nos processos da construção de estratégias discursivas que, em última instância, compuseram parte do arcabouço e da estruturação de processos genocidas. Afinal de contas, antes de se tornar uma prática e um sistema, os processos genocidas dos fascismos trabalhavam no campo cultural, imagético e das emoções. A partir dessas esferas, retirava-se o estatuto de humanidade de minorias e categorias sociais tidas como indesejáveis, acusando os “inimigos” de tudo aquilo o que as mentiras fascistas “denunciavam”. Assim, era criada a oportunidade de um consenso em torno das mentiras fascistas e, ainda mais importante, nesses processos de soluções para aqueles supostos problemas.
Um dos pontos de grande importância de Uma Breve História das Mentiras Fascistas é que a obra é destinada a discutir mais que as mentiras em si. Isto é, embora os argumentos e os discursos fascistas em torno da mentira são analisados rigorosamente no livro, Federico Finchelstein está particularmente interessado em entender qual é o impacto da construção social das mentiras fascistas. São elementos de grande importância para a criação de uma liderança incontestável, assim como na apresentação da ditadura fascista como uma espécie de democracia subvertida e, claro, na criação dos inimigos internos (e externos) que seriam combatidos por meio do fascismo em ação.
Talvez seja esse um dos impactos mais destrutivos das mentiras fascistas de ontem e de hoje. Mais que a sua estrutura de organização, são importantes, em termos de análise (e devidamente interpretar por Finchelstein) a capacidade de mobilização das mentiras fascistas. Mobilização que pode ser lida tanto como fator de convencimento e filiação, mas também de dedicação à causa. Pois na ótica fascista, os fascistas ideais são justamente aqueles que demonstram a afeição, adoração e dedicação à causa, o que pode ser medido inclusive na crença nas mentiras fascistas, veiculadas (e defendidas) como verdades inquestionáveis. Nesse sentido, para os líderes — e especialmente — para os militantes fascistas, as mentiras tinham função de propor uma realidade alternativa, onde o fascismo operava a sua própria cosmovisão, uma subjetividade particular em detrimento à racionalidade e à intelectualidade. Isto não subtrai, claro, que os fascismos tiveram a sua expressão intelectual, mas justamente aquela assentada no desejo e na tentação de espalhar discursos e práticas em torno das mentiras fascistas.
Era justamente na dimensão transcendental do fascismo que as mentiras se articulavam com maior capacidade. Uma dimensão e perspectiva com feição quase religiosa, em que os mitos tinham capacidade de organização, de mobilização e de convencimento. Em torno das mentiras, os líderes fascistas se apresentavam como detentores da verdade. E como detentores da verdade, esses líderes desenvolviam duas operações de grande importância. A primeira delas era a construção da imagem do líder como o leitor da vontade popular e a sua própria representação. A representação da verdade e do povo, de modo que não haveria a possibilidade de existir uma verdade e o povo, senão no líder fascista. Quem estivesse contra ele, estava contra o líder, mas também conta a própria verdade e contra o povo. A segunda característica, era o movimento de impor e cobrar a fidelidade sem restrições. Uma fidelidade em que a dedicação à causa envolvia desde a identidade individual até a própria vida. Não à toa, a militância fascista era instada a dedicar a crença no fascismo e na adoração ao líder, na vida e na morte, não raramente dedicando a vida à causa.
O tema das mentiras fascistas e da distorção dos fatos e de suas narrativas se tornou mais um elo que liga as expressões dos populistas de direita aos líderes do fascismo histórico As duas frases do início do texto, que cobrem um arco de experiências históricas distintas, transparecem as presenças e continuidades de práticas autoritárias sobre a verdade e a mentira, do fascismo histórico aos líderes populistas da extrema direita atual. Afinal, um dos pontos que aproximam líderes autoritários de diversas orientações políticas, é justamente o desejo de construir mais que um consenso social sobre a sua própria legitimidade política. Ao líder, transparece o desejo de detenção da verdade e da mentira. Do passado e do presente. Por essa razão, Uma Breve História das Mentiras Fascistas é um livro essencial para entender, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, a forma como as mentiras fascistas são geradas e qual é o resultado de quando elas são colocadas em prática.
Outro ponto que merece destaque no livro de Finchelstein é a forma como ele analisa o fascismo como um fenômeno global. As discussões sobre o caráter internacional dos fascismos já é algo bastante consolidado nos estudos do tema, que se desvinculou de “determinismos” analíticos de diversas ordens, como questões econômicas (o fascismo como exclusivamente um produto de uma crise do capitalismo), contextuais ou continentais. Até por isso, os fascismos são analisados como um fenômeno transnacional, deixando de lado a particularidade italiana, europeia ou mesmo do período entre as duas guerras mundiais. Mas, ainda assim, esse “consenso” entre os estudiosos não significou o completo abandono à centralidade europeia em privilégio a uma análise atenta da “periferia” do fascismo. O trabalho de Finchelstein é muito rico no sentido de olhar, ao mesmo tempo, as diversas expressões do fascismo global com a mesma atenção, sem cair na tentação de reduzir a questão do fascismo global às tensões centro-periferia.
Ao mesmo tempo em que analisa as mentiras fascistas no mainstream italiano e alemão, o autor está preocupado em traçar paralelo e assumir as particularidades em torno do fascismo no Brasil, na Argentina, na Índia, Egito e em tantas outras localidades. E é também por essa razão que a obra se torna bastante propícia para entender as expressões mais recentes do populismo de direita no qual Finchelstein analisa esse contexto pós-fascista, em opção analítica bastante acertada. Em vez de cair na tentação de reduzir o presente ao passado, o livro traz o presente à luz do passado, auxiliando a entender quais seriam os trágicos impactos do encadeamento das mentiras fascistas na atualidade. Portanto, uma obra tão necessário quanto atual.
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