por Tiago Pavinatto
Se a tragédia, no fundo do mar, começou quando assassinaram o camarão, em território brasileiro ela se iniciou (ou recomeçou após o ligeiríssimo ínterim de um sorriso banguela) assim que avacalharam a vaca.
Mamífero ruminante sagrado e intocável na tradição hinduísta, a vaca é considerada mais pura que os indivíduos mais puros do seu sistema de castas, os brâmanes, tão pura que não só o seu leite é artigo em rituais de purificação, mas também sua urina e suas fezes… embora Dwijendra Narayan Jha, historiador da Universidade de Délhi, tenha se insurgido contra essa santificação fundamentalista ao sustentar que o consumo de carne de vaca era comum na sociedade hindu primitiva (The myth of holy cow, 2004). Sua obra foi amaldiçoada, os exemplares queimados e o autor passou a conviver com constantes ameaças. Avacalharam a tese!
Venerada que foi pelo zoroastrismo e algumas “religiões” do Egito, Grécia e Roma antigas, esta zoolatria faz parte, ainda, da mitologia escandinava da criação representada pela vaca Audhumla.
Encontramos a vaca também na Torá, que se refere ao rito da vaca vermelha, bem como na segunda e mais longa sura do Corão, quando Moisés e os israelitas disputam sobre o sacrifício de uma.
Mas a santidade da vaca não é item de exportação. No Brasil, vaca é sinônimo de “mulher devassa”, ou qualquer outro adjetivo dos mais permissivos e libertinos que queiramos pejorativamente imputar a ela. A vaca não goza de boa reputação… nem no surfe, esporte no qual, coloquialmente, “vaca” pode tanto ser o “surfista que não se mantém na prancha, que cai muito”, quanto o próprio “caldo” do surfista. A edição brasileira do sagrado Caldas Aulete ainda traz outros sentidos desabonadores como “pessoa ou coisa de que se tira proveito continuamente”, “cavalo muito gordo” e “homem indolente”.
Ainda por aqui, acrescente-se, temos o nada edificante termo avacalhar que, sim, vem de vaca, mas de vaca francesa, vache, conforme gíria da época para “covarde”, e não no seu sentido literal. Segundo Reinaldo Pimenta (A Casa da Mãe Joana, 2002), o neologismo apareceu no Anno Domini Vostri Iesu Christi de 1913, ano anterior ao da sucessão presidencial do Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca (sobrinho do Marechal Deodoro), num discurso do então deputado federal e comunista tardiamente arrependido Maurício Paiva de Lacerda (filho do Ministro do Supremo Tribunal Federal Sebastião Lacerda e pai de Carlos Lacerda), no qual dizia que os políticos que haviam prometido se rebelar contra o presidenciável senador José Gomes Pinheiro Machado, mas não o fizeram, tinham se “avacalhado”.
Avacalhar como “acobardar” e “mudar de opinião ou de partido” transmudou-se, na noite dos tempos, para “desmoralizar”, “rebaixar”, “ridicularizar”, “espinafrar”, “executar com desleixo”, entre tantos outros sinônimos.
Voltando à vaca fria, é justo e necessário, nosso dever e salvação esclarecer que “vaca” ainda pode significar a carne de gado vacum vendida como alimento nos açougues. Não estamos forçando a barra; está no Caldas Aulete, bem como é usada nesse sentido por Machado de Assis no conto Uns Braços, quando narra que “Borges abarrotava-se de alface e vaca”. No entanto, vamos um pouco além e incluímos na conta desta “vaca”, a fim de facilitar o debate e por estilo, as carnes suínas, avícolas e embutidos.
Não é só: na Guerra Franco-Prussiana iniciada em 1870, popularizou-se entre os soldados franceses a expressão de fronteira “Morte aos vacas!” (“Mort aux vaches!”), variação jocosa, ainda que bélica, do que seria “Morte aos waches” (“Mort aux wache” – Wache, em alemão, significa guarda, sentinela, oficial), muito embora alguns advoguem que a frase tenha se originado quase três séculos antes no reinado de Henrique IV, em cujo estandarte se estampavam duas vacas. Todavia, qualquer que seja a origem, na França, “morte aos vacas!” pode ainda significar um insulto antimilitarista aos policiais ou a qualquer um que personifique a ordem.
Saímos exauridos da semântica e entramos no território onde estampidos se misturam com batuques.
A megaoperação Carne Fraca da Polícia Federal brasileira interditou três de vinte e um frigoríficos suspeitos num universo de quase 4.900 estabelecimentos dessa natureza e, irresponsavelmente, enviesou o discurso maculando praticamente todos. Todos!
A avacalhação foi tamanha que se deu a entender que papelão era misturado à vaca, quando, na verdade, o papelão era para embalar o produto, bem como taxaram de cancerígeno o ácido ascórbico, vitamina C para os mais incultos.
Por conta de 0,06% dos frigoríficos, 100% paga o pato: ações caem; países embargam, suspendem ou restringem as importações; vender-se-á menos; produzir-se-á menos; desempregar-se-á mais. Que vacanagem!
Nossos “vacas” avacalharam a vaca nacional. Nossa mídia anencefálica fez coro da avacalhação. Nós, brasileiros e brasileiras autômatos, como vaquinhas de presépio, avacalhamos ainda mais não só com indignação, mas com o humor que vem do berço da tragédia anunciada.
Mas os incautos cheios de si, tendo sob o sovaco o direito telúrico pronto para o debate glossolalítico, quando não acham graça, avacalham aqueles que apontam para a irresponsabilidade desse vaquicídio, mesmo após os próprios “vacas” avacalhadores vaquicidas, querendo rearranjar o dejeto, assumirem, sem o devido ato de contrição, que os fatos “não representam um mal funcionamento generalizado do sistema de integridade sanitária brasileiro”, bem como que o “SIF garante produtos de qualidade ao consumidor brasileiro”… aconteceu da mísera e mesquinha, que depois de ser morta voltou a ser maminha.
Autavacalhamo-nos!
A vaca foi pro brejo e, na atual conjuntura internacional, de lá não sai automaticamente nem que a vaca tussa – se tossir, avacalha ainda mais.