por Alberto Aggio
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em parceria com o Horizontes Democráticos
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“O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Essa máxima tautológica, atribuída a Ernesto Che Guevara, tornou-se a senha para diversas gerações de militantes políticos que fizeram parte do que muitos chamam de “revolucionarismo” latino-americano. Nas palavras do historiador chileno Alfredo Riquelme, uma manifestação da “imaginação revolucionária” que incendiou as inúmeras correntes e grupos que emergiram nos “longos anos sessenta”,[1] que se iniciam com a Revolução Cubana de 1959 e se prolongam até a derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973.
Também identificado como “ultraesquerda”, o revolucionarismo se antagonizou dura e permanentemente com todas as correntes de esquerda ou de centro-esquerda (ainda que tal terminologia não existisse na época) que buscavam patrocinar ou apoiar reformas que modernizassem ou tornassem menos desiguais as sociedades latino-americanas. Tais grupos assumiram a luta armada como ação política ou como perspectiva estratégica de seus programas revolucionários. Instalaram no seio da esquerda latino-americana uma “muralha chinesa” entre reforma e revolução, caracterizando os partidos políticos que não seguissem suas orientações como “tradicionais” ou simplesmente “reformistas”, mesmo que as reformas fossem projetadas dentro de uma perspectiva de “revolução processual” voltadas para o socialismo. Esse vigor antagonista era expressão de uma atitude reativa à esquerda latino-americana, especialmente aquela que se pautava pelo marxismo originário da Revolução bolchevique, ou seja, os Partidos Comunistas orientados por Moscou e que buscavam se atualizar em função das variações táticas de lá emanadas e “traduzidas” para seus países.
Apesar dessa busca incessante de apartação da esquerda prévia a ele, o revolucionarismo não conseguiu se desvencilhar dos pressupostos de orientação geral que marcaram historicamente o comunismo no século XX. Como anotou José Rodriguez Elisondo,[2] era nítido o apelo à fórmula da “classe contra classe”, que se acoplava a outras noções, tais como, (1) o caráter do Estado burguês como simples aparelho de dominação de classe; (2) a validade da “ditadura do proletariado” e a fusão entre partido e Estado; (3) o caráter de “destacamento avançado” do partido revolucionário, composto por revolucionários profissionais; e, por fim, (4) a militância como “forma de vida” e a “vigilância revolucionária” como conduta permanente. Evidentemente, são pressupostos seletivamente assumidos. Não à toa deixa de aqui comparecer o Lenin crítico ao vanguardismo e à pequena-burguesia radicalizada.
Mas há no revolucionarismo uma espécie de sincretismo de ênfases e orientações que formam um mosaico, assumido caso a caso, no qual se prega a luta contra o “cerco capitalista” e a denúncia do “reformismo burguês” como “ala moderada do fascismo”; recusa-se o etapismo, afirmando o caráter internacional da revolução socialista; defende-se a tese de Mao Tse-Tung de que o centro da revolução mundial havia se deslocado para Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se critica o “aburguesamento” da então União Soviética e sua política de “coexistência pacífica”; por fim, last but not least, sob a influência da chamada “nova esquerda” da década de 1960 (H. Marcuse e Wright Mills) adota-se o ódio à “sociedade de consumo” e se sugere que os intelectuais passem a compor uma “nova formação revolucionária” que tivesse como base a aliança entre intelectuais, estudantes e setores marginalizados, em geral.
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É mais do que evidente que o revolucionarismo latino-americano se expandiu a partir de uma leitura mitológica da Revolução Cubana. Dela emerge um “modelo” de revolução concebido como único para o continente. Nele estão algumas fórmulas que se tornaram verdades insofismáveis, a começar pela visão geral de que a revolução foi impulsionada por “um punhado de homens decididos e audaciosos” que abriram passagem para o “povo” se constituir na força motriz da revolução. Esse “punhado de homens” se constituiu na direção política da revolução, substituindo o partido operário-socialista, e, acima deles, emerge a figura carismática do líder revolucionário. Contestando fortemente os pilares do comunismo soviético, a pedra de toque dessa leitura se fixava na ênfase de que a base guerrilheira e logística da revolução é camponesa e não uma organização partidária operária e popular. Soldando essas formulações, cria-se o axioma de que a revolução cubana nasce do “atraso”, mas assume seu caráter anti-imperialista e se coloca a tarefa da construção do socialismo. É, portanto, uma revolução que realiza o chamado “salto” do capitalismo, superando a tese da necessidade de uma etapa “democrático-burguesa”. Por tudo isso, o socialismo cubano seria uma “criação heroica”, única e desafiadora para o mundo intelectual vinculado ao marxismo anterior a ela.
