por Carlos Gustavo Poggio
Em artigo para este Estado da Arte no ano passado, busquei jogar luz no tipo de conservadorismo representado pela ascensão de Jair Bolsonaro a partir de uma análise da trajetória do movimento conservador nos Estados Unidos, país que parece servir de inspiração para o presidente brasileiro e seus filhos. Destaquei que o conservadorismo americano é, na verdade, uma fusão de duas perspectivas que possuem consideráveis divergências entre si: os tradicionalistas, representado por nomes como Russell Kirk e Richard Weaver, e os libertários, representado pela Escola Austríaca com nomes como Mises e Hayek. Essa fusão aconteceu apenas a partir dos anos 1950, no contexto da Guerra Fria e da oposição ao comunismo, que era uma causa comum a ambos. O “fusionismo”, como ficou conhecido a síntese tradicionalista-libertária nos Estados Unidos, foi cuidadosamente arquitetado nas páginas da revista National Review, fundada por William Buckley Jr. em 1955, e está associado principalmente ao nome do filósofo Frank Meyer, que esteve, assim como Russell Kirk, entre os primeiros colaboradores da revista. Com o final da Guerra Fria, entretanto, o cimento do anti-comunismo desapareceu e as divergências dentro do movimento conservador começaram a ficar mais evidentes, como pôde ser observado, por exemplo, na disputa entre neoconservadores e paleoconservadores nos anos 1980. Após o debacle da Guerra do Iraque em 2003 e a crise financeira de 2008, o delicado equilíbrio de forças que sustentava o conservadorismo americano implodiu. Dos escombros dessa implosão, surgiu Donald Trump.
A chegada de Trump à presidência é um evidente sinal do esgotamento do fusionismo nos Estados Unidos. Para compreender o atual contexto intelectual do conservadorismo americano, nomes como Buckley, Meyer, e Kirk, tornam-se menos importantes. O papel que National Review teve na formulação do movimento conservador durante a Guerra Fria é hoje ocupado pelo canal a cabo Fox News, fundado em 1996 e que floresceu durante o governo Obama, tornando-se a mais assistida rede de notícias a cabo nos Estados Unidos. Trump provavelmente nunca leu um número inteiro da revista fundada por William Buckley – que durante as eleições em 2016 ostentou uma capa com o título Contra Trump – mas é sabidamente um ávido espectador do canal fundado por Rupert Murdoch. A verdade é que no século XXI, o conservadorismo americano está cada vez menos associado ao erudito William Buckley e mais ao desabrido Tucker Carlson, apresentador de um dos programas de maior audiência da Fox News. Se queremos compreender para onde está indo o movimento conservador nos Estados Unidos, devemos, portanto, escutar nomes como Carlson. E o polêmico apresentador do programa Tucker Carlson Tonight tem dado nos últimos meses algumas pistas bastante reveladoras para quem se debruça sobre o tema. Antes de explorarmos o seu pensamento, vale uma rápida apresentação de seu currículo para o leitor brasileiro.
Formado em História pelo Trinity College, Carlson tem desde o início sua carreira no jornalismo associada ao conservadorismo. Ele começou contribuindo para o periódico Policy Review, editado pela Heritage Foundation, um dos mais tradicionais e importantes think tanks conservadores dos Estados Unidos. Antes de ir para a televisão, foi colunista da revista neoconservadora Weekly Standard, que recentemente decretou falência. Após passagens pela CNN e pela MSNBC, sempre fazendo o papel do contraponto conservador, Carlson foi contratado pela Fox News em 2009. Teve uma rápida ascensão na emissora e, no mês da eleição de Trump, em novembro de 2016, ganhou um programa só seu, o Tucker Carlson Tonight, que se tornou um dos programas mais assistidos da TV a cabo americana, com cerca de 3 milhões de espectadores todas as noites. Para além de questões como sua aversão ao sistema métrico, um tema central de seus comentários no programa é sua resoluta oposição à imigração – tanto legal quanto ilegal – e às mudanças demográficas daí derivadas. Carlson já declarou que a “imigração em massa” tenderia a deixar os Estados Unidos “mais pobre e mais sujo.” Tal declaração motivou um boicote de anunciantes no seu show no fim do ano passado. Mais recentemente, o apresentador dedicou um longo segmento de seu programa para críticas à deputada de Minnesota Ilhan Omar, uma das duas deputadas muçulmanas a serem eleitas para o Congresso em 2018 e que também tem sido alvo de Donald Trump nas últimas semanas. Carlson declarou que Omar, que nasceu na Somália, é “a prova viva de que a forma que praticamos a imigração tornou-se um perigo para esse país”. Dadas as inúmeras declarações nesse teor, Carlson é frequentemente classificado como um racista defensor do nacionalismo branco.
