Segurança e liberdade (ou nem um nem outro)

Os ataques terroristas de San Bernardino e Londres reacenderam o debate sobre a troca entre liberdade e segurança, que, na teoria política moderna, remonta aos contratualistas Thomas Hobbes e John Locke.

por Rodolpho Bernabel

Os ataques terroristas de San Bernardino e Londres reacenderam o debate sobre a troca entre liberdade e segurança, que, na teoria política moderna, remonta aos contratualistas Thomas Hobbes e John Locke. Hobbes, no clássico “Leviatã”, propõe que a função mais importante do Estado é prover a segurança de seus súditos, mesmo que para isso precise lhes tolher todos os outros direitos, inclusive a liberdade. Já para Locke, em seu “Segundo Tratado sobre o Governo”, o Estado deve sim preservar a vida dos cidadãos, mas não pode para isso se intrometer demais na esfera privada da vida das pessoas. Assim foi fundado o embate teórico entre o absolutismo e o liberalismo.

O que o terrorismo teria a ver com isso? Acontece que, nos dois casos citados, o Estado, por meio de seu aparato de segurança, exigiu que companhias fornecessem dados privados dos terroristas, usuários de seus produtos, e isso é uma diminuição de liberdade em troca de um aumento na segurança. O problema maior não reside na liberdade dos terroristas e na segurança das vítimas de seus atentados, mas na liberdade dos outros usuários dos produtos daquelas empresas a na segurança da população em geral.

Antes de entrarmos nos casos específicos, vale notar que faço aqui uma equalização entre privacidade e liberdade. A princípio pode parecer estranho que uma quebra de sigilo de mensagens configure uma diminuição da liberdade, mas a formulação relevante aqui é a de liberdade negativa, a liberdade de não sofrer limitações, a liberdade de ser deixado em paz. Quando o Estado torna a comunicação privada entre duas pessoas pública, estas perderam sua liberdade de não serem incomodadas pelo Estado. É assim que a privacidade é vista como uma forma de liberdade.

O primeiro caso mencionado, o ataque terrorista de San Bernardino, nos Estados Unidos, levou o Federal Bureau of Investigation a requerer da Apple uma maneira de desbloquear o iPhone usado pelos terroristas, de modo a poder procurar informações relevantes para a investigação. A Apple não cedeu à pressão do FBI, alegando que tal quebra de segurança poderia implicar num risco muito grande para o sigilo de todos os usuários do iPhone, tratando-se, portanto, de uma interferência inaceitável na privacidade dos cidadãos. Obviamente, a empresa tem também razões próprias, e legítimas, tal como a possibilidade de segredos industriais caírem nas mãos de concorrentes. No final das contas, o FBI conseguiu acessar por conta própria os dados do aparelho em questão, e o debate esfriou.

Então veio o atentado em Londres, na Inglaterra, com o terrorista sendo usuário do WhatsApp, e o debate voltou à tona. O governo inglês requereu do Facebook, proprietário do WhatsApp, o backup das mensagens enviadas e recebidas pelo terrorista. O Facebook alegou não apenas que não teria meios técnicos de quebrar tal sigilo, mas que nem backup havia. Além disso, a perspectiva de se criar um mecanismo para que o acesso por investigadores seja possível no futuro volta a gerar a suspeita de que o governo possa abusar de sua autoridade e infringir a liberdade dos cidadãos.

A Apple alegou que o novo sistema desenvolvido pela empresa após o caso citado, mas não apenas por causa dele, seria impenetrável. O Facebook investe continuamente em criptografia e, por hora, parece ter se livrado da necessidade de fornecer informações de backup do WhatsApp, que a empresa diz não existir. Mas nenhum sistema computacional é impenetrável, embora possa ser mais ou menos difícil de ser hackeado, infalível não é.

Algumas tendências, no entanto, começam a fazer esse longo debate político perder a força. Note que podemos ter a liberdade e a segurança diminuídas simultaneamente, como vem acontecendo. O aumento nas atividades terroristas tem ocorrido conjuntamente à diminuição da liberdade. Para Hobbes, devemos abdicar de todos nossos direitos para resguardarmos o direito à vida, mas isso não é garantia de que o Estado nos manterá à salvo. Mesmo em um Estado absolutista, podemos ser vítimas dos inimigos desse estado. Além dessa tendência de crescimento nas atividades terroristas, temos um concomitante aumento no desprezo, ou desleixo, para com nossa privacidade. Nossa vida é cada vez mais dependente do mundo virtual e nós cada vez mais contribuímos com essa dependência. Seja por necessidades econômicas, posto que o mundo virtual nos traz informações indispensáveis, seja por vaidade, quando divulgamos onde estamos, o que fazemos, com quem estamos e o que estamos comendo. Assim, tanto a segurança quanto a privacidade vêm diminuindo.

A segurança tem um movimento menos linear, e alternamos entre épocas mais e menos seguras. Entretanto, entramos numa era de erosão acelerada da privacidade. Não apenas grande parte de nossas informações pessoais deixam rastros digitais, mas também cada vez mais expomos voluntariamente essas informações. Caminhamos para um misto de 1984 e Admirável Mundo Novo, em que o Estado sabe muito de nossas vidas e, ao mesmo tempo, não nos importamos muito com isso.

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