por Rodrigo Toniol
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Março de 2013. A imprensa brasileira estampa em seu noticiário a escolha do novo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o pastor Marco Feliciano. Até então, o deputado tinha pouca expressão política no cenário nacional, era conhecido no campo evangélico e gozava de alguma visibilidade por suas declarações e iniciativas parlamentares na pauta dos costumes. Dois anos antes, em 2011, havia proposto um plebiscito para deliberar sobre o reconhecimento legal da união homoafetiva como entidade familiar. Confiante de que o plebiscito popular rejeitaria o reconhecimento legal da união homoafetiva, a bancada religiosa insistiu neste recurso político como forma de retirar do âmbito do Congresso e do Supremo Tribunal Federal a decisão sobre o tema. A proposta não emplacou, mas pavimentou dois processos que apenas se intensificaram nos anos seguintes. Primeiro, o questionamento da legitimidade do congresso e do judiciário nas decisões sobre questões “morais”. A estratégia política dessa posição passou a ser a de propor plebiscitos como dispositivo decisório para esses temas, dando ao “povo” a experiência de uma democracia direta sobre o destino da família brasileira. No âmbito partidário, essa solução foi adotada por representantes de um amplo espectro — basta citar Marina Silva que, quando candidata à presidência em 2014, evitou o debate sobre aborto indicando a consulta popular como única saída viável para o debate. O segundo processo que Feliciano ajudou a pavimentar, mesmo quando ainda era um deputado periférico, foi o da explícita oposição entre o “povo” e seus representantes políticos do congresso e os juízes do STF. A decisão do Supremo que autorizou a união legal de pessoas do mesmo sexo, disse Feliciano, “causou perplexidade e consternação na sociedade brasileira”.
Em 2013 Feliciano não tomou de assalto a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, pelo contrário, foi alçado à posição depois de um arranjo político entre o governo de Dilma Rousseff com os partidos da base. A posição foi majoritariamente confirmada por meio de eleição interna da própria Comissão, tendo recebido 11 votos a favor e um voto em branco, o que colocou o pastor na linha de uma curiosa sequência sucessória, cujos antecessores imediatos haviam sido os deputados Luiz Coutro (PT), Iriny Lopes (PT), Manuela D’ávila (PCdoB) e Domingos Dutra (PT). A reação dos movimentos sociais à escolha política por Feliciano não foi pequena, mas tampouco foi atendida.
Ao lado do pastor duas vozes se destacaram. A de Silas Malafaia que, em tom sarcástico, deu a seguinte declaração para a Folha de São Paulo, em 2013: “Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014. Se o Feliciano tiver menos de 400 mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome.” Quase acertou. Depois de ter sido eleito com 212 mil votos em 2010, Feliciano foi reeleito em 2014 com 398 mil votos. E a voz do então deputado Jair Bolsonaro, que comemorou a escolha em reportagem do Globo: “Como capitão do Exército, sou um soldado do Feliciano. A agenda antes era outra, de uma minoria que não tinha nada a ver. Hoje, representamos as verdadeiras minorias. Acredito no Feliciano, de coração. Até parece que ele é meu irmão de muito tempo. Não sinto mais aquele cheiro esquisito que tinha aqui dentro e aquele peso nas costas. Aqui, era uma comissão que era voltada contra os interesses humanos, contra os interesses das crianças e contra os interesses da família. Agora, essa comissão está no caminho certo. Parabéns, Feliciano.”
Se foi um acordo pragmático que deu o posto de presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, seu interesse em ocupar a posição não é um fato conjuntural. Pelo contrário, foi a explicitação de que o que está em jogo na relação entre a direita brasileira e os direitos humanos não é a negação, mas sim a captura e disputa pelo seu significado. Não se trata de anular os diretos humanos, mas de fazer dele um campo de disputa. Essa lição, no entanto, não precisa ser aprendida exclusivamente pela observância de atitudes de políticos conservadores. Em um texto de 2003, Luiz Eduardo Soares já havia chamado atenção para certo impasse analítico entre uma concepção substancialista, que compreende os Direitos Humanos como um conjunto de valores e princípios universais, e uma concepção relativista, que tende a situá-los em contextos culturais e em processos políticos específicos.