Dentre os milhões de espectadores de Tucker Carlson Tonight está Donald Trump. Sabemos disso, pois o presidente norte-americano frequentemente menciona o apresentador em seus inúmeros tuítes. Um exemplo claro foi quando Carlson falsamente acusou o governo da África do Sul de estar expropriando terras de cidadãos brancos sem compensação. Ele afirmou ainda que isso era uma “tragédia humanitária” a qual o governo dos Estados Unidos deveria responder. O fato é que a ideia de expropriação de terras estava apenas sendo discutida como uma possibilidade pelo governo sul-africano, mas nenhuma medida havia sido tomada nesse sentido. Logo após o programa, o presidente dos Estados Unidos tuitou para seus mais de 60 milhões de seguidores que havia orientado o Secretário de Estado, Mike Pompeo, a “estudar de perto as expropriações de terra e fazendas na África do Sul e a matança em larga escala dos fazendeiros”. Para não deixar dúvida a quem ele estava respondendo, Trump colocou ao final da mensagem: “@TuckerCarlson @FoxNews”. Carlson é considerado por muitos um conselheiro informal do presidente. Prova dessa proximidade é que ele esteve, por exemplo, na comitiva de Trump que se reuniu com Kim Jong Un na zona desmilitarizada entre as duas Coréias no final de junho. Há informações de que foi Carlson quem convenceu Trump a suspender um ataque ao Irã após a derrubada de um drone americano que estava no espaço aéreo iraniano.
Um exame do pensamento político recente de Tucker Carlson fornece uma ilustração perfeita do atual estágio de desagregação da síntese fusionista nos Estados Unidos. A ênfase na palavra “recente” é importante, porque Carlson, que apoiou a candidatura à presidência de Ron Paul pelo Partido Libertário em 1988, e se identificava com essa corrente até o início dos anos 2000, tem mudado suas posições nos últimos anos. A crise de 2008, em especial, teria sido fundamental para essa mudança. Atualmente, ele tem se tornado um crítico ferrenho do elemento libertário da equação do moderno conservadorismo americano. Um trecho de um programa em julho é revelador dessa postura. Carlson criticava os representantes do Partido Republicano no Congresso Nacional, por não apoiarem as tarifas defendidas por Trump. Para o apresentador da Fox News, os republicanos não “ousariam” proteger as indústrias americanas de competição externa, dado que, nas suas exatas palavras: “Isso poderia violar algum princípio da Escola Austríaca. Poderia deixar os irmãos Koch nervosos. Poderia alienar os ideólogos libertários que, até hoje, financiam a maioria das campanhas Republicanas.” Nesse trecho, que poderia ter sido dito por algum membro do Partido Socialista americano, está cristalino os dois aspectos centrais do pensamento político Carlsoniano. Por um lado, uma crítica ferrenha ao libertarianismo representado pela Escola Austríaca. Por outro, uma crítica ao que Carlson costuma chamar de “ruling class”, personificada pelos irmãos Koch, da multimilionária família que apoia politicamente causas associadas ao libertarianismo e que costuma ser alvo frequente da esquerda. Para Carlson, o Partido Republicano atualmente é composto por um grupo de políticos subordinados a interesses corporativos, e as políticas econômicas de desregulamentação e livre comércio defendidas historicamente pelo partido enriqueceriam as elites às expensas do americano médio.