As derivações da leitura mitológica da revolução cubana para as teses gerais que fundamentaram o revolucionarismo latino-americano podem ser sintetizadas, de acordo com José Rodriguez Elizondo, em seis pontos: (1) a revolução latino-americana é continental; (2) seu caráter é socialista pois o desenvolvimento capitalista no continente é obstaculizado pela dependência que cancela a possibilidade de a burguesia nacional liderar uma revolução democrático-burguesa; (3) a forma e o método é o da luta armada, concebida como “uma forma superior de luta”; (4) em função da defasagem do proletariado latino-americano em relação aos países mais avançados, a pequena-burguesia assume o papel dirigente da revolução; (5) a revolução pede alianças entre frentes e polos revolucionários — e não alianças entre classes — para confrontar tanto o inimigo estratégico, o imperialismo, quanto o inimigo tático, a burguesia local; (6) os partidos comunistas latino-americanos não são instrumentos revolucionários válidos porque se burocratizaram, são etapistas, privilegiam as diferenças entre os países latino-americanos ao invés da sua homogeneidade, negam o caráter socialista da revolução, adotam condutas pacifistas e se submetem a frentes políticas amplas.[3]
A partir desta visão formou-se no continente o que se pode chamar de uma “militância da revolução cubana” que teve muita influência por toda a década de 1960. Entretanto, depois de um primeiro momento de acumulação de forças, o “partido da revolução cubana” se enfraqueceu, golpeado pelo impacto da morte de Che Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, a derrota da revolta de maio de 1968, em Paris, e, por fim, a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto do mesmo ano. Estes acontecimentos exacerbaram os sentimentos anticomunistas da ultraesquerda latino-americana. No tocante ao Che, pela suposta “traição” do PC boliviano. Em relação ao maio parisiense, pela generalização da avaliação de que “os comunistas têm medo da revolução”. E, quanto a Checoslováquia, passou a pesar a qualificação da URSS como uma potência imperialista, que encobria este caráter com a retórica revolucionária.
Quando Fidel Castro visitou Salvador Allende no Chile, no final de 1971, permanecendo no país por 24 dias,[4] o cenário mundial era bastante diferente daquele no qual a revolução trinfou em Cuba. A revolução era, por certo, uma retórica compartilhada, mas a obsessão do revolucionarismo havia se deslocado para o tema do socialismo. Por esse entendimento, é explicável que Fidel tenha admitido, em parte e apenas publicamente, a “insólita” existência de uma via chilena ao socialismo como uma “via política ao socialismo” (Allende), embora discordasse inteiramente dela. Aliás, naquele momento, Cuba já havia alterado sua orientação, aliando-se incondicionalmente a URSS e julgava que o fundamental era manter o poder conquistado, arrefecendo a ênfase anterior de promover outras revoluções a todo custo. De fato, anos mais tarde, numa entrevista a Newsweek, em 09 de janeiro de1984, Fidel esclareceria que a estratégia guerrilheira na América Latina era uma das muitas variáveis de defesa do regime revolucionário cubano, ao contrário do que se havia afirmado na década de 1960 de que a revolução na América Latina “caia de madura”. Nas palavras de Fidel: “Nem ao menos oculto o fato de que, quando um grupo de países latino-americanos, sob a direção e inspiração de Washington, não apenas buscou isolar Cuba politicamente, mas a bloqueou e patrocinou ações contrarrevolucionárias […] nós respondemos, num ato de legítima defesa, ajudando a todos aqueles que queriam combater contra esses governos”.[5]
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Os pressupostos da teoria pura da revolução acabaram se cristalizando e diversas gerações os assumiram e os vivenciaram sem espírito crítico. Mesmo admitindo que, com o tempo eles sofreram ajustes, alterações ou mesmo supressões, é importante estabelecer uma avaliação rigorosa a respeito das orientações que sustentavam o chamado “processo revolucionário latino-americano” que aquela “teoria” supunha. Isso é ainda mais importante porque ela ainda influencia significativas parcelas da esquerda latino-americana além de inúmeros intelectuais que trabalham em diversos campos do conhecimento na área de Humanidades.
