por Alberto Aggio
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O conceito de revolução passiva é reconhecidamente um dos pilares dos escritos gramscianos e alude originariamente a transformações históricas ocorridas a partir do século XIX, como desdobramento dos impactos da Revolução Francesa de 1789 na Europa. Esta categoria, voltada para a compreensão de processos de imposição capitalista nos quais não ocorreram ou fracassaram revoluções político-sociais, ou mesmo para compreender as dinâmicas político-sociais que se desdobraram de processos revolucionários que perderam ou arrefeceram este caráter, assume, como afirma Gramsci, o estatuto mais geral de um critério de interpretação na análise “de toda época complexa de transformações históricas” (GRAMSCI. 2002, p. 331).
Reconhecendo que essa é uma formulação geral, é importante ter em conta que há nos Cadernos do Cárcere um certo ritmo no desenvolvimento do conceito que, de acordo com Gramsci, parte de um pressuposto: “O conceito de ‘revolução passiva’ deve ser deduzido rigorosamente dos princípios fundamentais de ciência política: (1) nenhuma formação social desaparece enquanto as forças produtivas que nela se desenvolveram ainda encontrarem lugar para um novo movimento progressista; (2) a sociedade não se põe tarefas para cuja solução ainda não tenham germinado as condições necessárias, etc.”(GRAMSCI, 1975, p. 1827).
A preocupação de Gramsci estaria em compreender essencialmente os nexos que vinculam economia e política e, por conseguinte, o lugar do Estado, nos processos de afirmação da modernização capitalista que acabaram conformando, historicamente, processos de transformação real da sociedade muito menos óbvios do que aquele que se tornou o clássico exemplo da “revolução em ativação”, a Revolução Francesa de 1789. Para se compreender tais processos se deveria levar em conta, de acordo com Gramsci, que “o impulso para a renovação pode ser dado pela combinação de forças progressistas escassas e insuficientes em si mesmas (a despeito de seu elevadíssimo potencial, porque representam o futuro de seu país) com uma situação internacional favorável a sua expansão e vitória”. Desta forma, “quando o impulso do progresso não se encontra intimamente vinculado a um vasto desenvolvimento econômico local, que é artificialmente limitado e reprimido, mas que é o reflexo do desenvolvimento internacional que manda à periferia suas correntes ideológicas, nascidas com base no desenvolvimento produtivo dos países mais avançados, então, o grupo portador das novas ideias não é o grupo econômico, mas a camada de intelectuais, e a concepção de Estado da qual faz propaganda muda de aspecto: este é concebido como uma coisa em si, como um absoluto racional”(GRAMSCI, 1999. p. 428).
Por meio desta referência, pode-se inferir que a revolução passiva, compreendida como um critério de interpretação, possibilita pensar processos bastante variados de construção estatal e de modernização capitalista, implicando a sua verificação por meio da análise histórica. Isto porque a modernização capitalista e o Estado moderno não se generalizaram por meio de uma “revolução em ativação”, ainda que Gramsci tenha chamado atenção para o fato de que a Revolução Francesa de 1789 tenha “criado uma mentalidade”.
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De um ponto de vista teórico, a epistemologia gramsciana da “revolução sem revolução”, de acordo com Luisa Mangoni (1987), tende a individualizar um procedimento metodológico circular, isto é, “de um fenômeno definido como um paradigma interpretativo mais geral que, por sua vez, deve ser verificado concretamente à luz de específicas exemplificações históricas”. Para a mesma estudiosa, trata-se de um método de trabalho que “comporta uma progressiva articulação da mesma hipótese inicial”.
Supor, como se afirmou acima, que se pode supor a existência da revolução passiva, onde se dá “uma combinação de forças progressistas escassas e insuficientes por si mesmas… com uma situação internacional favorável à sua expansão e vitória”, implica trabalhar com a ideia de que “a complexa realidade política que está contida na ‘expressão metafórica’ da Restauração não pode ser lida como puro processo de conservação, a partir do momento que detrás do aparente imobilismo de uma ‘envoltura política’ ocorre, na realidade, uma transformação molecular das ‘relações sociais fundamentais’” (MANGONI, 1987). A metáfora da Restauração, referida ao período posterior à queda de Napoleão Bonaparte, que implicou o restabelecimento das monarquias na Europa, à primeira vista, esconde a sua verdadeira natureza de uma “evolução reformista” na qual o fundamental é a “transformação molecular” que se processa (DE FELICE, 1978). A revolução passiva, “uma construção linguística propositalmente paradoxal”, não pode ser vista, portanto, como uma reação integral à mudança social, esta sim melhor definida como uma “contrarrevolução” (VIANNA, 1997).
