Vozes silenciosas no Brasil do horror

Antropólogo formado pela USP, Fábio Zuker atua como jornalista na região amazônica, cobrindo os conflitos relacionados à expansão da monocultura extensiva na floresta e seus impactos para as comunidades indígenas. Por William Zeytounlian, uma resenha de “Em rota de fuga”, coletânea de ensaios de Zuker.

por William Zeytounlian

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Um rapaz branco, alto e barbudo observa, à distância, um homem indígena agitar seu maracá em frente ao Congresso Nacional, em Brasília. Ele esboça um passo para mais perto. Poderia obter do indígena uma palavra, respostas, um gesto, um registro: obter algo enquanto antropólogo e jornalista. O rapaz, no entanto, se detém e observa de longe.

Isso se passa em 2019, início do governo Bolsonaro. Um ano tenso. Ainda assim, é preciso ficar de fora. “Não se interrompe uma pessoa em processo de fazer mundos. Não se perturba alguém invocando uma realidade para competir com aquela que o sitia”. Com seu maracá, seus paramentos, olhos fechados e canto compassado, aquele homem indígena invocava um mundo que o Congresso diante dele não era capaz de reconhecer. Distendia-se numa realidade que o rapaz não podia compartilhar. O rapaz se detém, mas vê e ouve de perto.

Essa cena que serve de apêndice à coletânea de ensaios Em rota de fuga, de Fábio Zuker, ilustra bem a atitude ética e metodológica do autor. Antropólogo formado pela USP e com mestrado pela EHESS-Paris, Zuker atua também como jornalista na região amazônica, cobrindo especialmente os conflitos relacionados à expansão da monocultura extensiva na floresta e seus impactos para as comunidades indígenas. Dizendo de outra forma, Zuker cobre uma zona de guerra, leitura que, é claro, não é partilhada pelas autoridades oficiais do Estado brasileiro que, por sinal, é um dos beligerantes. Seu trabalho é desenvolvido entre comunidades fragilizadas, sistematicamente agredidas e silenciadas, em luta contra uma potente (e rica) máquina produtiva e colonizadora. Como repórter de guerra (poupar nos termos é compactuar com o etnocídio, ou melhor, sem meias palavras: genocídio), Zuker realiza um trabalho sensível e que demanda cuidado com os interlocutores. Sensibilidade da qual nos dá testemunho nos ensaios deste seu segundo livro e que se expressa sobretudo de duas formas.

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(Reprodução)

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Uma ética da escuta

A primeira forma de sensibilidade é uma ética da escuta. Inspirado pelos trabalhos do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, Zuker está interessado nos impactos da política na vida cotidiana das pessoas, na produção de sujeitos com sonhos e temores, na escala humana dessa máquina produtora de morte e medo. Para isso, aproxima-se sem gestos bruscos das pessoas em ruas e bares, protestos, redes sociais e aldeias disposto a ouvir o que elas têm a dizer.

No ensaio de abertura, “A pedagogia do medo”, Zuker justifica uma “escuta de perto” a partir de uma arqueologia das imagens de horror da máquina necropolítica dos governos neoliberais que remontaria à arte pictórica renascentista em sua tripla função de instruir, deleitar e comover (docere, delectare, movere). Baseado em autores como Achille Mbembe, sustenta que o mundo regido pela arte de governar neoliberal cria espaços necropolíticos onde a morte do corpo não é apenas o efeito colateral à governança, um incidente infeliz, mas sua própria mecânica política. Daí a exposição de corpos desmembrados, torturados, decapitados e trucidados como programa, como projeto de produção de sujeitos. Sujeitos com ódio e medo. As imagens não mostram nossos desejos e sentimentos: elas nos ensinam como desejar e sentir. Verdadeira “cultura do terror”

Zuker se dispõe a ouvir esses sujeitos amedrontados e silenciados de perto. Mas também em pé de guerra. É o que realiza em ensaios como “Vozes da Amazônia”, no qual somos guiados por ele pelo Acampamento Terra Livre e pelo Fórum Social Panamazônio (no Peru), entre os indígenas de diferentes nações e países da América do Sul, registrando seus relatos e ritos. A mesma escuta de perto está documentada no ensaio “A incerteza política em 2018”, escrito em parceria com este autor, psicanalista e historiador, no qual relatamos a produção de diversos pesadelos durante a campanha presidencial daquele ano.

Para narrar o atravessamento nefasto que essa política do medo trilha sobre os sujeitos, o autor precisa buscar suas fontes em sonhos, gritos surdos e conversas comezinhas, cotidianas. E no exercício de tentar relatar essa realidade fugidia e em apagamento, debruça-se sobre a natureza de sua própria escrita, como no ensaio “Vertigem: por uma escrita do ruído”. Articulando autores como Rodolfo Walsh, Kapuscinski, Cristina Rivera Garza e Svetlana Aleksiévitch, exercita-se numa “escrita de perto” que não compactue com o silenciamento dessas vozes abafadas. Em seu encontro com a alteridade, no corpo-a-corpo, ao acaso, Zuker constrói seus textos em derivas entre pessoas e autores que vão acrescentando, retocando e desviando seus pensamentos, um pouco como nos desenhos Waldemiro Mugrelise que perpassam todo o livro. Neles, corpos se chocam e se confraternizam, formam fluxos e pontos de paragem. No encontro com o outro, o sujeito se desanda do que achava e ia sendo.

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Uma ética da memória

Problematizar as formas de escuta e de escrita, para Zuker, faz parte de um programa de resistência ao genocídio. “É contra essa política da morte, contra essa necropolítica das sociedades ocidentais modernas em relação aos povos indígenas, que temos o dever ético de reverberar essas vozes de resistência da Amazônia, com alguma esperança de que essas vozes ressoem, com todos os equívocos envolvidos, em nossa forma genocida e simultaneamente suicida de conceber o mundo”.

Essa política da morte é retratada de forma original em dois ensaios que abordam a imagem do atual presidente. “Jair Bolsonaro: massa, vírus e poder” e “Cura, doença e tortura” foram escritos no calor dos eventos da pandemia do novo coronavírus, o que acrescenta urgência e atualidade aos retratos. Zuker aborda a imagem do presidente a partir das matrizes interpretativas do líder paranoico (inspirada em Elias Canetti); do rei taumaturgo ao avesso — aquele que, ao tocar, faz adoecer ao invés de curar — (inspirada em Marc Bloch) e da tortura como paradigma da linguagem presidencial (autoevidente nos discursos de Bolsonaro, verdadeiras sessões de espancamento). É a partir dessa imagem de Bolsonaro que Zuker irá interpretar a produção de afetos na cena política brasileira dos últimos anos: a desesperança, a ojeriza, o ódio, o nojo, o medo etc.

Se o plano presidencial é transformar a Amazônia em um pasto pelo preço de desertificá-la e exterminar-lhe as populações originais, esse projeto, numa perspectiva dos afetos, é coextensivo a todos os cidadãos brasileiros: Bolsonaro almeja desertificar nossas emoções, exterminar nossas diferenças, singularidades e esperanças. Contra isso, propõe Zuker, é preciso ouvir melhor vozes e ruídos das ruas e das florestas, é preciso criar mundos e temporalidades em oposição à pasteurização (e pastificação) genocida de nossos corpos que aspirantes a ditador tentam pôr em curso. Tentar reestabelecer gestos de comunicação, talvez uma espécie de cura.

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