Expressando claramente o caldo de cultura de abstracionismo existente na época, o mito da revolução vitoriosa acabou por sustentar a construção de um modelo que, ao ser tomado como “universal”, se voltou contra a História. Cultuou-se um modelo alternativista que via a política a como jogo de soma zero, evitando funcionar dentro de um sistema político que obrigava os atores a partilharem um consenso mínimo; produziu-se um modelo de antipolítica, essencialmente. Essas posições tinham correspondência com uma postura confrontacionista no plano internacional, que compreendia a América Latina como vanguarda do Terceiro Mundo e tratava como inevitável o confronto com os EUA. Che Guevara qualificava os EUA como a “mais bárbara nação do mundo”, o “grande inimigo do gênero humano”. Isso contrastava, por exemplo, com a postura do Vietnam que preferiu atuar dentro dos EUA, explorando as suas divisões internas. No plano nacional, como não poderia ser diferente, o modelo supôs a existência de dicotomias excludentes: o Estado é o aparelho de coerção que precisa ser tomado; o Exército é a versão concentrada do Estado como expressão da violência contra as classes dominadas; o Direito sublima as relações de força e institucionaliza a exploração das maiorias; as classes sociais são a representação de explorados e exploradores; os partidos políticos fazem apenas o jogo das classes dominantes e estão destinados a desaparecer.
Não há como eludir o resultado de que toda essa formulação só poderia redundar numa nova ditadura de classe, flagrantemente autoritária. A democracia e a liberdade se tornam, aqui, categorias subjetivamente instrumentais: a democracia dos exploradores não é, em nenhum aspecto, a dos explorados e as liberdades de alguns são derivadas das carências de outros, sem uma área intermediária. Em síntese, democracia e liberdade devem ser revolucionárias e isto significa que devem servir para garantir a implantação de uma nova ditadura. É inexplicável como poderá nascer daí uma sociedade nova, um “homem novo”.
Assim, mais que interpretar ou revolucionar o mundo, a teoria pura da revolução serve para afastar da reflexão a complexidade da realidade. Ela é simplesmente “falsa consciência”, pura ideologia. Sua imaginação funciona para eludir um jogo intelectual de tipo circular, exercitado nos seguintes termos: a impaciência revolucionária se justifica pelo “atraso histórico”, levando à busca de um atalho revolucionário que permita, por sua vez, recuperar o tempo perdido … que justifica, uma vez mais, a impaciência revolucionária.
Mirando historicamente, o resultado não é outro senão o fracasso: não se implantou uma “nova sociedade”, nem em termos revolucionários, nem em termos reformadores. Nesse sentido, perdeu tanto a reforma como a revolução. Nenhum dos teatros de operação da região serviu como suporte para levantar e sustentar uma “segunda Cuba”. Tampouco para consolidar aquelas transformações estruturais que alguns governos reformadores vinham colocando em prática.
Ao contrário da imagem europeia que qualifica a década de sessenta como uma “década prodigiosa”, na América Latina ela foi, antes de tudo, “uma década perdida”, especialmente para aquela esquerda que aderiu à teoria pura da revolução. Foi preciso atravessarmos o século e o milênio para vermos emergir, em traços ainda bastante rudimentares, uma esquerda ainda sem nome próprio, que ainda coqueteia como aqueles paradigmas e claudica em se conformar como um ator distinto do que foi no passado e do que é na atualidade.
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Notas:
[1] RIQUELME S. Alfredo, “La vía chilena al socialismo y las paradojas de la imaginación revolucionaria”. In Araucaria. Revista ibero-americana de Filosofia, Política y Humanidades, año 17, n. 34, segundo semestre de 2015, p. 203-230.
[2] RODRIGUEZ ELIZONDO, J. Crisis y renovación de las izquierdas – de la revolución cubana a Chiapas, pasando por “el caso chileno”. Santiago: Andres Bello, 1995, pp.131-167. A expressão que dá título e que inspira diversas passagens desse artigo é de José Rodriguez Elizondo.
[3] RODRIGUEZ ELIZONDO, J., 1995.
[4] AGGIO, A. “Uma insólita viagem: Fidel Castro no Chile de Allende” In AGGIO, A. “Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana. Brasília: Fundacão Astrojildo Pereira, 2ª. Edição, 2019, p. 121-136.
[5] RODRÍGUEZ ELIZONDO, J. “El invierno del Messías”. La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001. p. 9 (Cuaderno Reportajes intitulado El invitado que saboteo a Allende).
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