Por que não estamos chocados?

As agitações políticas e sociais que estremeceram o Brasil nos últimos anos – desde 2013, ao menos, há gente em número significativo nas ruas – deram ao país ao menos uma grande oportunidade. Trata-se da chance de se interrogar a fundo sobre a Nação que temos,  aquela que queremos ter e os possíveis caminhos para lá chegar.

As agitações políticas e sociais que estremeceram o Brasil nos últimos anos – desde 2013, ao menos, há gente em número significativo nas ruas – deram ao país ao menos uma grande oportunidade. Trata-se da chance de se interrogar a fundo sobre a Nação que temos,  aquela que queremos ter e os possíveis caminhos para lá chegar. Nesse sentido, e em tempos de impeachment, investigações policiais e protagonismo judicial, poucos questionamentos nos parecem mais pertinentes do que este: nossas instituições estão funcionando bem?

Para saber que instituições são essas e como elas funcionam, avaliar os debates em torno de nossa Constituição e refletir sobre os rumos da sociedade brasileira, o Estado da Arte inicia a série Passado a Limpo, com posts, artigos e entrevistas sobre o tema, sempre buscando um diálogo com as fontes clássicas de reflexão sobre os temas atuais.

por Marcelo Consentino

“O legislador deve ser o eco da razão e o magistrado o da lei”. (Pitágoras)

Terá o Brasil ultrapassado os limites de uma Nação às voltas com o combate à criminalidade e à corrupção e abraçado francamente o crime como identidade? A pergunta deveria estar no centro das discussões sobre o país após a decisão do então presidente do Supremo Tribunal Federal, enquanto presidia o Senado no processo de impeachment, de “fatiar” a votação, coisa feita em comum e suspeitíssimo acordo com as autoridades da casa legislativa. Nosso estado de tranquilidade e indiferença não condiz com a gravidade do ocorrido, mas também pode ser revelador de nossa peculiar relação com aquelas que deveriam ser as instituições basilares de nossa sociedade.

A ex-Presidente da República tinha muitas desculpas, em parte convincentes – ignorância, incompetência dos subordinados, crises econômicas e políticas exógenas e endógenas. Já os responsáveis pelo fatiamento, pegos em flagrante e incontroverso delito em cadeia nacional, não têm nenhuma: nenhuma pressão externa, nenhuma nebulosidade, só a sua pura e livre e premeditada vontade. Ela foi acusada de ter atentado contra um dos sistemas vitais do corpo republicano, no caso o financeiro, e por isso foi condenada. Eles atacaram diretamente o seu coração: a Constituição Federal.

Poderia esta ser mais cristalina? “Se C, então X com Y”, “Se não-C, então nada”. Não há margem para ambiguidade ou incompreensão de qualquer natureza, e não havendo espaço para uma ignorância desculpável aos que infringiram a vontade inequívoca do Poder soberano em um Estado Democrático de Direito, o Poder Constituinte, só lhes resta sucumbir às críticas por inépcia indesculpável e ao falatório de um suspeitoso conluio político, só restando definir se sua participação foi culposa ou dolosa.

Duas palavras bastam. A vontade do Legislador quanto à pena para o delito em questão (“perda do mandato com inabilitação por oito anos”) admitia mais de uma interpretação: sim ou não? O Senado tinha soberania para contrariá-la com base num regimento interno e numa lei de 1950, e com menos da metade (!) da plenária: sim ou não? Os senadores que agiram de acordo com o sim, por qualquer critério que sei queira empregar, saíram desmoralizados pelo atropelo da Constituição.

O então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, afirmou ter uma interpretação “pessoal” sobre o que pretendia o Legislador, enquanto lavava as mãos alegando que fora de sua Casa não tinha autoridade para impô-la. Agora que a tem, junto aos seus companheiros de capa preta, que dirá? Das duas uma, ou foi vítima de uma conspiração, constrangido porventura em um ambiente hostil, ou foi seu cúmplice. Admitindo-se a primeira, tem obrigação, enquanto cidadão, de denunciar seus golpeadores e, enquanto juiz, de puni-los.

O Senado tinha toda soberania, dada precisamente pelo Constituinte, para determinar se os fatos se enquadravam na tipificação legal, e nenhuma para definir a pena e muito menos sua dosimetria, no caso inexistente. Ao não indeferir no ato o requerimento chicaneiro de um “destaque” entre a condenação e a pena, nosso Juiz Supremo permitiu que a vontade do Constituinte não fosse, como não foi, cumprida, precisamente lá onde ela era inequivocamente clara, dando a senha para os legisladores imporem com mão direita a condenação pela frente enquanto a esquerda sumia com a pena por trás. Sob a máscara de juiz prudente não terá agido um juiz fraco ou – pior –  perverso? E tendo agido como agiu, terá acaso condições morais e, mais relevante, legais de seguir entre os 11 magistrados supostamente mais competentes do País? O zelo pela Constituição, pela lógica e pela língua portuguesa faz com que a balança se incline lamentavelmente para uma negativa.

Deixe estar o gesto vil dos ditos golpeados que na hora do golpe, enquanto sua chefa era expulsa como uma criminosa do Planalto, encolhiam-se sob seus golpeadores mendigando-lhe umas sinecuras. Uma tal lembrou a aposentadoria de meros 5 mil reais a que teria direito a ex-presidente. Sua Excelência o Juiz, digníssimo Presidente do processo, esclareceu que ela não poderia ser nem merendeira de escola. Nesse instante interveio agitando a Constituição o presidente do Congresso, o grande sorridente, aquele que tira com uma mão e dá com a outra o punhadinho de prebendas de cada um; que abre seus braços e portas a todos, que apazigua a todos, conhece os segredos de todos, tem influência sobre todos – como uma prostituta.

Se nossa opinião pública se perdeu em miúdos indagando se se abriu um precedente para o ex-Presidente dos Deputados, que evidentemente abriu, para ele como para qualquer criminoso (e no caso só não foi usado por conveniência), é por nossa inteligência peculiarmente obtusa, nossos apetites por crimes novelescos, nossa inapetência à sobriedade magnificente e tediosa dos crimes institucionais. Ridicularizamos com olhares de cumplicidade a espontaneidade dos legisladores na votação da Casa Baixa, que no caso respeitaram a Constituição, e nos congraçamos aos da Casa Alta, que a estão fraudando. Discernimos mal entre um delinquente e seus comparsas atentando contra um dos Poderes da República e o fato infinitamente mais grave de um desses Poderes, no caso dois, atentando aberta e oficialmente contra a própria República. Os primeiros podem ser comparados a parasitas. Arrancados, perdem seu poder destrutivo. Os segundos são mais como um câncer, um órgão egoísta que tudo subverte a favor de seus apetites doentios, infectando um por um os demais órgãos, deformando, devorando, aniquilando, lenta mas inexoravelmente o próprio corpo do qual são parte.

A rigor, a segurança jurídica no país se fendeu até a raiz com a votação anticonstitucional. O fato de que essa fenda seja invisível para a maior parte da população, não significa que ela não se abra mais a cada dia. Enquanto este atentado à Lei Suprema, o Pacto Nacional que deveria imperar sobre todas as nossas leis e pactos, públicos e privados, seguir sendo perpetrado, a metástase está em curso: não pode haver igualdade de todos ante a Lei, porque não há garantia de que as leis sejam iguais para todos. A única Lei comum, neste momento, é a Lei do mais forte, pois todas as outras podem ser violentadas e convertidas no seu exato oposto, basta enfiar a faca no lugar certo. É a isso que chamamos de bom funcionamento das instituições?

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