Aprofundando mais a abordagem do conceito, podemos dizer que a revolução passiva expressa essencialmente uma combinação de continuidade e mudança ou uma dialética entre conservação e renovação. Num processo desta natureza, o conjunto da sociedade é afetado pela modernização, como um processo de mudança estrutural, sem que haja uma transformação político-social de caráter radical. Analiticamente, a revolução passiva se reporta, portanto, a situações onde as soluções são, em geral, encaminhadas “de cima”, com o Estado e a camada de intelectuais vinculada a ele exercendo um papel preponderante, uma vez que atuam em substituição a uma burguesia estruturalmente débil na transição do momento econômico-corporativo para o ético-político, ou seja, na construção e consolidação do Estado moderno. O tipo de acordo político eventualmente firmado (formalmente ou não) entre frações das classes dominantes, mais avançadas ou retardatárias do ponto de vista econômico, ou mesmo com outros segmentos ou grupos sociais (como as camadas médias), assim como a ausência ou não de uma aliança com as massas populares, além da incompletude da reforma intelectual e moral ou do grau de frustração no processo de afirmação de uma vontade nacional-popular, à moda jacobina, transformadora do aparelho estatal, são todos elementos que compõem analiticamente o conceito e que necessitam da verificação caso a caso, para que se possa aferir os resultados e as possíveis alternativas que existiam diante dos sujeitos históricos.
Se é correto afirmar que a revolução passiva, como um critério de interpretação, refere-se historicamente a processos diferenciados de formação, consolidação e defesa do bloco histórico da sociedade capitalista, ou seja, aos processos pelos quais “o grupo econômico portador da função produtiva alcança sua elaboração superior, fundando um novo tipo de Estado, desenvolvendo um complexo de superestruturas novas” para dar suporte à “expansão generalizada de uma nova sociedade civil” (KANOUSSI & MENA, 1985, p.125/6), também é importante ressaltar que o conceito de revolução passiva possibilita uma ampla abertura para a análise histórica da “forma política que permite ao capital conservar o poder”, ou seja, do “reformismo preventivo dos Estados modernos” (KANOUSSI & MENA, 1985, p. 109 e 125). Em outros termos, pode-se sinteticamente dizer que a revolução passiva alude aos processos históricos de formação dos Estados nacionais e também à etapa de crise burguesa subsequente à sua consolidação originária, que demandará a intervenção do Estado na absorção da crise e regulação da função produtiva.
Remo Bodei afirma que “em todos os lugares, de fato, assiste-se a revoluções passivas, na Europa e na América, tentativas de racionalização da economia e de controle do consenso”; o mesmo autor observa que na história da Itália “uma série contínua de revoluções passivas” (BODEI, 1978:104/106). Franco De Felice observa que o conceito de revolução passiva é desenvolvido por Gramsci de forma a atingir graus de especificações determinados. Nesta chave de análise, Gramsci interpretou tanto a fase posterior à Grande Guerra e à Revolução de Outubro quanto a emergência do que ele chamou de americanismo, como “governo das massas e governo da economia . . ., estas novas casamatas através das quais passa a reconstituição do aparelho hegemônico das classes dominantes” (DE FELICE, 1978, p. 210).
Em relação ao trânsito ao primado burguês, além da passagem de caráter revolucionário, Gramsci concebe a possibilidade da imposição do “transformismo”. Neste sentido, após a avaliação da “Restauração” conforme exposto acima e a admissão de que o critério da revolução passiva serve para pensar a generalização do predomínio da burguesia, não apenas o caso francês passa a ser visto como “atípico” como também se junta aos países retardatários neste processo, como foram a Alemanha e a Itália, nada menos do que a Inglaterra. Existe aqui uma indicação importantíssima. Ela se expressa no fato de que a revolução passiva não pode ser vista como um fenômeno atinente apenas a países retardatários. Em outros termos, a revolução passiva não pode ser tomada exclusivamente como um critério de interpretação da passagem do “Oriente” ao “Ocidente” pela via da modernização, ainda que seja inteiramente pertinente a sua utilização para se compreender processos de modernização ou de “ocidentalização”.