Nesse mesmo programa, Carlson teceu elogios ao plano econômico de ninguém menos que Elizabeth Warren, uma das mais progressistas candidatas à nomeação pelo Partido Democrata para concorrer à presidência em 2020. Warren fez parte do grupo de doze senadores Democratas que escreveram uma carta para o então presidente Barack Obama em 2016 para demonstrar contrariedade com a assinatura do Tratado Transpacífico (TPP), um ambicioso acordo de livre comércio envolvendo os Estados Unidos e países da região do Pacífico. Ela já declarou “não ter medo de tarifas” e, portanto, jamais criticou Trump nesse aspecto. Seu programa da campanha de 2020 para a área econômica foi denominado como “patriotismo econômico”, termo repetido diversas vezes de forma elogiosa por Carlson. Em maio, o apresentador já havia apoiado a proposta dos autodenominados socialistas-democráticos Bernie Sanders e Alexandra Ocasio-Cortez de estabelecer um limite para os juros cobrados por cartões de crédito. Para o Carlson, entretanto, o problema de Warren, Sanders e Ocasio-Cortez é o mesmo da esquerda americana em geral: suas posições progressistas em temas sociais, como a defesa do direito ao aborto. Dessa forma, Carlson enxerga o sistema político americano como dividido entre libertários e socialistas, sem um partido que defenda o que ele acredita ser a visão da maioria dos americanos: “nacionalista na economia, tradicionalistas em questões sociais”.
No mês passado, em uma conferência em Washington organizada pelo filósofo israelense Yoran Hazony intitulada “National Conservatism”, que reuniu acadêmicos, jornalistas e políticos, Carlson foi um dos oradores principais. Hazony ganhou destaque em 2018 após a publicação do livro The Virtues of Nationalism, em que faz uma defesa do Estado-nação como a forma suprema de organização social. Um dos objetivos da conferência era tentar dar um corpo intelectual ao tipo de conservadorismo que começa a se fortalecer na era Trump. De acordo com o site do evento, a finalidade do encontro era “reconsolidar a rica tradição do pensamento nacional-conservador como uma alternativa intelectual séria aos excessos do purismo libertário.” Um dos presentes no evento criticou o fato de que o logo da conferência colocava em grossas letras laranjas a palavra “National” em contraste com um tímido “Conservatism” em letras finas. Um tema central da conferência foi a preocupação com os efeitos sociais do liberalismo econômico tal como defendido pela Escola Austríaca. O entusiasmo dos palestrantes com a necessidade de um Estado regulador faria corar os Republicanos da era Reagan. Em sua fala, Carlson foi categórico: “a principal ameaça à nossa habilidade de viver nossa vida como queremos não vem mais do governo, mas do setor privado”. Assim como os “paleocons” e os “neocons”, alguns já começam a usar o termo “NatCons” para descrever esse tipo de conservadorismo. Em seu ataque ao liberalismo econômico, Carlson ecoa, em certa medida, a crítica dos conservadores tradicionalistas ao capitalismo. Russell Kirk, por exemplo, que também era um crítico da Escola Austríaca, via o capitalismo como promovendo valores materialistas em detrimento da virtude e da tradição, e enfatizava mais a família, a igreja e as pequenas comunidades do que o mercado. Kirk, porém, dava um papel mais importante a instituições como a religião do que ao Estado, e via o populismo representado por Carlson com a própria antítese do conservadorismo.
O que o tipo pensamento representado por Tucker Carlson deixa claro, é que o movimento conservador tal como consolidado a partir dos anos 1950 está bastante enfraquecido e dando lugar a outras manifestações. Na verdade, o conservadorismo americano parece estar voltando ao período pré-1950, antes da fundação da National Review, quando não era propriamente um movimento coerentemente articulado, mas uma coleção de diferentes manifestações relativamente dispersas. Em uma famosa observação feita em 1950, o crítico literário Lionel Trilling afirmou que o liberalismo era até então não apenas a tradição dominante nos Estados Unidos, mas a “única tradição intelectual” no país. Trilling acrescentava que o que ele chamava de “impulso conservador” se expressava àquela altura “não em ideias, mas apenas em irritantes gestos mentais que tentam parecer ideias”. William Buckley e a National Review esforçaram-se por décadas para transformar o impulso conservador nos Estados Unidos em um conjunto coerente de ideias. Esse esforço foi bem-sucedido por algum tempo, mas não resistiu à virada do século. Enquanto um novo conjunto de ideias não é intelectualmente organizado, grande parte dos conservadores do século XXI – não apenas nos Estados Unidos – parece voltar a se expressar através de gestos mentais que tentam fazer as vezes de ideias. Nesse ambiente, Tucker Carlson é o porta-voz ideal.