O “Último testamento” de um pontífice

Pode-se facilmente imaginar, e não sem certo gosto, a frustração de alguns jornalistas e vaticanistas quando da leitura do comovente Último Testamento, livro que registra mais uma – decerto a derradeira – entrevista de Bento XVI ao jornalista Peter Seewald.
Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, que completa 90 anos no Domingo de Páscoa (16 de abril)

por Hugo Langone

Pode-se facilmente imaginar, e não sem certo gosto, a frustração de alguns jornalistas e vaticanistas quando da leitura do comovente Último testamento (Planeta, R$ 36,90), livro que registra mais uma – decerto a derradeira – entrevista de Bento XVI ao jornalista Peter Seewald, com quem já assinara as obras O sal da terra e A luz do mundo. E o motivo é claro, claríssimo: diante das palavras do velho pontífice, não pode haver fundamento para alaridos e manchetes estrepitosas. Triunfam, antes e ironicamente, a sobriedade de um Panzerkardinal recluso, nitidamente tímido, mas também sincero e de uma lucidez que não cessa de desconcertar.

Não é necessário avançar muito. Após umas poucas páginas sobre a atual vida monástica do papa emérito, Seewald quis já questioná-lo precisamente sobre aqueles pontos – os bastidores de sua renúncia e a figura de seu sucessor – em que mais se buscariam sinais conspirativos, indícios de descontinuidades, polarizações. Para tempos da tal “pós-verdade”, que em eras mais sãs receberia os já célebres nomes de “sensacionalismo”, “manipulação” e outros que tais, o Bento XVI de Último testamento é uma ducha de água fria. Felizmente.

Veja-se: sua renúncia não tem como motivação uma “experiência mística”, ou ainda as consequências de um Vatileaks ou um qualquer complô, mas antes a serena constatação de que “a missão de Pedro exigia de mim decisões, visões concretas, mas que à época, quando isso não seria mais possível num tempo previsível, o Senhor também não queria mais isso de mim”. Francisco não é o portador de uma ruptura, mas alguém que lhe suscitara “imediatamente o entusiasmo” e que revela o vigor e a dinâmica do cristianismo quando a Europa só consegue ser “uma força impulsionadora da Igreja mundial (…) dentro de certos limites”. O quão diferente é seu tom daquele que por toda parte se emprega quando, num triste vício corrente, retiram-se exclusivamente das discussões e análises políticas os critérios com que se julgam os afazeres vaticanos (e também alhures)…

E isso mesmo no que diz respeito aos atos de governo do papa emérito, sobretudo àqueles que se tornaram as marcas distintivas dos quase oito anos de seu pontificado. Pode-se contar nos dedos as respostas em que Bento julga necessário defender-se; ele absolutamente não se vê numa disputa entre lados opostos. E, por vezes, de fato não seria possível, ao menos para alguém minimamente sincero, sequer enquadrá-lo num “lado”. Tomemos, como exemplos mais ilustrativos, suas posturas com relação ao Concílio Vaticano II e a liturgia, decerto dois daqueles temas que mais dão margem, nas coberturas ditas especializadas, a especulações e teorias histéricas. O entusiasmo de Bento pelo Vaticano II permeia boa parte da obra – o que ao leitor não surpreenderá, evidentemente, pois um bom número de suas páginas gira em torno da relevância do então teólogo Ratzinger em algumas das articulações do concílio. Seu entusiasmo, além disso, pelo pontificado de João XXIII é expresso com todas as letras. Ao mesmo tempo, a crítica a um suposto “espírito” conciliar, já denunciado quando de seu pontificado e responsável por uma série de distorções dos documentos oficiais, permanece ali; não há revelações nessa esfera. Trata-se de um papa em plena sintonia com a dinâmica da Igreja Católica desde meados do século passado, alguém que, ao notar a renovação querida pelos padres conciliares sendo empurrada noutra direção, sentiu “que era minha missão esclarecer o que realmente queríamos e não queríamos”.