Intelectuais progressistas, como a antropóloga Laura Nader, elaboraram críticas à pretensão universalista dos Direitos Humanos, concebendo-no como uma forma de poder Ocidental que, ao fim e ao cabo, teria um efeito “recolonizador” sobre sociedades situadas fora do bloco dos países dominantes. Para tais autores, os Direitos Humanos, enquanto um conjunto de normas internacionais e dispositivos legais funcionariam como uma espécie de “cavalo de Tróia” moderno, utilizado para recolonizar o mundo a partir de ideais ocidentais pretensamente universais. De modo ainda mais explícito, Slavoj Zizek, em um artigo intitulado “Contra os Direitos Humanos”, afirma que “os Direitos Humanos de vítimas sofredoras do Terceiro Mundo efetivamente significam, no discurso dominante, o direito das próprias potências do Ocidente de intervir política, econômica, cultural e militarmente em países do Terceiro Mundo de sua escolha em nome da defesa dos Direitos Humanos”. Nesse caso, o uso dos Direitos Humanos como instrumento de dominação se legitimaria por meio de um processo que, ao tomá-los como valor universal, os descontextualiza das relações geopolíticas e culturais em que eles são produzidos e os remete para o campo de uma moral pré-política de oposição entre o bem e o mal. De alguma maneira, Marco Feliciano mimetizou essa crítica, entrou na disputa e permitiu que, nas palavras já citadas de Bolsonaro, as verdadeiras minorias passassem a estar incluídas no guarda-chuva dos direitos humanos.
Na gramática dos direitos humanos articulada por Feliciano, há uma minoria que precisa ser atendida com urgência: os cristãos. A lógica de existência de uma minoria cristã opera em duas escalas. Primeiro, na escala da política nacional. Seria nesse âmbito que a perseguição religiosa aos cristãos se manifestaria de modo explícito. A rejeição que Feliciano encontrou ao ser indicado para a presidência da Comissão de Direitos Humanos em 2013, por exemplo, foi justificada por ele mesmo nos seguintes termos: “A reação ao meu nome se deve, primeiro, a perseguição religiosa. Depois, por ‘cristofobia’”. Assim, se de um lado temos setores progressistas apontando para as falhas do princípio da laicidade do Estado brasileiro quando uma agenda religiosa é acionada por congressistas religiosos, de outro lado temos os religiosos se defendendo do que compreendem ser um modus operandi de perseguição, que não pode ser tolerado.
A segunda escala em que a gramática da minoria cristã é acionada não é nacional, mas sim inflamada por um afã de exercício de diplomacia internacional, cujo protagonismo o Brasil não deve ser furtar. Marco Feliciano, mais uma vez ele, requereu recentemente a realização de uma audiência pública para debater perseguição religiosa contra cristãos no exterior. Cito sua justificativa: “Muitos cristãos sofrem discriminação e ataques causados tão somente pelo fato deles praticarem sua fé. Essas perseguições ocorrem frequentemente no Brasil, mas acontecem também em uma escala bem maior em outros países, principalmente aqueles que vivem em regime ditatorial ou comunista. Recentemente em Ruanda, o presidente Paul Kagame mandou fechar milhares de igrejas evangélicas. O mesmo ocorreu na Argélia, que também expulsou missionários estrangeiros. Já na Índia, extremistas hindus atacaram fisicamente pastores e fiéis. O site da “Missão Portas Abertas” traz uma lista com a relação de países que mais perseguem cristãos pelo mundo. Essa lista é elaborada todo ano, sendo que o país que lidera a lista nos últimos 16 anos é a Coreia do Norte”.
A gramática da cristofobia é ambígua. Por um lado, depende de uma lógica política de minoritização do cristianismo. Por outro, reconhece e apresenta o Brasil como uma nação cristã. A troca de escala, que permite alternar as identidades, afirmando-se ora como maioria, ora como minoria, é o jogo de dissimulação com o qual estamos diante. Nesse jogo cínico de escalas múltiplas, o palco global da assembleia da ONU é um lugar oportuno para, de um só golpe, afirmar que o Brasil é um país cristão e, ao mesmo tempo, transformar o cristianismo numa minoria que precisa ser salva.………….