Como se sabe, o qualificativo de “retardatário” aplicado a alguns países se prende fundamentalmente à construção tardia do seu Estado moderno e se expressa, na avaliação gramsciana, ao que se pode compreender como um “primeiro ciclo” da revolução passiva, aquele posterior à conjuntura europeia entre 1789 e 1848, o ciclo do Risorgimento italiano. Um “segundo ciclo” seria aquele desencadeado depois da Guerra de 1914 a 1918, do qual fazem parte o fascismo — resultante da primeira onda de revolução passiva depois da Revolução de Outubro —, o americanismo e o fordismo — fenômenos, novos à época, da fortaleza estrutural demonstrada pelo capitalismo — e, por fim, indo além de Gramsci, a socialdemocracia e o Estado de Bem-estar social do pós-guerra — manifestas expressões da pouco compreendida, mas cristalina “revolução passiva europeia” (VIANNA, 1995; VACCA, 1991).
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Neste segundo ciclo, estabelece-se um nexo de continuidade entre fenômenos aparentemente distintos mas que, por fim, evidenciam uma nova fase assumida pelo capitalismo, na qual passavam a predominar os modernos processos moleculares de transformismo social. Desta forma, a revolução passiva dessa fase poderia ser verificada no “fato de (se) transformar a estrutura econômica, ‘reformisticamente’, de individualista em economia segundo um plano” (GRAMSCI, 1975, p.1089; GRAMSCI, 1999, p.299/300), contraditando a prevalência individualística na esfera econômica e indicando a “necessidade imanente de (se) chegar à organização de uma economia de programação”, dirigida quer pela política, quer pelo Estado em sua trama privada.
Ocorre, assim, uma operação sutil de ampliação do conceito, visando apanhar as mudanças que se processaram historicamente: da tentativa de apreensão das formas pelas quais se processou a metamorfose “dos sujeitos sociais dominantes”, a revolução passiva passa a aludir, politicamente, ao modo de ser dos “seres dominantes” (DE FELICE, 1978, p.194). Avança-se, desta maneira, para a possibilidade de se observar e compreender não apenas as modalidades de trânsito ao moderno, mas também as modalidades de reprodução da dominação sob o moderno. Em outras palavras, nesta nova conformação, esta “moderna revolução passiva” (KANOUSSI & MENA, 1985) se reporta, assim, a uma fase capitalista distinta da época da formação dos Estados Nacionais. Neste contexto, opera-se a difusão da hegemonia burguesa entre as massas, “amplia-se o seu Estado, captura-se e assimila-se elementos importantes da cultura das classes subalternas, com o propósito apenas aparentemente paradoxal de organizar as massas “para mantê-las desorganizadas”; enfim, exclui-se a experiência estatal das massas, mas contempla-se, ainda que restritiva e controladamente, seus interesses econômico-corporativos. Nesta fase, marcada, de um lado, pelo desenvolvimento desigual do capitalismo a nível mundial, e de outro, pela pujança, universalização e “alcance objetivo” do fenômeno do “americanismo”, o Estado já não é mais o “vigilante noturno” ou “gendarme” e sim um Estado moderno que solda instituições e massas e que intervêm centralizadamente no processo de reprodução social do capital, mediando produção e consumo.
Portanto, ademais do chamado “diagnóstico da fase” presente na avaliação das mudanças morfológicas pelas quais passa o capitalismo, Gramsci adiciona uma outra abordagem dos processos de trânsito à ordem burguesa que se configura como decisiva para fundamentar a revolução passiva como um critério de interpretação. Trata-se da possível distinção entre modalidades de revolução passiva.
As gradações no processo de ingresso e solidificação do predomínio burguês estabelecidas por Gramsci entre Itália, Alemanha e Inglaterra são elucidativas. Não se trata apenas de estabelecer uma distinção em relação aos processos de alteração da ordem tradicional, sem levar em conta a luta política e a conquista do poder. Para Gramsci, a Itália se configura como o processo mais atrasado de revolução passiva, em comparação com os dois outros, porque é aí que a burguesia se mostrou mais débil e o jacobinismo mais ausente. “É a maior ou menor presença ativa do portador da antítese, mesmo que derrotado, o que singulariza uma forma atrasada de uma forma avançada” de revolução passiva, sintetiza Luiz Werneck Vianna. Continua o mesmo autor: “a variável-chave na tipologia gramsciana sobre processos de revolução passiva está no elemento jacobino” . . . “nem toda revolução passiva se cumpre com plena subsunção da antítese pela tese: o ator subordinado pode ser ativo (ou ter sido), sobretudo deve, e é a sua ação que vai qualificar o resultado final como mais ou menos ‘atrasado’” (VIANNA, 1997, p.73-74). Neste quadro comparativo, a Alemanha expressaria um processo intermediário, de presença ativa, mas de frustração do elemento jacobino, e a Inglaterra — com seu “transformismo ininterrupto” — a mais avançada modalidade de revolução passiva, uma vez que o jacobinismo se afirmou como parte constitutiva das origens da história moderna britânica.