No âmbito litúrgico, o mesmo. Sobre a substituição do mestre de celebrações de São João Paulo II por Piero Marini (que, a propósito, continua hoje com Francisco), maior motivação seria a idade daquele do que qualquer conflito teórico. À acusação de que, ao reabilitar a Missa segundo o missal anterior à reforma da liturgia, teria se dobrado à tradicionalista Fraternidade Sacerdotal São Pio X (prestes, agora, a ser reintegrada plenamente à Igreja pelo atual pontífice), Bento julgou conveniente recordar que seu movimento não era estratégico, como se numa disputa política, mas que consistiu no desejo de mostrar “que aquilo que antes era santo para a Igreja” não deixara jamais de sê-lo. E quanto a isso é bastante conveniente que, naquela que é uma das maiores respostas do livro, Bento revele necessário que mesmo os que celebram segundo as antigas rubricas estejam “em consonância com nossos conhecimentos modernos de judaísmo e cristianismo”, de modo a não utilizarem a velha oração da sexta-feira santa que pedia a conversão dos “pérfidos judeus”. Só mesmo distorções ideológicas adaptadas desde fora veriam aí condições para qualificá-lo ou de progressista, ou de reacionário. Entre reformador e conservador, “é possível fazer as duas coisas”: “avançar a partir de uma interpretação moderna da fé” e “ter continuidade, não demolir a fé, não deixar que se fragmente”.

É bem verdade que, não obstante lhe fosse impossível fugir aos grandes temas (e temos, com efeito, os escândalos dos abusos de menores, o caso Williamson, o Vatileaks, o desconforto causado pelo discurso – hoje já profético – de Ratisbona, o Banco do Vaticano, o chamado lobby gay), Seewald só o faz, digamos, “controladamente”. A todo momento, parece levado a certa dimensão interior de Bento XVI, buscando antes compreender suas reações, reavivar sua memória emocional, do que esclarecer fatos e lançar holofotes sobre controvérsias. Trata-se, afinal, de um testamento, o último testamento – em certo sentido, uma biografia. Esfriado o alvoroço pós-renúncia, já é possível vislumbrar que, com o transcorrer da história, tudo o mais parecerá diminuto e só restará o homem, o teólogo, o mestre da fé – o Doutor da Igreja.

E desde o princípio fica claro que está precisamente no homem o fulcro emocional da entrevista derradeira. Este é um pontífice que chora ao lembrar dos sinos de Roma repicando no conturbado 28 de fevereiro de 2013. Um pontífice que ignora a própria fama e ri de seu entrevistador – e por diversas vezes. Um pontífice, ademais, de tal acuidade que nos transporta imediatamente ao fervilhante ambiente teológico das décadas de 1950 e 1960, recordando, nome por nome, cada um dos protagonistas daquela nova teologia, sua relevância, os rumos que poderiam abrir em meio aos desafios da Igreja no século passado. Talvez se possa dizer que é este o ponto alto do livro, no qual se vislumbra tanto o vigor espiritual e intelectual do jovem Ratzinger quanto o vigor e a esperança de uma geração inteira de pensadores e acadêmicos.

Para nós, leitores, talvez haja o risco de restar certo gosto amargo na boca, como se vivêssemos hoje um anticlímax, um “tudo o que poderia ter sido e não foi”. No entanto, é preciso dizer que a própria vida e o próprio pontificado de Bento XVI lhe são antídoto. Se o livro, na tradução brasileira (e também na americana, diga-se, enquanto outros grandes mercados conservaram o original Últimas conversas), é colocado como testamento, pode-se dizer que sua herança vai muito além: a centralidade da fé; a plena realização da razão no contato com a Revelação; a disposição para revigorar a perenidade da doutrina em seu diálogo com o mundo contemporâneo; e, sobretudo, a confiança sobrenatural quando tudo parece sair dos eixos e as vicissitudes aparentam ser maiores do que as próprias forças. Um “homem de paz”, como o qualificaria seu sucessor.

Por fim, é particularmente tocante ver um Bento de espírito desnudo reconhecer seus pontos fracos, a falta de eventos extraordinários em sua vida, ou ainda falar dos tempos de infância, dos pais e irmãos, com aquela nostalgia de quem veio a passar a vida inteira ansiando pela mesma sensação de ordem e tranquilidade que experimentara no lar. Por ironia, tranquilidade foi precisamente aquilo de que ele não pôde desfrutar como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e sumo pontífice. Resta-lhe hoje, no entanto, a morte – a morte que traz, não obstante suas terríveis exigências, a esperança de um Paraíso que teria, sim, um “lado totalmente humano, com o qual eu me alegro, por estar de novo ao lado de meus pais, meus irmãos, meus amigos e imaginar que será muito bonito, como foi em nossa casa”.

Bento XVI retornará em breve para casa, mas seu testamento fica, felizmente, conosco. De sua herança, ademais, desfrutarão gerações.

Hugo Langone é poeta, autor de “Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito”. É também editor e tradutor.

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