por Gabriel Nocchi Macedo
Não são raros os tesouros encontrados no lixo, e sobretudo no lixo reciclável! Muitos textos antigos, em grego, latim, egípcio, hebraico, etc., desconhecidos durante séculos, foram descobertos em fragmentos de livros antigos, amiúde em péssimo estado de conservação, que haviam sido reutilizados a outros fins ou simplesmente postos fora. Assim, um rolo de papiro contendo dois livros do tratado filosófico Sobre a natureza de Empédocles de Agrigento (c. 490 – c. 430 a.C.) fora reciclado para a fabricação de um ornamento funerário no Egito. Antes da descoberta e identificação do texto, em 1992, essa obra, na qual vem descrita uma teoria sobre a origem do cosmo que muito influenciou a filosofia ocidental, era conhecida apenas por citações em outros textos.
Uma das descobertas mais belas (se não a mais bela) que nos revelaram pedaços de papiro outrora enterrados no deserto egípcio foram fragmentos de dez poemas de Safo de Lesbos (c. 630 – c. 570 a.C.), única grande voz feminina da literatura antiga e um dos maiores expoentes da poesia lírica de todos os tempos. Como a de Empédocles, e a de quase todos os poetas líricos gregos, a obra de Safo não foi preservada por uma tradição manuscrita, ou seja, copiada de um manuscrito a outro durante a Antiguidade e toda a Idade Média até a invenção da imprensa. Tudo o que se conhece da sua poesia, isto é, algumas centenas de versos (estima-se que ela haveria escrito mais de dez mil), foi preservado sob a forma de citações de outros autores ou em fragmentos de papiro encontrados em escavações arqueológicas.
Não surpreende, portanto, que a descoberta de novas partes da obra da poetisa provoque um frisson que vai muito além do meio dos acadêmicos especialistas. Assim, a identificação, em 2014, dos novos fragmentos foi anunciada nos mais importantes jornais, canais e sites de notícias do mundo, e professores de letras clássicas—em geral esquecidos em sombrios corredores de bibliotecas—tiveram seus quinze minutos de fama durante entrevistas e depoimentos sobre a descoberta.
A “nova Safo”, como se refere à descoberta, consiste em cinco fragmentos de papiro de proveniência egípcia, hoje em possessão de colecionadores privados: eles foram comprados em um leilão na Christie’s de Londres em 2011 por um colecionador londrino anônimo que, subsequentemente, conservou o maior fragmento para si e vendeu os outros quatro à Green Collection em Oklahoma City, uma das maiores coleções privadas de livros antigos do mundo. Os proprietários confiaram o estudo dos papiros a Dirk Obbink, professor de grego e papirologia da Universidade de Oxford, a quem se devem a identificação e as primeiras edição e tradução dos poemas. Desde as primeiras publicações em 2014, livros inteiros, incontáveis artigos científicos e dois congressos internacionais já foram dedicados aos papiros.
Em suas considerações sobre a proveniência e a conservação desses papiros, Obbink relata que os fragmentos de Safo, junto a vários outros pedaços de papiro, foram comprados no Cairo em 1954 por um professor da Universidade do Mississippi. No momento da aquisição, os fragmentos estavam amalgamados em um pedaço de cartonagem, ou seja, um material composto de várias camadas de papiro e tecido, semelhante ao papier mâché, usado no Egito sobretudo para a confecção de caixões e máscaras funerárias. (Nesse caso preciso, não se sabe se a cartonagem contendo os papiros de Safo teve de fato um uso funerário). Os papiros haviam sido, em outras palavras, reciclados! Seus textos seriam perdidos para sempre se o comprador londrino não houvesse desfeito as camadas da cartonagem e separado os fragmentos individuais.
Obbink e seus colegas puderam estabelecer que os cinco fragmentos pertenciam a um mesmo livro antigo, em forma de rolo, produzido entre o fim do século II e a primeira metade do século III d.C. Muito provavelmente, o livro completo continha uma edição do primeiro livro de poemas de Safo que contava no mínimo cinquenta e um poemas e aproximadamente mil e trezentas linhas. Restam dez poemas em estado mais ou menos fragmentário: ora conservaram-se estrofes inteiras, ora são legíveis apenas algumas letras. A primeira palavra dos poemas conservados começa com as letras ? (omicron) e ? (pi), o que corrobora a hipótese de que, nas antigas edições de Safo, os poemas eram apresentados em ordem alfabética.
Os fragmentos não conservaram o título da obra ou o nome da autora. A atribuição a Safo foi possível graças à análise da língua, do metro e, sobretudo, de comparações com outros poemas da autora. O fator decisivo, porém, que tornou a autenticidade sáfica indiscutível, é a menção em um dos poemas dos nomes de Kharaxos e Larikhos, irmãos de Safo, mencionados por outros autores como Heródoto e Estrabão. O dito “Poema dos Irmãos”, é a mais bem conservada das composições descobertas e obteve, naturalmente, uma grandíssima atenção entre os estudiosos. Proponho aqui uma tradução portuguesa, mais literal do que literária, do texto[1]:
[1 ou 5 linhas perdidas]
[…]la[…
[…] tu (?) ma[
Mas tu estás sempre a repetir que Kharaxos vem
com uma nave repleta. Eu penso que Zeus
e todos os deuses sabem disso. E não é preciso
que tu penses nessas coisas.
Mas em vez disso envia-me e comanda-me
a dizer muitas rezas à rainha Hera,
para que Kharaxos retorne, navegando até aqui
em uma nave segura,
E que ele nos encontre sãos e salvos. O resto,
confiemo-lo todo aos deuses,
pois de uma forte ventania
logo advém a bonança.
E aqueles a quem o rei do Olimpo desejar
que uma divindade ajudante ora os desvie
das penas, eles tornam-se felizes
e plenamente abençoados.
E nós, se Larikhos erguer a cabeça
e se um dia se tornar um homem,
do grande e penoso fardo
logo seríamos liberados.
Impressionante pela sua simplicidade e imediatismo, o poema é uma imprecação pelo retorno seguro do irmão Kharaxos, um comerciante que exportava vinho da ilha de Lesbos ao Egito. Ao sentimento de urgência mistura-se uma aceitação esperançosa do poder divino face à impotência humana. Não se sabe a quem Safo se endereça: à sua mãe, a um tio, à amada de Kharaxos (uma cortesã chamada Dorikha) ou ao irmão menor Larikhos, sobre quem repousa a esperança do fim das penas de Safo e sua família.
A minha é uma singela tentativa de dar ao leitor uma amostra da nova Safo. Muitos dos seus segredos ainda hão de ser revelados e o fascínio que ela exerceu na Grécia arcaica não é menor do que ela exerce no século XXI.
[1] As traduções foram feitas a partir da segunda edição crítica de Dirk Obbink, The Newest Sappho: Text, Apparatus Criticus, and Translation, in Anton Bierl – André Lardinois (edited by), The Newest Sappho. P.Sapph. Obbink and P. CG inv. 105, frs. 1-4, Leiden-Boston, 2016, pp. 13-33.
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