Mesmo assim, a versão mais atrasada de um processo de revolução passiva não se configura como capaz de impedir que a hegemonia burguesa se faça pela introdução de elementos de “progresso” na formação social. Pela situação internacional, o processo de imposição burguesa e de modernização capitalista se torna irrefreável em seus efeitos de irradiação e expansão. Nestas circunstâncias, em todas as modalidades de revolução passiva o problema está em saber em que grau, alcance e através de que formas as classes subalternas terão constrangido o seu protagonismo.
Pode-se admitir, assim, que há modalidades específicas de revolução passiva condicionadas ou determinadas pelo tipo de ativação alcançado ou conquistado pelas classes subalternas. Não se trata, como advertiu Gramsci, da inversão dos sinais, em chave de “antirrevolução passiva”, ou, ao contrário, do ator subalterno, em prospecção, assumir para si a revolução passiva como “programa”. Gramsci chamava atenção para o fato de que o conceito de revolução passiva continha o “perigo do derrotismo histórico, ou seja, de indiferentismo, porque a formulação geral do problema pode fazer crer num fatalismo etc.; mas a concepção permanece dialética, isto é, pressupõe e até postula como necessária uma antítese vigorosa e que disponha intransigentemente em campo todas as sua possiblidades de explicitação”.
Entretanto, a modernização também carrega consigo um processo inelutável de democratização social que, do ponto de vista das classes subalternas, demanda e demandou uma ação política realista no sentido de “traduzir a revolução passiva” num outro signo: o de fazer com que a mudança venha a preponderar sobre a conservação. É esta avaliação que possibilitou a Gramsci sistematizar a complexidade que havia assumido a sociedade moderna: a revolução passiva expressaria, simultaneamente, positividade “em termos de processo, uma vez que, no seu curso, a democratização social, por meio de avanços moleculares, se faz ampliar” e negatividade “porque a ação das elites se exerce de modo a ‘conservar a tese na antítese’” (VIANNA, 1997).
As modalidades de revolução passiva guardam, portanto, este aspecto paradoxal e, encaradas desta maneira, aparecem à análise como processos abertos, a serem aferidos em seu percurso e resultados através do comportamento e protagonismo dos sujeitos históricos.
Se levarmos em conta a filiação de Gramsci ao marxismo e ao comunismo de sua época, não há como não notar a grande inovação presente em toda essa formulação que se pode reconhecer nos escritos dos Cadernos do Cárcere. De acordo com Giuseppe Vacca, o conceito de revolução passiva formulado por Gramsci cumpre a função de “superar as limitações da teoria da história como história da luta de classes” e acabará por se tornar “um paradigma historiográfico da teoria da hegemonia” (VACCA, 2016, 143), reconhecidamente o núcleo central do pensamento político de Gramsci.
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Referências
BODEI, Remo, “Gramsci: vontade, hegemonia, racionalização”. VVAA. Política e História em Gramsci, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p.71-115, 1978.
DE FELICE, F., “Revolução Passiva, fascismo, americanismo em Gramsci” in VVAA., Política e História em Gramsci, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 189-257, 1978.
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v.1, 1999; v.5, 2002.
GRAMSCI, A. Quaderni del carcere, Torino: Einaudi, 1975.
KANOUSSI, D. & MENA, J. La Revolución Pasiva: una lectura de los Cuadernos de la Cárcel, Universidad Autónoma de Puebla, 1985.
MANGONI, L. “Rivoluzione Passiva”. Antonio Gramsci: le sue idee nel nostro tempo, Roma, Editrice L’Unità, pp. 129-130, 1987.
VACCA, G. Gramsci e Togliatti. Roma: Riuniti, 1991.
VACCA, G., Modernidades alternativas — o século XX de Antonio Gramsci. Brasília/Rio de Janeiro: FAP/Contraponto, 2016.
VIANNA, L. W. A Revolução Passiva — iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revane, 1997, especialmente p. 28-88.
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